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Sexta-feira, 3/8/2001 Dança do Transe Rafael Azevedo Outro dia vi en passant um documentário (provavelmente da BBC, pela chatice) sobre os bosquímanos, índios do sul da África que vivem em pleno deserto do Kalahari, um dos lugares mais áridos do globo. São criaturas impressionantes (são eles naquele filme que uma garrafa de Coca-Cola cai dum helicóptero na cabeça (?) dum destes pobres-diabos e ele a pensa enviada por um deus); lembram, fisicamente, algo meio simiesco, meio humano, australopitecos tamanho-família - não se parecem nem mesmo com os negros do resto da África. Acontece com eles que, em períodos de dificuldades, como secas, eles se reúnem e cantam, em volta duma fogueira no centro da aldeia, canções de intrincados padrões rítmicos e elaboradas melodias (uma verdadeira gritaria dos infernos) apelidada pelo antropólogo que acompanhava a tribo de "trance dance", dança do transe (em português nome sugestivo, com o duplo sentido e a falta de sutileza necessárias para algum destes grupos de música "baiana"). Supostamente, o xamã da tribo entrava no tal transe e, através dele, curava todos os aldeões de seus males e aflições. E todos cantavam, como se acreditassem nessa patetada fervorosamente. E eu, que nunca me lembro de ter acreditado num deuzinho sequer? Acho difícil o bastante acreditar no que quer que seja. Minha própria existência me parece impossível e absurda. Por que é tão difícil para mim acreditar em algo? Em qualquer assunto. Fica cada vez mais evidente meu descaso e minha descrença, crônicos e infinitos, ao que parece. Tropicanalha Gilberto Gil no programa (nacional, gratuito, empurrado nossa goela abaixo) eleitoral do partido verde: "O verde. O verde. O tropicalismo na política. Aquele abraço." Campos Bros. Augusto de Campos traduziu, com José Paulo Paes, o ABC of Reading, de Ezra Pound. Chamaram de ABC da Literatura. Yuck. O nhém-nhém-nhém de Ivanov O verbo divertir não é a palavra exata - mas diria que me entreteve bastante a peça Ivanov, de Anton Tchekhov, que acabei de ler. Além do fantástico talento para criar diálogos e situações cheias dum refinado humor, minha atenção foi cativa de sua maestria em individualizar cada um dos personagens, dando-lhes o toque de vida que tem de dar o grande autor para assim também torná-los grandes. A peça até seria considerada por alguns (inclusive o autor) uma comédia, mas a tragicidade dos eventos que a fazem e minha dolorosa identificação com os sentimentos atormentados do personagem principal me impossibilitariam de assim chamá-la; Mas ela é muito boa, e em muitos momentos extremamente engraçada, como na cena em que a burguesa percorre os cômodos da casa apagando as velas e reclamando de quem as deixou acesas. Os personagens são memoráveis: irritei-me com Kósykh, o jogador que passa a peça inteira reclamando de sua sorte na última mão, diverti-me e fiquei fascinado com o conde Shabelsky, aristocrata que faz de sua decadência algo intrigante e atraente, e apaixonei-me por Sasha - como não poderia deixar de ser - além de identificar-me com Ivanov. Partilho muito de seu desgosto intrínseco com a vida, sua frustração um tanto amarga e exagerada com as pessoas e até com seu destino e consigo mesmo, sua exagerada misantropia e do consequente desespero gerado por tudo isso. Não posso contar muito da peça, que já é curta demais; basicamente Ivanov é um rapaz hamletiano, let's put it this way, na idade e em seu transtorno, que a um certo ponto de sua vida descobre-se incapaz de sentir o amor pelas pessoas e pela vida, amor este que julgava infinitos em seu interior. Casara-se com uma mulher que amava, judia, que sacrificara sua família (e consequentemente, herança) e religião para ficar com ele - mas não mais a amava, e descobre-a tuberculosa crônica ao mesmo tempo. Ivanov, que nunca fora bem-visto, começa a ser execrado pelos burgueses de seu círculo social; a falta do dote por parte dos pais de sua esposa passa a explicar sua repentina "falta de amor". Dramas que parecem banais, contados assim tão mal por mim, nessa época de telenovelas; mas a caracterização dos personagens e o estilo de Tchekhov concedem o prazer necessário a elevar a obra à categoria de arte, coisa que falta às tais novelas. Os comentários sarcásticos de Shabelsky, do bêbado Lebedev, ou mesmo o fantástico nhém-nhém-nhém de Ivanov, que personifica o eterno descontentamento da alma humana, num de seus retratos mais geniais e também mais histéricos; e talvez, por isso mesmo, mais humanos. Some witty remarks, by Mr Wilde D'O Crítico enquanto artista: "ERNEST: Mas, meu caro colega - perdoe-me por interrompê-lo - você parece-me estar permitindo que sua paixão pela crítica leve-o um tanto longe demais. Pois, apesar de tudo, mesmo você tem de admitir que é muito mais difícil fazer uma coisa que falar sobre ela. GILBERT: Muito mais difícil fazer uma coisa que falar sobre ela? Não mesmo. Este é um claro erro popular. É muito mais difícil falar sobre uma coisa que fazê-la. Na esfera da vida real isto é claramente óbvio. Qualquer um pode fazer história. Somente um grande homem pode escrevê-la. Não há modo de agir, nenhuma forma de emoção, que não compartilhemos com os animais inferiores. É somente através da linguagem que nos elevamos acima deles, ou acima uns dos outros - pela linguagem, que é a mãe, e não a filha, do pensamento. Ação, de fato, é sempre fácil, e quando nos é apresentada na sua forma mais intensa, porque mais contínua, que é como acredito ser a real indústria, torna-se simplesmente o refúgio de pessoas que não tem absolutamente nada para fazer. Não, Ernest, não fale sobre ação. É uma coisa cega dependente de influências externas, e movida por um impulso de cuja natureza é inconsciente. É uma coisa incompleta em sua essência, porque limitada pela sorte, e ignorante de sua direção, estando sempre em discórdia com sua meta. Sua base é a falta de imaginação. É o último recurso daqueles que não sabem sonhar." Rafael Azevedo |
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