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Sexta-feira, 11/2/2005 Uma conversa íntima Eduardo Carvalho A melhor leitura não é necessariamente a do melhor livro. Porque livros não são - e não podem ser - enfileirados do melhor para o pior. É impossível ordená-los assim, tão precisamente. É até compreensível que se liste os mais importantes ou mais influentes. Mas não faz sentido selecionar, em literatura, os de mais alta qualidade - como se o livro que estivesse em primeiro fosse melhor do que o quarto colocado. A qualidade de um livro está na impressão que ele causa no leitor. E essa impressão é sempre abstrata e solitária: um livro causa diferentes efeitos em diferentes pessoas e em diferentes épocas - e, portanto, a avaliação de sua qualidade pode variar muito. Não existem livros - digamos assim - superiores. Esta é a regra. E esta é a exceção: os clássicos - que são livros que, independentemente de quando e onde foram escritos, são sempre marcantes a qualquer leitor. Quer dizer, a você: porque mesmo uma lista de clássicos é muito pessoal. E cada leitor - apesar das listas oficiais - acaba compondo a sua. São livros que podem ter sido escritos há cinco milênios ou há cinco anos; em Key West ou em Kyoto; por um anão banguela ou por uma camponesa elegante. Nada disso importa. Não é o modelo da sandália de Ulisses que nos interessa na Odisséia; não é esse tipo de inspiração que buscamos numa obra-prima. Um clássico nos ensina a compreender com mais clareza sentimentos e conceitos complicados, como a saudade, a amizade, a beleza, a morte, a vida. Ou seja: um clássico trata de assuntos constantes, universais - enquanto modelos de sandálias entram e saem de moda. E se for assim - se cada leitor tiver a sua lista de clássicos - então nunca consideramos clássicos os livros que ainda não lemos. O que não faz sentido. E não é verdade: podemos também incluir numa lista individual uma espécie diferente de clássicos: os clássicos que nunca começamos a ler. São livros que sabemos que um dia vamos ler e que vamos gostar - mas que a hora não é agora. Essa combinação entre a fase da nossa vida e o livro que lemos é essencial para se descobrir um clássico. E essa impressão depende também - e, eu diria, principalmente - do momento em que ele é lido. Nunca recomendaria Kafka a um menino de 16 anos; e não deixaria que ele completasse 18 sem ler Minha Formação, de Joaquim Nabuco. Acabei de ler Brideshead Revisited, de Evelin Waugh, na semana passada, por exemplo; foi uma das leituras mais agradáveis da minha vida; talvez a sensação fosse outra se eu não estivesse, como Charles Ryder, na conexão entre Oxford e Paris. E assim - quase que por acaso - vamos descobrindo novos clássicos. Nesse processo, é importante saber o que ler e - talvez mais ainda - o que não ler. Ou o que reservar para um momento mais apropriado. Eu estou guardando, por exemplo, Guerra e Paz, que lerei antes da minha próxima viagem pela Rússia, mas só depois de Anna Karenina, do qual a primeira frase sempre lateja na minha cabeça. Antes ainda de Tolstoi, porém, pretendo ler The Master and the Margarita, de Bulgakov, que uma amiga especialista em Dostoievski considera um dos pontos mais altos da literatura russa. Essa recomendação sempre me deixou curioso. E, entre Bulgakov e Tolstoi, o ideal seria O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler: sua coleção de ensaios sobre literatura, que encontrei escondido na biblioteca da faculdade, me encantou enquanto eu deveria estudar Sistemas e Métodos, mas sempre adiei minha leitura de O Zero e o Infinito, há anos esgotado no Brasil. Koestler também estava na biblioteca da minha amiga. Os amigos são, geralmente, fonte confiável para recomendação desses clássicos que ainda não lemos. Sempre imaginei que Os Buddenbrooks, de Thomas Mann, fosse - apesar de sua estrutura exemplar - insuportavelmente entediante. E - mesmo já tendo o livro em português - acabei comprando, na Shakespeare & Co., a versão inglesa, para buscar os momentos de grandes risadas que, depois da página 80, um amigo me prometeu que o livro tem. Ainda estou na pagina 60 - e continuo confiante na empreitada. Porque um dos ensaios mais sensatos e serenos que li recentemente, extraído de Parerga e Paralipomena, de Schopenhauer, é o que eu menos esperava de um filósofo conhecido apenas como um pessimista que escrevia bem. E Parerga e Paralipomena foi recomendação desse mesmo amigo. E sei que, em literatura, estou pulando entre opostos: mas depois de uma conversa, em Oxford, com um amigo interessado pelo Brasil, fiquei até com vontade de ler Paulicéia Desvairada que, suspeitei, estivesse perdido na história. E uma amiga portuguesa - formada também em Literatura por Oxford - quase me convenceu a ler Macunaíma, que sempre desprezei cegamente. Quem sabe eu encontro, senão idéias, pelo menos um estilo em Mário de Andrade, menos ruim - ou menos duro - do que eu imaginei que fosse. Hemingway me decepcionou por isso: pelo mesmo motivo que foi tão admirado e tão influente: pela rigidez do seu estilo. Seus temas e seus personagens são interessantes, mas a forma que ele desenvolveu para descrevê-los - rápida, seca - é mais adequada para escrever e-mails. Acompanhada com o tempero certo, um pouco de gordura poderia dar mais sabor a sua literatura. Li dezenas de seus contos e reportagens, Ilhas da Corrente, O Sol Também se Levanta, Adeus às Armas, Por Quem os Sinos Dobram, mas seu livro menor e mais famoso, O Velho e o Mar, é para mim um bom exemplo de outro tipo de clássico: os clássicos que nós começamos mas - pelos motivos mais diferentes - ainda não terminamos de ler. Comecei três vezes a ler O Velho e o Mar. Decorei algumas passagens. Mas nunca acabei o livro: o último exemplar que eu tinha ficou num ônibus que, há cinco anos, depois das férias de verão, me trouxe de Barretos para São Paulo. Esse é o tipo de clássico em que não insisto mais: lerei mais tarde, mais velho, talvez quando precisar da força e da coragem que o livro inspira. Mas não foi só O Velho e o Mar que parei no meio. Interrompi também Dom Quixote, com quem, mesmo folheando o livro eventualmente, dei grandes gargalhadas. A minha lista de livros nesta categoria compete em tamanho com a de clássicos que realmente li - se não for maior. E inclui livros que, em determinada época, eu nem deveria ter começado - A Origem das Espécies, A Origem da Riqueza das Nações, O Capital - e livros que estou ansioso para retomar a leitura: As Confissões de Santo Agostinho, 1984, O Ateneu, Lord Jim. Conrad deve ser o autor de quem mais comecei a ler livros - como Nostromo e O Agente Secreto. Proust é um dos meus autores favoritos que - se considerarmos todo o Em Busca do Tempo Perdido um livro só - nunca li um livro inteiro, apesar de gostar de comparar suas versões em português. Alguns clássicos, aliás, parece que foram escritos para ficar nesta categoria: na de clássicos que nunca terminamos de ler. Vários livros de Dickens - mesmo com passagens fabulosas, como Oliver Twist e David Copperfield - foram artificialmente alongados para vender folhetim, e hoje ficam cansativos demais. E Os Sertões, de Euclides da Cunha, é talvez o maior exemplo brasileiro desta divisão: o livro ficaria bem menos extravagante e mais palatável em 200 páginas - como de fato ficou, numa edição condensada. E o tijolo, ou melhor, o bloco de concreto em que Roberto Campos reuniu suas memórias é engraçado e instrutivo, mas o custo de oportunidade é alto: com 1200 paginas, podemos ler seis livros em vez de um. Mesmo numa ilha deserta, em Cem Anos de Solidão - que, por sinal, não completei - seria difícil terminá-lo. Desculpe-me o trocadilho. Também não acabei Robson Crusoé, aliás. E nem As viagens de Gulliver, de Swift, e A Ilha do Tesouro, de Stevenson - que são duas das minhas maiores frustrações. Não sei se tenho mais idade para ler o resto de On the Road, de Kerouak. Acho que nunca mais - com uma fila tão longa - acabo Os Miseráveis, de Victor Hugo. Não sei quando volto a ter interesse por Sagarana. Eu até teria por Lolita, mas seria exclusivamente estético - e, por esse motivo, prefiro começar as memórias de Nabokov. E sobre estética aprendi um pouco com a Poética de Aristóteles - um pouco, porque, apesar de curto, desisti no começo também. Aos 17 anos, não consegui absorver as lições do Aristóteles. Preferi Platão, aliás - e especialmente O Banquete, Sobre o Amor. Talvez eu não tivesse - como dizem? - vocação artística, ou fosse muito novo. Também nunca me encontrei descrito em Retrato de um artista quando jovem, de Joyce. Peço mil desculpas, de novo, pelo trocadilho. Mil e uma, porque trocadilho não é palavra que se use. E confesso que - apesar de fascinado pelo ensaio de Borges sobre os seus tradutores - nunca li Mil e uma noites, nem no original. A História da Filosofia Ocidental de Bertrand Russell, entre os meus clássicos, é um dos mais adequados à categoria dos iniciados mas não lidos. Li o primeiro volume da minha edição em espanhol - que, com mais de 600 páginas, exigiu esforço. E parei depois dos Escolásticos, num momento em que os experts recomendam não mais continuar. Russell estava apressado pelos seus editores e confuso com a sua vida pessoal. O livro saiu depois distorcido, irregular. E eu mesmo não estava mais agüentando. Foi como se eu e Russell tivéssemos nos entendido: e combinado de que eu não precisava ir em frente, sem me sentir culpado por desprezar o livro. Afinal, eu já havia passado, mais novo, por esses mesmos personagens, num livro mais suave, mais leve - e mais adequado, portanto, ao conhecimento que minha adolescência exigia. Foi um dos primeiros clássicos que - aos 15 anos - li completo, maravilhado: A Historia da Filosofia Ocidental, de Will Durant, com tradução de Godofredo Rangel e Monteiro Lobato. Não sei se foi o estilo da tradução ou se foi o assunto: mas aprendi, com Will Durant, que certos livros merecem ser lidos inteiros. E - depois dos clássicos nunca abertos e dos clássicos não terminados - esta é a terceira categoria em que separo os meus clássicos: a de clássicos que eu realmente li. Escrevi outra coluna sobre os meus dez livros favoritos - e sobre como, em determinados momentos da minha vida, fui influenciado por eles. Maughan - com O Fio da Navalha - foi o meu primeiro escritor preferido: escrevendo para um jovem desesperado para conhecer o mundo. Exupéry, em Terra dos Homens, foi o segundo, insistindo na importância de se desenvolver um espírito independente e, ao mesmo tempo, prático. Conrad deve ter sido o terceiro, com Juventude - mostrando como ela pode ser romântica e bem aproveitada, mesmo num barco velho a caminho de Bangkok. Minha lista, hoje, inclui dezenas de nomes de livros e de autores - mas não consigo ordená-los por importância. Cada um foi decisivo num determinado momento. Fiquei encantado com a pureza adolescente de Radiguet - em O Baile do Conde D'Orges, especialmente - e com a sensibilidade quase religiosa e surpreendente de Wilde, em seu Contos de Fadas. E Huckeleberry Finn e Peer Gynt - entre as suas aventuras fantásticas, projetos megalomaníacos e piadas ingenuas - foram dois grandes amigos: dois personagens completos, vivos, que me animaram em várias situçoes. Essa sensação de estar em casa nos lugares mais remotos - dormindo num trem em Nivi Novgorod, passando a madrugada numa praça em Siena, atravessando florestas num barco no Maranhão, rodando num jipe a Península Valdez - tentei aprender com eles. E sempre, em todas as viagens, procurei estar em boa companhia - mesmo que sozinho. Encontrei Travels with Charley, de Steinbeck, por acaso, numa livraria em Toronto, antes de viajar pelo Canadá. Não serviu como guia turístico, mas como lição do que, em uma viagem, se deve buscar. Steinbeck não visita um museu nem parque de diversões. E se mistura com fazendeiros, pescadores, caminhoneiros, enquanto atravessa os Estados Unidos em seu trailer adaptado, o Rocinante. Descobri que Steinbeck, como eu, considera Montana o estado mais bonito dos Estados Unidos. Do Canadá, eu preferi British Columbia - apesar de desconfiar que certas regiões desabitadas em Yukon, por onde passou Jack London, devem ser encantadoras. Isso de uma perspectiva, digamos, geográfica. Agora na Europa, preferi The Europeans, de Henry James, que desenha com precisão microscópica a personalidade européia, ou pelo menos o que ela foi quando, em meados do século 19, estava em seu apogeu. Henry James - um homem charmoso, sensível e cosmopolita - deveria ser o escritor preferido das meninas mais sofisticadas, se as que se consideram assim não se deslumbrassem fácil com a pseudo-sofisticação de seriados-suruba. Não há merchandising de marcas de sapatos em The Portrait of a Lady, aliás. Essa postura de Henry James - de um viajante natural, curioso mas imune à babação de ovo que ataca os mais ingênuos durante viagens - pode ser encontrada em outro Henry: em Henry Adams, que escreveu a biografia provavelmente mais influente entre os homens mais influentes: The Education of Henry Adams. Acho que o fato de ele não ter nada a reclamar do mundo - "que o tratou tão gentilmente" - deve ter facilitado e acelerado os seus estudos. É por isso, também, que não acho que o contato direto com a violência, a pobreza, a corrupção - nem em arte nem na vida - é pedagógico. Viveríamos muito melhor - escreveria Adams - se não buscássemos sofrimentos desnecessários; se não inventássemos tensões inexistentes; se não soubéssemos, enfim, quão ruim a vida pode ser, quando nos expomos regularmente à natureza humana em sua expressão mais miserável. Eu acho saudável evitar esse contato. A felicidade é limitada; o sofrimento pode não ser. E outro livro - que não sei nem se existe em português, mas está em qualquer lista dos mais influentes do século - é Men's Search for Meaning, de Viktor Frankl, que passou pelas mais terríveis experiências no Holocausto mas, sem se alavancar nisso, fundou a Logoterapia: uma espécie de alternativa à Terapia do Alto Astral para pessoas educadas. E um dos elementos mais importantes de um romance é justamente esse: é que os personagens sejam educados. Por isso não me interesso muito por Bukowski ou, por enquanto, Nelson Rodrigues. E é exatamente por isso que senti com tanta força o impacto de Contraponto, de Aldous Huxley - mesmo que reclamem da sua estrutura. Seus personagens - arqueólogos, viajantes, empresários, escritores - são, independentemente da profissão, pessoas com quem você poderia manter um bate-papo estimulante. E essas pessoas conversando, no livro, sobre o paradoxo do progresso, por exemplo, é combustível cerebral para semanas. E me desculpem a sinceridade: Madame Bovary é um livro que, ao contrário, me tocou bem mais pelo estilo - pela precisa montagem do romance por Flaubert - do que pela sua sempre anunciada profundidade psicológica. As Aventuras do Jovem Wherter, de Goethe, aliás, vai muito mais longe nos dois sentidos - na aparência e na substância - mas é um livro inadequado a espíritos muito delicados ou, se me entendem, em fases mais sensíveis. A esses, algo menos depressivo, num ambiente mais próximo - como Fitzgerald em Este Lado do Paraíso - pode ser delicioso, apesar de eu desconfiar que ele não escreveu nada melhor do que The Great Gatsby. E nunca leia Morte em Veneza se você estiver em crise com a sua sexualidade - senão vai acabar como Visconti, transformando um debate estético numa obsessão pedófila. Decidi recentemente ler todos os livros de Machado que tenho em casa - que são literalmente todos os livros de Machado. Comecei pelo fim: por Memorial de Aires e, de volta ao começo, Brás Cubas. Interrompi Quincas Borba no meio. A cada página que leio de Machado fico paralisado. Nada poderia ser mais resumido, mais preciso, mais engraçado, mais perfeito. Não conheço um estilo superior em português. Suas frases são tão naturais e fluentes que impõem ao texto um ritmo que - antes de ler Machado - nunca imaginei ser possível existir. Depois de descrever a formação da sua família, por exemplo, Brás Cubas solta essa, me obrigando a interromper a leitura: "Desta terra e deste estrume nasceu esta flor". Não conhecia nada tão bobo e tão fino. Holden Caulfield, de O Apanhador no Campo de Centeio, concordaria, ou escreveria exatamente isso se - como Salinger - escrevesse bem. Acho sua fuga desesperada meio sem graça, e, se precisar escolher, prefiro disparadamente Huck Finn, de Twain. Mas claro: estas foram - por cima - algumas das minhas leituras. Eu leio assim também, na verdade: tranqüila e superficialmente - no ritmo de um ensaio de Montaigne. E estou em Londres, sem acesso a minha biblioteca ou a lista de livros que li, recorrendo exclusivamente a memoria sentimental. A influência da leitura, aliás, acontece de modo invisível e natural. Ninguém vai ler um livro e se vestir como um personagem de Guerra nas Estrelas. A literatura não costuma atrair esse tipo de fã. Não é função da literatura incentivar clubes nem - acredito - grupos de discussão. A apreciação literária - a leitura dos clássicos que você escolher - é uma atividade individual e quase um ritual sagrado. Está muito mais para a devoção secreta numa igreja remota do que para uma pizza com os amigos. A leitura não é uma atividade econômica nem social. É uma experiência que - em segredo e baixinho - conversa apenas com o espírito. E por isso fala sozinha para certas pessoas. Só que não é por ser assim - solitária e abstrata - que a literatura se mantém distante da realidade. Muito ao contrário: é esse esforço pessoal de imaginação, estimulado pela literatura, que nos ajuda a viver com mais conforto e segurança no mundo. Nem sempre, claro, mostrando um mundo seguro e confortável, mas apontando os lugares onde os problemas podem estar. E mostrando, também, caminhos em que a terra e o estrume - usando a expressão de Machado - já foram colocados: e onde basta, agora, colhermos a flor. A perspectiva de um escritor competente pode nos revelar opções desconhecidas e melhores do que as que - condenados a uma rotina maçante - nos acostumados a aceitar. E esse efeito positivo da literatura pode ser decisivo mesmo em assuntos práticos, comuns. Não é por falar intimamente à alma que um livro precisa - ou pode - estar distante de nossa vida cotidiana. Os clássicos são os livros que nunca estão. Eduardo Carvalho |
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