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Quarta-feira, 19/1/2005
O retorno das Cruzadas
Daniela Sandler

Marcos de tempo como a virada do ano, e as retrospectivas que vêm junto, são convenções. Em colunas passadas, já confessei meu descrédito no fim-de-ano ("Os melhores votos, de uma cética") e escrevi que as retrospectivas históricas são artificiais ("Sobre as retrospectivas históricas"). Mas, com a boa lembrança do champagne de revéillon ainda nos lábios, concedo: há não apenas convenção, mas também necessidade no balanço dos fatos que acompanha os finais e inícios de ano. Obviamente, avaliar acontecimentos, sejam individuais ou coletivos, é útil: entendemos melhor nossa situação presente, corrigimos a rota se for o caso, investimos num acerto insuspeitado. E descobrimos mais a nosso respeito. Que o ano novo nos dê a chance de expressar essas reflexões não é de todo mau.

Assim sendo, o que nos diz 2004? A resposta vem na forma de um "augúrio retroativo": a tragédia dos maremotos na Ásia, que emborcou a excitação de fim-de-ano em água suja e morte. Fitando o ano que passou de trás prá frente, a destruição dos maremotos salta como o princípio de uma lista de desastres humanos e naturais: as explosões numerosas em Israel e no Iraque, o conflito no Sudão, os furacões na costa norte-americana, a bomba no trem de Madrid. O rol negativo se completa com mortes célebres, também pressagas. Com Christopher Reeve, morreu também um pouco do otimismo embriagado pela luta sobre-humana do ator contra a tetraplegia; a esperança no poder da ciência, nas pesquisas de células-tronco que Reeve promovia, murchou com seu coração falho. Já a morte de Iasser Arafat levantou medo e incerteza sobre o futuro do processo de paz no Oriente Médio e a viabilidade de uma liderança estável e unificadora para o estado Palestino.

Foi um ano de guerra, de irrupção da violência de indivíduos, grupos e nações. O desastre natural dos maremotos está sendo imensamente agravado pela crueldade e falta de escrúpulos de homens estuprando refugiadas, seqüestrando órfãos, furtando as casas vazias de mortos e feridos, e assaltando sobreviventes. Que alguém tire vantagem de uma tragédia de tais proporções é talvez o exemplo mais gritante da destrutividade expressa nos atentados suicidas, no genocídio, no terrorismo e na ocupação forçada. Para quem ainda não enxergou - para quem insiste que algumas batalhas se justificam pela vontade de Deus ou por uma ideologia, para quem divide o mundo em bons e maus e legitima os atos destrutivos cometidos em nome do bem (não importa o que seja o "bem" - as palavras da Bíblia ou uma determinada ordem sócio-econômica) - para quem se recusa a ver, os criminosos do maremoto são a última chance de abrir os olhos. Também somos violentos, e há épocas em que os demônios correm à solta.

Guerra santa

Os conflitos de 2004 têm em comum o espírito de guerra-santa. A mistura de religião e política não se limita às guerras e terrorismo. Basta pensar no peso que o cristianismo evangélico, os "valores morais" e os eleitores religiosos tiveram na eleição presidencial norte-americana. É o recrudescimento não apenas da incasta ligação entre Igreja e Estado, mas do obscurantismo fundamentalista.

Seria bom se o interesse em religião fosse o sinal de espiritualidade, de compaixão, de desenvolvimento pessoal e amor desinteressado pelo próximo. Mas essas palavras soam estrangeiras - para não dizer anacrônicas - diante das manifestações de religiosidade atuais. Os cristãos norte-americanos, assim como os colonos israelenses ultra-ortodoxos ou os terroristas islâmicos radicais, expressam uma visão maniqueísta do mundo cindido em bem e mal, heróis e vilões, valores absolutos e certezas férreas. Não basta seguir os preceitos da religião: é preciso que todo o resto do mundo o faça também (ou desapareça), é preciso converter ou matar. A diferença de pensamento, fé ou comportamento é pecado maior que o homicídio. É a lógica expressa pelo presidente Bush ao anunciar a guerra contra o "eixo do mal" após o ataque de 2001: "If you are not with us, then you are against us" ("Se você não está do nosso lado, então está contra nós").

Cobrindo a cabeça

O retorno ao fundamentalismo em 2004 também apareceu na polêmica do lenço usado para cobrir a cabeça por mulheres muçulmanas. Adolescentes muçulmanas na França foram proibidas pelo governo de usar o lenço em escolas públicas. Quem se recusou a obedecer foi proibida de freqüentar aulas. A separação entre Igreja e Estado, herança da Revolução Francesa seguida ao extremo no país, impede a associação entre serviços públicos e orientação religiosa. Nenhum sinal de devoção pode ser usado em escolas públicas, seja o lenço, seja a cruz, seja a estrela-de-davi. As adolescentes foram às ruas, apoiadas por jovens seculares vestindo o lenço em solidariedade, para protestar contra o que consideram discriminação e autoritarismo. A ironia, no caso, é que as adolescentes muçulmanas estão elas mesmas aderindo com fervor cego a preceitos opressores, baseados na submissão das mulheres ao controle masculino em todos os aspectos da vida (o lenço é talvez o mais inócuo).

A ressaca retrógrada não é exclusiva à França. Na Alemanha, o mesmo fenômeno cresce: a nova geração de muçulmanos, na maioria filhos de imigrantes nascidos na Europa (e considerados cidadãos europeus), é mais ortodoxa e radical em sua religiosidade que seus pais. Um documentário francês sobre o tema registrou a perplexidade de uma mãe de dois adolescentes. Vestida de jeans, maquiada, com a blusa decotada e o cabelo arrumado, ela conta que o filho a condena por não se vestir ou se comportar apropriadamente, chamando-a de pecadora. Sua filha só sai de casa coberta pelo lenço e por roupas longas e escuras. A mãe não entende: "Lutamos tanto por mais liberdade e direitos, e agora as jovens querem voltar para trás". A proibição do governo francês talvez seja extrema, mas tem origem na preocupação de evitar que a intolerância e radicalismo religiosos fermentem e se espalhem entre adolescentes e crianças - uma idade extremamente suscetível à doutrinação.

A polêmica do lenço poderia ter ajudado a iluminar as estratégias e motivações do crescimento do fundamentalismo islâmico atual. Infelizmente, apesar de reflexões críticas como o documentário citado acima, na maior parte dos casos a disputa foi apropriada por gente interessada em outras questões políticas, como o conflito entre Israel e Palestina. Usar o lenço na cabeça virou símbolo da luta contra o "muro da vergonha" - a muralha construída por Israel para isolar assentamentos palestinos. O muro, assim como a ocupação e a repressão israelenses, são condenáveis; o direito dos palestinos a território e Estado próprios é inegável. Mas o fervor religioso e dogmático por trás do uso do lenço não é representação adequada para uma luta civil por direitos humanos. Igualar o lenço à campanha contra a opressão é ignorar o significado de ambos, numa perversa reversão de sentidos.

Um estado de espírito

O fundamentalismo aparece até onde se imagina não haver resquício de religião. O caráter religioso de pessoas, movimentos ou grupos não reside necessariamente em templos, liturgias ou ícones. Assim, tão forte quanto o neoconservadorismo carola dos Estados Unidos é o séquito de oposição que tem seu pastor em Michael Moore. Tudo o que há de valioso e lúcido nas críticas de Moore à presidência americana acaba obliterado pelo volume igual ou maior de alegações sem fundamento, factóides, manipulação de dados e exageros. Fahrenheit 9/11 tem momentos brilhantes e reveladores, mas deságua facilmente em caricatura, generalização e apelação sentimentalista. Por exemplo, a sugestão de que membros do governo norte-americano tenham interesses escusos e privados no petróleo do Oriente Médio, e que isso influencia políticas oficiais, é plausível, e Moore não foi o primeiro a levantar a lebre. Mas daí a pintar o primeiro George Bush (o pai) como um serviçal de sauditas suspeitos, e insinuar que essa conexão esteja entre as causas do ataque terrorista, é fazer malabarismos de raciocínio.

Não à toa, Moore desperta popularidade e ódio intensos. Moore não tem simplesmente fãs - tem seguidores, que assistem a seus filmes, lêem seus inúmeros livros, e depois repetem suas invectivas como palavras-de-ordem. Se nos Estados Unidos o culto se manifesta como oposição ao governo, fora do país ele se conecta ao antiamericanismo crescente. Ora, uma coisa é criticar as políticas do atual governo norte-americano - especificamente, o intervencionismo externo e beligerante. Outra coisa é transformar essa crítica embasada e legítima em ódio generalizado e irracional, dirigido à sociedade norte-americana como um todo. Por conta de uma parcela da população, os Estados Unidos têm sido pintados como a encarnação do mal, como um aglomerado de caipiras ignorantes e arrogantes. Esse antiamericanismo é pervasivo, alojado não apenas nos focos de terror que originaram o Onze de Setembro, como também na Europa toda, no Canadá, no Brasil. Essa atitude abriga uma visão simplista, que reduz o mundo a bons e maus e não tolera diferenças; a raiva palpável das manifestações antiamericanas tem muito de catarse e êxtase religiosos. Pois é: junto aos terroristas islâmicos, aos ultra-ortodoxos israelenses e aos cristãos superconservadores, estão também os radicais antiamericanos.

2004, assim, acabou talvez um pouco pior do que começou. A destrutividade associada às nossas Cruzadas modernas não está restrita aos focos distantes da África ou do Oriente - não, ela é ubíqua, e se não prestarmos atenção, se não fizermos o balanço, poderá se tornar dominante. É claro que há esperança. As ondas gigantes que devoraram a Indonésia, a Tailândia e os demais locais afetados pelo maremoto parecem uma cuspida raivosa do planeta (se eu fosse mística, acreditaria que sim). Mas a atenção do mundo e os esforços em ajuda humanitária - até mesmo aqueles investidos de oportunismo político, como a aparição conjunta de Bush pai, Bush filho e Bill Clinton para solicitar contribuições - apontam para o que, em nós, é construtivo e solidário. O ano passado pode ter sido engolido pelos tsunamis, mas o ano que principia vem embalado em compaixão, empatia, esforços coletivos e reconstrução. Que esses sejam os augúrios para 2005.

Salvos pela arte

Um pequeno epílogo a esta coluna meio pessimista vem fazer jus ao que 2004 teve de bom. Para aqueles que às vezes ainda perguntam faceiramente "para que serve a arte" e denigrem os campos "inúteis" das letras, das artes plásticas, da música ou da filosofia, ofereço um pensamento: o que teria sido de 2004 se não fossem os belos filmes, os livros interessantes, as exposições? Graças a eles, tenho algo com que brindar o melhor do ano passado. Em primeiro lugar, a retrospectiva da obra de Henri-Cartier Bresson (que, aliás, morreu em 2004) - a maior exposição de seu trabalho até então, que já foi vista em Paris e Berlim. A exibição é em si um trabalho de fôlego, com organização cuidadosa e edições primorosas das fotografias (entre ampliações originais e novas versões). Mas, para além dos méritos de curadoria e realização, a beleza da exposição vem mesmo das imagens de Bresson - como, aliás, uma boa retrospectiva deve ser, evidenciando a marca do artista mais do que do curador. As fotos de Bresson revelam um mundo maravilhoso e múltiplo, desbravado pelo fotógrafo corajoso, atento ao belo insuspeito nos detalhes insignificantes e sensível ao sofrimento e à alteridade das pessoas captadas por suas lentes. Uma exposição excitante e comovente, emocionante sem sentimentalismo.

Na memória fica também, é claro, O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (The Eternal Sunshine of a Spotless Mind). Com o mesmo engenho narrativo de filmes como Memento e 21 gramas, o filme de Michael Gondry tece surpresa e clímax eficazes - tarefa difícil em se tratando de contar o que é, no fundo, uma história desbragada de amor. O tratamento de amnésia ao qual personagens do filme se submetem para esquecer a fonte de seu sofrimento - uma decepção amorosa, um cachorrinho morto - sugere que tão importante quanto os fatos ocorridos é a nossa lembrança deles. O fato não-registrado, ou esquecido, torna-se fato inexistente. É como se nunca houvesse ocorrido. Não deixa de ser assustador pensar assim - que, se não fossem nossos neurônios arquivando laboriosamente cada tijolinho de experiência, não teríamos nada ao fim da sucessão de nossos dias. O filme não é apenas uma exploração instigante do significado da memória, mas uma declaração de fé quase ingênua no amor, ou na idéia de que há, para cada um de nós, um parceiro perfeito, a cara-metade, alguém para o qual estamos destinados a despeito das circunstâncias. Mesmo para quem não acredita, é difícil ficar imune aos charmes do filme e sua heroína de cabelo colorido.

Daniela Sandler
Riverside, 19/1/2005

 

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