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Sexta-feira, 4/3/2005
Eu sei o que é melhor pra você
Julio Daio Borges

Há muito tempo, numa galáxia distante, eu tinha 20 e poucos anos e queria ser escritor. Um amigo, da faculdade, então me falou de um editor. Eu nem sabia para que é que servia, mas ele decidiu me apresentar ao cara. Naquela época, não existia e-mail ainda. Inspirado nesse meu amigo, eu havia produzido um "conto" incipiente, e acho que até outro, assim escrevi para o tal editor, mandando o meu material. Era um sobrenome francês e como eu estudava francês naquela data, devo tê-lo impressionado por conseguir colocar os acentos no lugar, e saber pronunciar.

O fato é que o sujeito me contatou. E decidiu marcar uma reunião. E lá fui eu, com meu amigo a tiracolo, para um apartamento perto do shopping Paulista. Se eu já conhecesse a expressão, diria que parecia um "aparelho", daqueles que se usava no tempo da guerrilha e da ditadura militar. Esperávamos numa sala e falávamos um de cada vez com o editor; não tinha cara de que alguém morava lá. O sujeito, muito falastrão, me prometeu, à sua maneira, mundos e fundos. Saí do lugar achando que ia me consagrar.

Eu tinha 20 e poucos anos, vamos lembrar. O editor me prometeu uma antologia, da qual nunca vi a cor (apesar de ter depositado uma parcela do custo adiantado). Ele pretendia reunir um certo número de autores inéditos, dividir o negócio em capítulos e lançar na Livraria da Vila. Brandia um pequeno volume, editado no ano anterior, e, graças a isso (acho), eu e meu amigo acreditamos nas suas lorotas. O cara desapareceu e voltou, no ano seguinte, meses depois, querendo me empurrar um curso para escritores — justificando que aquela primeira parcela (já depositada) serviria para custeá-lo e para, só então, depois, montar a antologia sonhada. Não aceitei e o homem evaporou no ar.

Mas não é de trambiqueiros que eu ia falar. Quem escreve, ou quis escrever um dia, tem uma história parecida; não é novidade. Eu ia falar dessas pessoas que sabem, de antemão, sem te conhecer, surpreendentemente o que é "melhor" pra você. Como um vidente; ou uma cartomante.

Antes de sumir com a minha grana, o tal "editor" quis, é claro, mexer nos meus textos. Eu produzi alguns pra ele ver e até me arrisquei em poesia (gênero do qual eu não entendia patavina). Apesar de picareta, ele tinha uma noção de literatura, sim. Mas o que me irritou, mais do que o calote posterior, foi a autoridade de que ele se investiu, para me criticar, e pior, muito pior, para dizer qual caminho eu deveria seguir como escritor. Não é que ele me perguntou o que eu queria fazer, e nem me alertou sobre a sina dos escritores no Brasil, ele — ensaiando adivinhação — me empurrava numa direção em que eu não queria seguir apenas porque ele achava melhor. É absurdo, mas acontece toda hora. Aconteceu, por exemplo, de novo, na semana passada.

Para terminar com o editor, ele chamou um conto meu de "espirro", porque simplesmente não retomava, digamos, a linha "religiosa" de minha primeira produção. Descobri, antes ou depois (não lembro), que ele era da Opus Dei (por isso a aparência de clandestinidade do escritório/apartamento). Como se não fosse suficiente para caracterizar suas verdadeiras intenções (eu tinha 20 e poucos anos, lembremos novamente), o tipo tentava nos convencer a, no futuro, traduzir uma biografia do Papa (depois da anunciada antologia), sob o fortíssimo argumento de que "o Papa é [era] pop"...

Ele fazia o que muita gente sem escrúpulos faz até hoje com aspirantes a escritores novos e desinformados: ele fingia vender um pacote literário para esses pobres escrevinhadores novatos, mas, na verdade, queria se cercar de mão-de-obra barata para alavancar seus projetos pessoais. Comigo, não, violão. Eu tinha 20 e poucos anos, mas pulei fora.

Na internet, passei por coisas similares — e ainda, às vezes, passo, como acabei de falar. O problema é que quanto mais prestígio você alcança, mais tubarões cercam você para te "aconselhar". E as armadilhas vão se tornando mais e mais sofisticadas; é preciso tomar muito cuidado para não pisar e se enganchar.

Nos meus tempos de colunista independente, de J.D. Borges, lembro que um produtor musical, conhecido, depois de receber muitas das minhas colunas, disse que eu deveria era fazer uma reportagem sobre os choferes de táxi. Segundo ele, um problema muito mais grave do que as questões que eu abordava. Como não fiz, algumas newsletters depois, ele pediu para não receber mais meu material. Era uma influência sutil e eu não acredito que o cara fosse mal intencionado, mas, como sempre, ele, que acabava de inaugurar um site (e, conforme dizia lá, escrevia um romance), sabia muito melhor do que eu a carreira que eu deveria abraçar.

No Digestivo, principalmente nos primórdios, amigos me sugeriram de tudo. Um, muito próximo, como mexia com a área, numa noite de domingo, na espera de uma pizzaria, tentou me convencer de que o negócio era eu colocar alguma coisa relacionada a beleza feminina no site. Eu amo esse meu amigo, mas ele estava completamente por fora do Digestivo Cultural. Outro, também muito próximo, achava que eu deveria misturar turismo entre os assuntos abordados — amarrando, sei lá, com, por exemplo, as cidades históricas, como Tiradentes, que tem muita "cultura" também. Não era uma má idéia e eu até confesso que penso nisso de vez em quando, mas o que me chateava, em situações assim, é a aparente incompreensão, por parte de pessoas realmente muito próximas, sobre o meu métier, sobre o meu trabalho. Se eu quisesse, efetivamente, falar sobre turismo, montava uma versão eletrônica, vá lá, da Viagem e Turismo e não o Digestivo Cultural.

Agora, arena sangrenta mesmo é conversar com portais. Tenho histórias antológicas que talvez, um dia, conte em detalhes — para serem reveladas 50 anos depois da minha morte, dos envolvidos e dos familiares.

Eu precisaria escarafunchar meus arquivos para poder precisar as informações, mas acho que a primeira vez em que fui conversar com um portal foi por iniciativa deles e não minha (provavelmente me acharam e me convidaram).

Sentei numa mesa com um estrangeiro e com dois jornalistas, uma do marketing e outro do jornalismo de fato. Eu tinha acabado de inaugurar a seção "Ensaios" e eles, os nacionais, ficaram impressionados com os nomes que eu havia republicado lá. O gringo se impressionou com as estatísticas: não entendia como literatura poderia ser um dos assuntos mais visitados (no seu portal mostravam muuuita mulher pelada — era o boom dos ensaios fotográficos). Nessa e em outra reunião, eles foram honestos, apreciaram o conteúdo e prometeram pensar; ter idéias, na verdade. O desejo do estrangeiro era montar eventos literários, patrocinados, através do Digestivo Cultural (pelo menos, foi o que me revelou na sessão de brainstorm). A moça do marketing eu nunca voltaria a ver, acho que ela saiu de lá. Mas o que me decepcionou foi o jornalista, filho de jornalista famoso, depois me ligar e dizer — quando as negociações haviam dado em nada — que era uma "pena" porque ele adoraria usar o conteúdo do Digestivo Cultural. Pode ter sido apenas um verbo fora do lugar, mas aquilo me revirou o estômago.

A segunda conversa, com um segundo portal, foi um pouco pior porque o jornalista responsável mostrou suas garras logo de cara. Um outro jornalista, correspondente em Nova York, ficou de me indicar para o chefe do portal. Passaram-se meses até que, por outras vias, eu obtive o e-mail do big boss e mandei brasa, usando as referências de que eu dispunha. O chefão nunca me respondeu, mas uma secretária me avisou que o "chefe de jornalismo" queria me encontrar. Marcamos num prédio moderno, perto de lugares onde yuppies vão almoçar. Não lembro se passei muito tempo na sala de espera, mas lembro do jornalista esbaforido, falando como uma metralhadora, transmitindo uma imagem de que andava muito ocupado. Pra encurtar, quando mostrei as estatísticas, ele principiou por me agredir, afirmando categoricamente que "a internet já havia superado aquela fase" (a fase das dezenas de milhares de visitantes; eu pensava que, para um site independente, era algo louvável...). Para ele, o que interessava eram os milhões (depois soube do "sonho" desse portal em competir com a televisão). Como prêmio de consolação, o "jornalista" me propôs que cedesse meus colaboradores de renome e que, mediante a minha ida pra lá, eles se converteriam em colunistas do portal. Esse portal não queria nem pagar a hospedagem; coisa que pelo menos o outro portal queria pagar.

Para o meu maior espanto, o "chefe de jornalismo" ainda insistiu para que eu "pegasse" um jornalista amigo meu e o convertesse em editor de outro jornalista morto, selecionando o que esse último havia publicado sobre terrorismo (o 11 de Setembro já era um fato). Claro que ele não queria pagar nada por esse trabalho e claro que ele queria que eu usasse meu pouco prestígio disponível para convencer um jornalista gabaritado a trabalhar, pra ele (do portal), de graça. Como se não bastasse, se despediu de mim no elevador dizendo que eu tinha então a minha "lição de casa". Fico branco só de lembrar.

A terceira reunião, com um terceiro portal, aconteceu, acho, no ano passado. Dessa vez, foi por intermédio de um amigão — esse, obviamente, bem intencionado. O sujeito que encontrei lá (no portal) me disse, por e-mail, que já conhecia o Digestivo Cultural e que, inclusive, era assinante da newsletter e leitor. Na reunião, porém, não foi o que demonstrou. De início, ouviu e concordou com tudo. Depois, como sempre, veio com a leréia de que não havia dinheiro etc. e que, se eu quisesse ir pra lá, teria de converter todo o conteúdo do Digestivo em formato HTML, pois o portal deles era muito acessado e, se eles "lincassem" para mim, o site não iria agüentar.

Por experiência própria, eu sabia que páginas HTML (o script mais básico da Web) eram, realmente, muito mais rápidas e imediatas de carregar, embora não fossem necessariamente mais "leves" (ainda que não sobrecarregassem o servidor). Como o Digestivo, desde 2002, estava (e está) inteiro em ASP, pedi um argumento para mudar. O homem veio com um papo de que sites grandes nunca poderiam ser dinâmicos (em ASP) e, sim, estáticos (em HTML). E que esses sites não poderiam, por exemplo, comportar formulários ou implementar e-commerce. "E a Amazon?", eu tive de perguntar. "A Amazon é inteira em ASP e é um dos sites mais acessados da história da WWW", deixei escapar.

Lógico que depois dessa o tempo fechou. Ele havia mentido para mim, queria que eu acreditasse e ainda ficava bravo (como se a culpa não fosse sua) — eu o havia enfrentado e ele jamais iria me perdoar. Teve de admitir, a contragosto, que não era essa a razão (técnica) para não abrigar sites em ASP e, sim, que o portal deles estava mal das pernas, que esses servidores (de páginas dinâmicas) eram caros e que — ao contrário da Amazon — eles não tinham como bancar. Devia ser verdade mas, de novo, não era um argumento para o Digestivo mudar; afinal, depois vi, no portal deles, um site de um amigo que está lá até hoje, sob os seus "cuidados", e que nunca teve de mudar (continua dinâmico, em ASP, como sempre foi).

Para encerrar o caso, como todo mundo, o executivo desse portal queria que eu produzisse conteúdo exclusivo e grátis (para "talvez" constar da sua homepage) e queria — essa era demais — que eu dividisse (50-50) os anúncios que o Digestivo Cultural havia vinculado ou viria a vincular. Tudo bem, eles prometiam, igualmente, ir atrás de anunciantes para o site (embora, segundo o histórico que conhecidos haviam me passado, eles nunca fizessem isso na prática).

Foi com muito humor que outro amigo próximo matou essa charada de trabalho escravo em que eu e o Digestivo, muitas vezes, nos vemos enredados. Ele disse: "Você teve a manha de escolher internet e cultura — duas coisas, milenarmente, esquecidas, mal compreendidas e exploradas". Para completar o seu raciocínio macabro, eu acrescentaria "jornalismo" à receita de baixa remuneração e de desprezo geral.

Você, depois de ler tudo isso, deve se perguntar porque eu ainda não escolhi a eutanásia, a mesma de muitos filmes em cartaz. Ora, porque a falta de respeito, de dignidade e de profissionalismo, embora seja a regra nos primeiros tempos de empreendimentos como o nosso, vão se transformando — felizmente — em experiências ocasionais, pontuais, à medida que o tempo passa e que uma empreitada do nosso nível vai superando essa "fase". Ou seja: depois de bater em muitas portas que não costumam abrir, e de berrar na orelha de surdos crônicos, um anjo da guarda ou outro vai olhando para você e — finalmente — entendendo o que você faz. E te ajudando a chegar onde você quer chegar. Mas demora.

Claro que até hoje eu entro em roubadas antológicas (e saio logo). Na outra semana, como disse, convidaram o Digestivo pra organizar eventos culturais — de graça. Na semana anterior, um amigo (outro entre tantos), contestou o layout do site, sugerindo que o Digestivo seguisse — vejam só — a disposição de textos e imagens de, justamente,... um clone do Digestivo Cultural. As pessoas, na maioria das vezes, falam sem pensar, mas é impressionante como — sem nenhum conhecimento do negócio — elas sempre sabem o que é melhor, o que é mais correto, o que é mais apropriado. Pra você, lógico.

Julio Daio Borges
São Paulo, 4/3/2005

 

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