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Quarta-feira, 9/3/2005 Arquitetura e harmonia Ana Elisa Ribeiro Falar de arquitetura nesta coluna soa estranho. E é, se você que lê tiver a expectativa de saber sobre truques de acabamento e telhados complicados. O caso aqui é outro: a arquitetura das palavras, que é executada com a maestria de um Niemeyer pela gaúcha Cíntia Moscovich, no livro Arquitetura do arco-íris (Record, 2004). Entre pela porta da frente, pise com o devido respeito e adentre a casa de uma família judia que carrega o holocausto nas costas, mesmo sem querer. Conheça a personagem criança, que cresceu com avó e pais e teve um pintinho de estimação assassinado. O conto é de extrema delicadeza, embora o tema seja áspero e doloroso. Judeus e não-judeus sentirão queimar as faces à medida que conhecerem o quanto é baixo o preconceito. Dos dez contos que compõem a obra, alguns se alojam na memória do leitor e passam a fazer parte do arquivo das coisas belíssimas que se lêem na vida. A paixão por um cego, o sexo pelo tato, as cenas insinuadas de amor, a elegância das narradoras, sim, todas mulheres, tudo faz parte de um mundo no qual se entra, provavelmente, pelo arco-íris e não se sai fácil. Ler Moscovich, neste caso (e imagino que não menos em outros), é compartilhar uma experiência de falar suave e transmitir uma mensagem rude. Com a sensatez de uma escritora experiente, Cíntia urde personagens em histórias aparentemente banais, no entanto de extrema importância para o mundo dos afetos, dos sentidos, das afeições. Enfim, a arquitetura das humanidades, das relações, sejam elas quais forem, e suas incompreensões e ligeirezas. É lamentável que se sinta tanta vontade de comparar quando se lê um autor contemporâneo. E embora eu saiba disso, não me contive. Foram balísticos meus pensamentos que insistiam em cair na experiência de ler Clarice Lispector e resvalar em Cíntia Moscovich. Não são iguais e nem gêmeas, mas são narradoras contumazes e elegantes de um cotidiano cinco centímetros acima do chão. O olhar de quem alucina aparece nas duas, embora Moscovich tinja com suas cores a obra que, de fato, lhe pertence. São traços desta uma inteireza e uma tônica etnográfica que aquela não tinha. E assim vão se fazendo, na autora, os estilos muito particulares; no leitor, as referências e a intertextualidade, obrigatória para quem deseja um mínimo repertório. Arquitetura do arco-íris foge à regra dos livros de contos que contêm pinceladas de pequenas histórias, não é de microcontos e nem tampouco está para a literatura como a pornochanchada esteve para nosso cinema. Não é um livro cujo nome foi transplantado de um conto homônimo e nem quer ganhar aplausos pelo virtuosismo. Trata-se de um livro cultivado, escrito por uma autora sem pressa, que respirava enquanto o tecia, bem-selecionado e cheio de pontes por onde o leitor transita sem notar arremates e remendos. Se Ivana Arruda Leite (outra referência fácil) escreve com as técnicas de um Pollock, Moscovich tem a nuança doce de um Goya. Cada qual com suas belíssimas paletas de cores. Ler Moscovich faz a fuga da memória parecer branda. Dá a conhecer uma arquitetura que a literatura brasileira não tem mostrado. Arquitetura do arco-íris é de autora que investiu nos alicerces, tanto nos próprios quanto nos da obra. Habite-se. E mais uma Não quero fazer parecer pouco o que é grande o suficiente para sair por uma editora. Andréia Del Fuego fez nascer o Minto enquanto posso, pela editora O Nome da Rosa. Numa linha bem diferente da arquiteta mencionada aqui em cima, Andréia entra nos temas quentes, nas cenas de sexo, no prazer suado de casais instantâneos ou no desprazer agônico de parceiros ordinários. Embora o livro mostre fôlego para uma continuidade gêmea, Andréia Del Fuego ainda não estabilizou uma literatura harmônica e sincera e os desníveis do livro são nítidos para um leitor habituado à leitura do conto, especialmente do conto que vem sendo escrito por mulheres no Brasil. Certamente, a autora de Minto enquanto posso fará a mesma ascendente que outras fizeram. No entanto, para quem gosta e quer curtir uma seleção de contos bem erótica, pode acender a luz-negra e entrar com tudo nesta obra. Paralelos no papel Está na roda o livro Paralelos, derivação de papel do site Paralelos.org, que expôs a literatura produzida no Brasil e, especialmente, no estado do Rio de Janeiro, que, segundo alguns, andava meio apagadinho do cenário nacional mais evidente de produção literária. Segundo o que se divulgou, Paralelos, o site, tinha como uma de suas metas "mapear" a literatura nacional, principalmente aquela que escapulisse do cenário paulistano e conseguisse emergir em meio ao massacre dos bandeirantes, com tantas minieditoras e tantos escritores adotivos e naturais. E o Paralelos, o site, fez tudo isso, enquanto estava na Internet. Chegando ao papel, inegavelmente ainda o fetiche geral da nação de escritores e escreventes, o Paralelos, o livro, encheu dezenas de páginas de contos de escritores escolhidos entre nativos do estado do Rio de Janeiro, o que nublou um pouco sua disposição original de abertura. Parece que o papel é a reserva ecológica dos organizadores e dos escritores. Afora isso, entre os 17 escolhidos pelo sotaque com X estão bons representantes da nova literatura, como, por exemplo, Crib Tanaka e Jorge Rocha, donos de uma narratividade vigorosa. Leia-se o livro e, se quiser, leia em voz alta, mas não se esqueça de pronunciar os X antes das consoantes... Para ir além Ana Elisa Ribeiro |
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