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Segunda-feira, 24/1/2005 Desconstruindo Marielza Andréa Trompczynski (Este texto pode ser considerado uma continuação de minha coluna anterior, apesar da leitura daquela não ser imprescindível para a compreensão deste). Tenho o defeito moral de assistir ao Big Brother Brasil. Torpeza de espírito. Mas este show conseguiu fazer-me entender algumas das tendências do pensamento(?) brasileiro desses últimos anos. Nos primeiros dias desta quinta edição estavam todos os participantes já acomodados, cheirosos, bonitos e comportadíssimos. Chega, por sorteio, a Marielza. Com todos os palavrões, a feiúra, a má-educação do brasileiro típico. Ficaram os jovenzinhos sociáveis num imenso mau-estar. Encarar assim o Brasileiro Típico é algo que pede bom estômago e, a Marielza é muito mais que apenas um dos participantes de um reality show, é um fenômeno social. Vejamos o Lula, quando chegou à presidência. Falo como observadora leiga em política: achei que ele não tinha cara de presidente, e, pior, bebia cachaça. Estávamos acostumados com o presidente sociólogo discursando em francês, vestindo lindas gravatas e comentando Derrida. E chega, por votação, o Lula. Os personal stylists estão aí para isso e ele vestiu gravatas finas também. Assim como com a Marielza, longe de suportarem encarar à força o vergonhoso ancestral (ou o espécime mais evoluído?) e tolerar seu comportamento, fizeram os participantes desta quinta edição do BBB uma reunião, decidiram pedir a ela para controlar os maus-humores, que tentasse não apelidar ofensivamente aos outros, enfim, civilizá-la. Foi uma pândega ver as garotas à moda miami beach a maquiarem e pentearem. Fariam tudo para dissimular a cara da Marielza, eles mesmos tiveram aquele trabalhão todo antes: nasceram alguns em boa família, siliconaram-se outras para imitar o padrão norte-americano, foram à faculdade, pintaram e alisaram o cabelo ruim. Ninguém aceitaria que fosse tudo por água abaixo. Até o fim do programa, acredito que ela aprenderá a comer de boca fechada e talvez a pedir licença. O Lula. O Lula é a Marielza no poder, no maior poder possível neste país. Não poderia apenas vestir-se melhor e comportar-se à mesa. Então, comprou aquele avião. Em tom acadêmico, o mecanismo de funcionamento da Marielza é: ela precisa impor-se, primeiro com coisas, note-se a proporção do objeto externo que Marielza usa para obter status relativa ao papel que desempenha. No BBB 5, um vestido. Na presidência, um Airbus de R$ 153 milhões. Funciona, por mais fútil que pareça. No BBB Marielza se aconchega no ombro de Ciarelli, o rico; basta ver a última pesquisa Datafolha sobre o crescimento da avaliação positiva de Lula com os chamados "ricos" para ver que ele também. Ela contenta-se com coisas materiais apenas? Não. A Marielza quer dominar também as relações exteriores e chegou ao Instituto Rio Branco. Ela pode ser diplomata já que a língua francesa e a inglesa não são mais provas eliminatórias no exame de admissão na carreira diplomática. Acredito que logo Marielza conseguirá acabar também com o exame da OAB e criar o seu próprio Sistema de Cotas nas universidades. Para muitos o jeito é disfarçar. Ali vai um assobiando e com poderes de pensamento imaginando-se em Paris. Rimos do Brasil e já nem gritamos contra ele, que solução? Os Brasileiros Típicos Porém Disfarçados do Big Brother e até eu mesma, havíamos já relaxado, imaginando que ela havia entrado nos eixos. Mas um segundo foi o suficiente para fazer meus ossos gelarem. A vi olhando para mim, fumando vagarosamente um cigarro Derby. Através da tela ela mirou meus olhos acuados e a ouvi, como numa espécie de transmissão telepática: "tô só passando cerol na mão, mina, a chapa vai esquentá." Bom mesmo era no tempo do Getúlio... Flagrei-me nestas férias dizendo frases como: "ah... mas no tempo do Getúlio...", como uma velha e saudosista titia dos pampas. O romance histórico de Juremir Machado da Silva fez-me sonhar com um tempo em que os homens tinham brios e matavam-se para não suportar uma humilhação. Amei Getúlio em um capítulo, odiei em outro -o autor é um mestre da contradição e da arte de fazer duvidar- e, em um minuto eu tinha certeza de que a maior figura de nossa história era um herói, no seguinte, um grande canalha. Prefiro agora acreditar que foi um grande homem, rodeado de idiotas que fizeram as coisas erradas nas horas impróprias. Ele ficou no meio de dois gigantes do jornalismo: de um lado, Samuel Wainer, de outro, Carlos Lacerda. A paixão de Getúlio pelo marketing político era hitleriana e o DIP esforçava-se para que parecesse mais e mais, publicando os elogios de Mussolini a Getúlio. Estava sempre em todas as notícias, umas destruindo-o (Lacerda), outras idolatrando-o (Wainer). O atentado contra Carlos Lacerda na rua Toneleros nunca foi descrito com tal minúcia de detalhes e transforma-se em um crime de que parece impossível Getúlio tivesse conhecimento. Que bosta. Erraram o Corvo. Vai saltar merda para tudo quanto é lado, mesmo em quem não tem nada com isso. E saltou. Depois dele, toda a sinfonia de agosto se encaminhou para a morte. Não havia nada que em mais boa hora pudesse acontecer de vitorioso para Carlos Lacerda do que o atentado inexplicável e estranho, e o Corvo dá o xeque-mate nesta partida de xadrez em que os muitos peões foram incapazes de ter a mesma reflexão e introspecção antes de cada movimento do Grande Ditador. Por alguns momentos, a impressão que tive foi a de que Gregório, Lutero (o filho) e Lacerda foram marionetes de alguém com mais astúcia e maiores interesses. Dar a visão ao leitor para compreender Gregório Fortunato foi um dos maiores méritos de Juremir Machado da Silva. Aquele que era só um lambedor das botas do pai dos pobres passa a ter uma dimensão mais humana. Assassina, mas humana. Gratidão, veneração. Getúlio dera todo o poder, prestígio e o despertar da inveja alheia a um negro de estância que tinha tudo para ser um coitado na vida. Fortunato chegou a colocar seu próprio corpo duas vezes na linha de tiro para defendê-lo. Nunca o Negro que em criança invejara as pandorgas dos meninos brancos nas Semanas Santas do Rio Grande chegaria tão longe. As Bem-Amadas, suas saídas alegres, anônimas que aliviavam a tensão, longe de não terem importância, a elas se dedicava e quase sofria quando os romances acabavam, extasiando-se em seguida com o próximo. Uma vez a Bem-Amada que perdeu-se no amor verdadeiro por Getúlio procurou-o no Catete pedindo atenção, ele definiu então qual era a real função dela: adoro o teu corpo e o teu jeito, mas, na minha vida, a Bem-Amada deve ser como um espírito. Agosto, mês de cachorro louco Vinte e quatro anos antes do suicídio, ele havia escrito sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso. E Getúlio, para cumprir a palavra dada em manchete ao Última Hora, "Só morto sairei do catete", mata-se com um tiro no peito. Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte. Acrescente-se a fraqueza de amigos que não me defenderam nas posições que ocupavam, a felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei com honras e mercês (...).Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos (...). A resposta do povo virá mais tarde. O país é sacudido pelo tiro, a população ataca as redações dos jornais e tudo que se relacionasse com a UDN, os Estados Unidos, ao lacerdismo. Gritavam o nome do morto enquanto atacavam a Embaixada Americana e queimavam suas bandeiras. Lacerda ainda diz, antes de fugir para o Galeão com medo de ser linchado, que ninguém veste pijama para se suicidar. Os amigos sentem-se culpados, choram como guris cagados, eram apenas uns fracos, como havia dito Getúlio. O que é honra? Era o tempo da honra e do orgulho. Dos colhões. Apesar de todas as torturas, vinganças, assassinatos -até mesmo a machadadas- da época, pensei, como sempre, que eram os homens daquela época feitos de outra matéria. Mas não. Getúlio é quem era. O suicídio era um questão de honra, mas perdeu seu significado original: jovens japoneses depressivos atiram-se dos arranha-céus, cocainômanos paranóicos usam overdoses propositais, donas-de-casa entediadas tomam água sanitária. Matam-se por fraquezas humanas, mas Getúlio, que era feito de outra matéria, matou-se por fortaleza. Uma afronta! Ele é uma afronta. Faz uma criança de seis anos pensar nos sentimentos de Beethoven quando compôs o quarto movimento da Nona Sinfonia. Apresentou, há alguns dias, o "Trenzinho do Caipira" de Villa-Lobos, num especial sobre o grande compositor, e indaguei o quê é isto, que sinto mas não entendo, a Música. Adágios, andantes, palavras que antes não significavam nada, sinfonias completas, curiosidades sobre os compositores e as composições. Artur da Távola com Quem tem medo da Música Clássica (TV Senado, sábados e domingos às 10h e 18h) resiste ao Fenômeno Marielza e surpreendo-me com esperanças delirantes de que o belo sobreviverá e que Marielza renderia-se se ao menos ouvisse aquele quarto movimento. Ah... ela se renderia! Aprendi com uma frase dele, repetida no final de todos os programas, a tocar uma música em meu espírito na solidão daquelas horas para pensar na vida: "Música é vida interior. E quem tem vida interior nunca padecerá de solidão". Queria apenas agradecê-lo. Para ir além Andréa Trompczynski |
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