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Quarta-feira, 5/1/2005 TV, cinema e quadrinhos em 2004 Gian Danton Escolher os melhores do ano pode parecer uma tarefa impossível para alguém que mora em Macapá (portanto, longe demais das capitais, como diriam os Engenheiros), não tem TV a cabo e, para piorar, passou quatro meses em uma cama, adoentado. Mas talvez meu ponto de vista expresse justamente a opinião de quem está menos antenado, ou distante demais dos centros culturais. Em minha época de doença, um referencial inevitável era a televisão. Vasculhei todas as emissoras, em todos os horários possíveis, inclusive de madrugada, quando os sintomas me impediam de dormir. E a conclusão é: ainda bem que essa não é a lista dos piores, ou o texto seria apenas sobre os piores a TV, e seria imenso. No meio da grande mediocridade, uma emissora se destacou e parece que vai continuar se destacando: A Rede 21. Com a programação centrada essencialmente em seriados antigos, a Rede 21 se tornou a única alternativa não agressiva aos neurônios em determinados horários. Para os que criticam também os seriados enlatados, resta-me pedir que comparem Ratinho com Seifield ou Te Vi na TV com Jornada nas Estrelas. Outra boa opção na TV foram as produções saídas no núcleo Guel Arraes, na Globo. Sexo Frágil e os mais recentes Aspones salvaram as noites de sexta, que pareciam ter sido definitivamente perdidas depois do cancelamento de Os Normais. A doença me impediu de assistir alguns filmes que talvez constassem em uma lista dos melhores do ano (A Vila me vem à memória como único exemplar digno de concorrer, e mesmo assim muito mais pela expectativa que pelo resultado). Assim, sobra o DVD de Dogville, um filme que não chegou às salas de cinema da maioria do país. Dogville, dirigido pelo dinarmaquês Lars Von Trier, é um daqueles pontos limite de uma arte, por demonstrar até onde pode ir uma linguagem. É difícil dizer o que é mais impressionante no filme: a história muito bem construída e chocante, a total ausência de cenários, o fato de todos atores atuarem durante todos os minutos do filme... Costumo considerar a importância de uma película pelo tempo que ela passa em minha mente. E até hoje posso me lembrar com perfeição do rosto angelical de Nicole Kidman captado pela câmera nervosa. Para quem não assistiu, Dogville conta a história de uma jovem (Kidman) que, fugindo de gangsters, vai parar em uma pequena vila, onde passa a ser protegida pelos habitantes em troca de pequenos favores. Mas, à medida em o cerco dos bandidos aumenta, os habitantes da vila começam a exigir mais e mais. É uma aterradora metáfora sobre o que as pessoas podem fazer quando sabem que têm poder sobre outras e sobre como pequenas transgressões aos direitos podem se transformar em escravidão. O diretor diz que o filme é uma metáfora do imperialismo norte-americano, o que não deixa de fazer sentido. Nos quadrinhos uma revista se destacou por publicar histórias voltadas para o público mais adulto e exigente. Falo da Marvel Max. O título começou titubeante, com uma viúva negra que parecia querer impressionar pela exposição gratuita do sadomasoquismo e não pelo roteiro, mas teve, desde o primeiro número, grandes expoentes, como a série Alias (de Brian Michael Bendis e Michael Gaydos) e chegou a um mix perfeito quando passou a publicar Poder Supremo (de J. Michael Straczynski e Gary Frank). Alias é sobre uma super-heroina que se aposentou, tornando-se detetive particular. O forte da série são os diálogos realistas de Bendis, assim como as situações inusitadas em que a personagem principal se envolve (como investigar a morte de uma jovem mutante provavelmente vítima de racismo). Poder Supremo resgata com competência a moda anos 80 de mostrar super-heróis de maneira realista. Como uma releitura do Super-homem, a revista tem como protagonista um super-herói alienígena criado pelos militares norte-americanos para se tornar uma arma de guerra. Outra boa surpresa foi a publicação por aqui da série 1602, de Neil Gaiman e Andy Kubert. A história, uma daquelas HQs alternativas em que super-heróis famosos são mostrados no passado, foi escrita por Gaiman para custear as custas de seu processo contra Todd McFarlane (Spaw) pelos direitos do personagem Miracleman, mas foi muito além disso. Na história, os personagens da Marvel são mostrados em plena Renascença, na Inglaterra da Rainha Elizabeth. O mais interessante nos primeiros números é descobrir quem é quem. Logo percebemos que Nick Fury é o espião-chefe, que o Doutor Estranho é o mágico da Rainha e assim em diante. Se alguns são óbvios logo no primeiro número, outros, como o Capitão América e o Quarteto Fantástico, só são identificados pelos mais perspicazes. Essa espécie de jogo de esconde-esconde é uma atração da mini-série, mas não é a única. Se fosse, não mereceria uma menção aqui. O melhor da edição é o texto incomparável de Gaiman. No final da década de 80 e início dos 90, esse autor revolucionou o meio ao mostrar que a narrativa quadrinística não era limitada aos jargões super-heroiescos. Ao aproximar os gibis da poesia, Neil Gaiman (juntamente com Alan Moore) definiram as características dessa mídia. Nessa série, Gaiman usa e abusa das páginas de ambientação, que ele inventou nos anos 80. Há uma convenção nos quadrinhos de que o leitor deve ser ambientado na história antes de começar a ler. Isso é bastante útil para um mercado em que as histórias às vezes se arrastam por dezenas de números. Antigamente isso era feito com textos do tipo: "Local: Nova York. Hora: de manhã. Personagens: O Homem-aranha e o Lebre Saltitante" ou: "No número anterior, o Lebre Saltitante saltou diversas vezes sobre o aracnídeo até deixá-lo desacordado e agora vai tirar sua máscara. Ele conseguirá perpetuar seu ardiloso plano?". O texto de ambientação, inventado por Gaiman, é muito mais sutil, como no exemplo abaixo, retirado do segundo número de 1602: "Estou observando eventos. Há grandes eventos e eventos menores. Eu observo todos. Fenômenos climáticos incomuns disseminados causam formações de tensão e reações. Singularidades efêmeras produzem chuvas de partículas que eu julgara apenas hipotéticas (...) ao lado desses eventos, todos os demais são pequenos. Ainda assim, eu observo como faço com os grandes. Eu observo quando o conselheiro da Rainha envia um cego para trazer o maior tesouro dos templários para a Inglaterra. (...) Eu observo os padrões. Observo os eventos. Não posso interferir. Eu apenas observo". O único senão da série é o final, que deixa diversas pontas soltas (não sabemos, por exemplo, o que aconteceu ao Capitão América), mas isso não apaga o brilho do restante. Um ano que teve obras como Marvel Max e 1602 não pode ter sido de todo um ano ruim. Mas seria bem melhor se eu pudesse incluir nessa relação dos melhores alguns quadrinhos nacionais... Nota do Editor Gian Danton ou Ivan Carlo assina hoje o blog que leva seu nome. Gian Danton |
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