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Quinta-feira, 10/2/2005
O crime e o castigo de um clássico
Jardel Dias Cavalcanti

"Precisamos de livros que nos afetam como um desastre, que nos magoam profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos. Um livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós."
(Franz Kafka)

Apesar do barulho ensurdecedor que a contemporaneidade vazia do mundo faz para tentar me capturar, fujo para o exílio da meia-penumbra de um quarto, e só, absolutamente só, mergulho num amplo universo criado por um escritor que me rouba do desesperado e inútil chamado exterior. Estou lendo um livro... E acrescento a essa minha aventura solitária, dia após dia, a leitura de outros livros.

O resultado é que alguns desses livros lidos colam-se a mim como que se tornando, posso dizer, minha segunda pele. Há mesmo, sem exagero metafórico, algo do resultado da leitura deles que atua no meu próprio sangue. A partir daí caminho pelo mundo levando comigo as suas vibrações eternas, que me fazem ver, pensar e sentir de uma forma inteiramente diferente de quando eu ainda não os havia lido. Só estes livros fazem história dentro de mim, pois me tornam sempre diferente do que eu era. Para o meu bem ou para o meu mal.

O tempo do mundo é diferente do tempo da leitura. Lá fora a velocidade é gritante, massacrante, sem profundidade, estéril, cobrando da vida das pessoas uma ação imediatista, sem meditação (o resultado disso é que todos acabam, com suas existências premeditadas, apenas esperando que alguém lhes diga que passo dar ou que comportamentos ter - bem-vindos à escravidão totalitária da vida moderna!).

Aqui, dentro do livro, é o contrário: o tempo se faz profundo, lento, silencioso e arrebatado pelo risco iminente. A linguagem não se congela e o pensamento transborda num rumor infinitamente inusitado; por vezes, tomado por alegrias que explodem em átomos vibrantes de luzes multicoloridas, outras vezes, enlameado por sentimentos que são tão densos como o temor da morte. Mas tudo vibra... para além do simulacro.

O silêncio daquela noite fria, o perfume e o sabor do chá preparado entre um capítulo e outro, o peso do livro, o seu volume, o cheiro de suas folhas envelhecidas, a cor e a textura de sua capa me habitarão para sempre, numa forma de lembrança indescritível, junto com a carga elétrica da existência de seu assustador personagem: Raskolnikov. Pois, afinal, eu estava lendo o clássico Crime e Castigo, do escritor russo Dostoievski.

Fico trancado em casa alguns dias, mergulhado no volume, lendo-o sem a mínima pressa, sendo interrompido apenas por um telefonema de um amigo: quer minha companhia para uma cerveja, quer sair um pouco de casa, respirar ar puro. Ele também deveria estar trancado em casa há vários dias, fazendo sabe-se lá o quê, talvez lendo. Saímos, sentamos numa mesa de bar e conto a ele que eu não estava aqui, na cidade, mas, virtualmente, em São Petersburgo, seguindo os passos de Raskolnikov. Ele me fala de suas leituras de A morte de Ivan Ilitch e Anna Karenina, outros clássicos russos que ele admira, contando de como também se transportou de forma extraordinária para outros mundos ao lê-los. Ele olha ao lado, para as mesas do bar, fazendo o seguinte comentário: "vê como tudo é sempre igual, podemos passar meses sem vir aqui e tudo parece que foi congelado numa mesmice irremediável, sinto-me até culpado de tê-lo retirado de sua vibrante São Petersburgo, mais vibrante do que o mundo ao nosso redor".

Comento com ele a idéia de Ítalo Calvino sobre os clássicos: "É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo (...). É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível".

Apenas uma cerveja e decidimos cada qual voltar ao seu próprio ninho. Retomo a leitura e rapidamente estou perante o crime de Raskolnikov, um crime sem finalidade palpável, sem nenhum interesse em ser uma manifestação contra a injustiça social. Um crime que é apenas um pretexto para uma experimentação existencial. Atordôo-me em meio à leitura, não sabendo mais se penso em Raskolnikov ou se ele pensa-se em mim. Fui eu que cometi aquele crime? Não sinto náusea. Algo tomou meu ser, transformando-me, através de uma assustadora possessão demoníaca, no personagem de Dostoievski. A vida global de Raskolnikov, com todas as propriedades de sua personalidade, se transmuta na minha própria existência. Não há mais como pensar o livro, o autor, a época ou o assassinato senão pensando a mim mesmo. Não existe mais o livro como algo separado de mim. Parafraseando o próprio Raskolnikov: "as suas convicções agora são as minhas? Poderei ter acaso outros sentimentos, outras idéias que não sejam as dele?".

E o que eu era antes, todo meu passado, afinal, meus pensamentos de outrora, minhas aspirações, meus projetos, essa paisagem que me é conhecida e luminosa, tudo, tudo isso me parecia enterrado num abismo profundo e quase invisível sob meus pés. Tudo evolava-se no espaço e eu via desaparecer todas essas coisas, parecendo, neste instante, ter-me desligado de mim mesmo, como se o laço que me prendia ao meu passado fosse brutalmente cortado com uma tesoura. A possessão se completou...

Ao contrário do que muita gente gosta de dizer, os livros, ou a arte em geral, nem sempre nos humanizam ou nos sensibilizam para o nosso bem ou para o bem da humanidade. Da mesma forma que alguns livros despertam nossa sensibilidade para os sentimentos profundos da alegria, do amor ou para a poesia da existência, outros livros oferecem o perigo de nos tornar mais frios, mais sofríveis, mais melancólicos, mais destrutíveis e, como o Werther de Goethe nos mostrou ao produzir uma onda de suicídios, um livro pode nos tornar perigosos para nós mesmos.

E Crime e Castigo, o que tornou-se para mim? Tornou-se o lugar onde a minha alma foi submetida às influências mais estranhas, sombrias e... perigosas. A arte substituiu em mim a vida.

Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 10/2/2005

 

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