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Segunda-feira, 7/2/2005
Carta aos de Além do Jardim
Andréa Trompczynski

Por que tendes tantas preocupações sem sentido? Dizeis em vossas cartas que sou só, que não faço passeios, que preciso "viver a vida"? Pedis notícias para saber se estou bem. Contarei um pouco sobre meus dias para que cessem vossas inquietações, e percebereis que, ao contrário do que pensais, tenho muitos amigos e afazeres aqui em minha villa e os dias tornam-se curtos para receber a todos, executar os trabalhos diários e cumprir a jornada de estudos.

Todas as manhãs, nas horas em que me dedico à jardinagem, antes mesmo de sair à varanda e calçar as luvas, Stephen Dedalus (1) já está esperando-me sentado no banco perto das rosas amarelas. Chega ao raiar do dia, para não faltar às aulas do Colégio Jesuita. É uma agradável companhia que há muitos anos visita-me, vi-o crescer! Conheço seu pai, o Sr. Dedalus, que deu a Stephen quando pequeno a alcunha de "Pequerrucho Fuça-Fuça", a qual emprestei e uso até hoje, irritando-o nos momentos em que ele precisa tagarelar seriamente.

Stephen foi um menino feliz até descobrir o Inferno. Amaldiçoados são os atavismos cristãos que fazem meu menino sofrer, que ele anda agora a chorar e penitenciar-se pela culpa de atos passados que, para mim, são tão inocentes quanto nossas horas a cuidar das flores. Este menino era de grande coragem, chegou mesmo a defender aos socos nosso querido Byron, que Boland, um pobre ignorante do colégio, teve a audácia de dizer ser um poeta que "não prestava". Mas agora... Stephen tem medo e já não luta por nada, apenas ora e ora em um terço que carrega no bolso das calças cinza. Ele nem imagina que percebo, mas o vejo entreabrir os lábios em mudas súplicas àquele Deus punitivo que fez um Inferno eterno para Seus filhos, ouço o cloc-cloc das pequenas esferas batendo na correntinha do rosário, mas deixo-o pensar ser vitorioso, disfarçar que está apenas protegendo-se do ar frio da manhã colocando as mãos nos bolsos.

Inculcaram os terríveis jesuítas naquela cabecinha que, ter procurado um consolo para seu amor em braços alheios e baratos, ter no corpo os chamados das paixões, era pecado digno das três penas espirituais. A Pena da Perdição, ou paena damni, segundo os mestres jesuítas de Stephen, é a certeza de estar no Inferno e nunca mais poder voltar à Deus. A Pena da Consciência é a perpétua lembrança dos fugazes prazeres passados, porém, lá, onde só há gemidos e ranger de dentes. A terceira e pior, a Pena da Intensidade. Estive às lágrimas quando ele me a descreveu. Esta, amigos, faz todas nossas conquistas humanas, todas as belas fraquezas de nosso espírito, estas que criam a música, as poesias, as pinturas, que fazem os suicidas deixarem cartas escritas com sangue para a amada, estas, serão no Inferno deste Deus, considerados malefícios, agravando as penas sofridas. Que tormentos podem criar a mente desses homens destituídos das belezas da alma imperfeita e humana! E que Paraíso insuportável será esse com anjos perfeitos tocando harpas eternamente para onde Stephen tem desejado ir. Eu amo os Deuses Gregos inundados de paixões até os cabelos muito mais do que a esse Deus intocável que desgraça um menino de dezesseis anos a franzer o cenho em rugas de preocupação e temor, enquanto espeta e sangra punitivamente os dedos nos espinhos das rosas amarelas.

Mas, continuo a fazer-vos saber de meus dias.

Há certamente algo errado com vossa visão, pois dizeis que sempre que aqui chegastes para visitar-me estou sozinha e que nada tenho a fazer. Nunca vistes meu inquilino que mora no quarto do sótão? Muito tenho a fazer, limpo o quarto de Gregor Samsa (2) todas as noites e levo-lhe o jantar. Ele pediu-me que só entrasse à noite, algumas coisas para mim nada estranhas têm acontecido e ele não deseja ser visto por ninguém. Minha discrição impede-me de revelar detalhes. Tenho por este "intruso" muito respeito. Ele é, perdoem-me não vos explicar melhor, o ser mais genuíno que já conheci. Um verdadeiro homem. Um dia, podereis encontrá-lo e ele vos mostrará na face tudo o que todos nós procuramos esconder com pós-de-arroz, talcos e missas. Não tem pago ele regularmente o aluguel, mas não importuno-me com isto. É um prazer tê-lo aqui.

Perguntais-me por amores ou flertes. É certo que ainda espero notícias daquele que saibeis ser a outra parte de meu espírito, o Coronel Aureliano Buendía (3) e, todas as tardes de quarta-feira, finjo estar espantando mosquitos no calor da varanda à espera de o entregador trazer a mim alguma carta sua, mas elas nunca chegam. Sei que há mulheres que passeiam na sua rede de campanha, na velha tradição de conceber filhos de guerreiros para fortificar o sangue da família, e sinto orgulho. Mesmo assim, as botas de Aureliano estão sempre muito lustrosas, por mérito de uma pomada de cera de abelha elaborada por mim. Tudo está pronto e em ordem e há um bule de café amargo sempre cheio, como preferem os Buendía, para o dia em que ele voltar da guerra e tomar coragem de pedir minha mão em segundas núpcias.

Enquanto isso, distraio-me em brincadeiras juvenis com um pretendente. O conheceis? Se não, ah, quanto estais a perder! Visconde de Valmont (4) é um cavalheiro, um homem sensível e gentilíssimo com as damas. Estive há um certo tempo imaginando que poderia fazer-me esquecer Aureliano. Mas, acabamos por tornar-mos apenas um pouco mais que amigos e assim está. Novamente, minha discrição não permite explicar-vos com todas as letras esta singular "amizade", confio em vosso entendimento. Recebo em minha casa as visitas de grande amiga do Visconde de Valmont, a amável Presidenta de Tourvel, que aplica-me lições incríveis de comportamento, vestuários adequados e, até mesmo jogos sociais dos enamorados. Ela é uma Deusa da Simpatia e minha grande mestra.

Nas sextas-feiras invariavelmente recebo para uma partida de loto ou uíste, a filha solteira do finado Sr. Grandet, Eugénie (5). Ela precisa escapar um pouco da multidão de pretendentes que estão ávidos por sua herança, mas, nenhum por seu amor. Conversamos e lemos poesia no salão, poesias tão belas de John Doone que, chego a escutar Gregor entreabrir a porta do quarto no sótão, o rangido, para ouvir um pouco mais daquelas palavras-bálsamo para sua solidão. Ela ajudou-me a escrever uma bela carta para Fermina Daza e Florentino Ariza (6), um casal amigo e apaixonado que partiu num cruzeiro naval e há meses não enviam nem sequer um bilhete com notícias! Que grande diferença entre esses amigos ingratos e Lemuel Gulliver (7), pois este envia-me semanalmente cartas detalhadas de suas viagens fantásticas, acompanho-o passo a passo, e sei que deixou Laputa e está agora em Balnibardi. Concluo que, apesar da ausência de notícias, Daza e Ariza estão bem, é o que diz minha intuição sobre os assuntos do amor.

Enfim, creio que minhas notícias possam tranquilizar-vos. Que apureis vosso olhar ao passardes por meus jardins e verais toda a vida que pulsa e o muito que há aqui para se fazer e aprender. Não tirais conclusões precipitadas sobre minha saúde mental, espiritual e social. Estou em boa companhia, aquietai-vos. Desculpo-me por não aceitar vosso convite aos passeios de verão. Há tanto a fazer aqui! Agora mesmo, obrigo-me a encerrar esta pois que está chegando meu professor de javanês (8), precisais conhecer, amigos, este fabuloso idioma exótico, têm sido as aulas deste respeitado professor disputadíssimas na cidade e não posso cometer o disparate de perder esta uma hora na companhia deste portento.

Adeus, fiquem com meu abraço afetuoso, eles estão a esperar-me.

Notas
(1) Retrato do Artista Quando Jovem, James Joyce.
(2) A Metamorfose, Franz Kafka.
(3) Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Márquez.
(4) As Relações Perigosas, Choderlo de Laclos.
(5) Eugénie Grandet, Honoré de Balzac.
(6) O Amor nos Tempos do Cólera, Gabriel Garcia Márquez.
(7) Viagens de Gulliver, Jonathan Swift.
(8) O Homem que sabia javanês e outros contos, Lima Barreto.

Andréa Trompczynski
São Mateus do Sul, 7/2/2005

 

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