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Quarta-feira, 23/3/2005 O quintal de casa Ana Elisa Ribeiro Não me esqueço do sofrimento de arrumar as malas obedecendo às frases nervosas e apressadas do meu pai. Havia enrolado o mês inteiro, na esperança de poder ficar. Mas na última hora, ele tangia o rebanho e ordenava que fôssemos para o carro, em direção à praia, que é coisa que os mineiros vêem pouco e costuma lhes parecer algo incrível. Mas aqueles dias de arrumar malas, roupas, comidas. Aquele tempo de esperar pela viagem, aquela sensação de despedida me deixava ciumenta dos meus pertences e sofrida como uma condenada. Não me agradava a idéia de sair do meu metro quadrado, de me deslocar quilômetros e viver uns tempos num lugar que não me parecia meu. Muito interessantes as diferenças, os sotaques, o fuso-horário, mas eu me sentia em casa em apenas um lugar. Dizia meu pai que esse sofrimento era coisa de criança, que haveria de passar na adolescência. Esperei a juventude chegar e continuei sofrendo ao arrumar as malas, para qualquer lugar que fosse. Tentei viajar com família, amigos, namorados, desconhecidos e nada adiantou. Continuei, sempre, odiando malas e fugindo dos trajetos clichês, das viagens de turismo e dos prazeres de beija-flor. Viajei algumas vezes e em quase todas consegui não ir à-toa. Também consegui escapar aos pontos turísticos e até arranjei trabalho. Faço o possível para que minhas malas sejam de mão, o que me dá certa garantia de que terei que retornar. E essa angústia pelo meu quarto, pela minha cama, pelos meus ares não pode ser alardeada, afinal, bonito mesmo é ser turista, desfiar horas de assuntos do interior e do exterior. Fiz viagens a trabalho para alfabetizar pessoas no sertão e para falar de literatura na metrópole, mas isso não conta. Contam as milhas de avião e os cartões-postais. Mas a cada dia que passa eu me convenço mais de que não interessa para onde alguém teve a maravilhosa experiência de ir. Por que o interior da França é mais valioso do que o interior do Brasil? Ser provinciano no estrangeiro me parece ainda pior do que o ser por aqui mesmo. Lembro das agruras por que passou Pilar em Lyon, que lhe pareceu um povoado cheio de pessoas estranhas. Também das aventuras de Ana em Madri, que não oferecia metade dos recursos que minha amiga tinha em sua casa no alto da Serra do Curral. E Alex, lavando pratos em inglês; Renata sofrendo preconceito em alemão. E todos de volta, sãos e salvos, gargarejando histórias que parecem melhores do que são depois que já aconteceram. E então me sinto estranha. Eu e meu canto. Eu e meu ódio por malas, estejam elas prontas ou por arrumar. E fico me lembrando de que importa mais o que alguém faz do que onde esse mesmo alguém vai, a não ser que vá para fazer algo que realmente interessa. Para citar pessoas notáveis de uma seara que julgo conhecer, me lembro de uma entrevista de Hilda Hilst à revista Cult em que a poeta dizia que não queria mais viajar. Já envelhecida e turrona, dizia que não valia mais a pena sair de casa. Segundo ela mesma, Paris só era bom quando ela fodia, aos 20 anos. Machado de Assis, mais consagrado que outros tantos, não saía do Rio de Janeiro, cidade da qual poucos nativos desejam sair. E o autor de Dom Casmurro não precisava colecionar tíquetes para escrever a obra que ficou na história de nossa literatura. Também alguns escritores foram pobres, não tinham condições, mesmo que quisessem, de perambular pelo globo. O jeito era ter imaginação, coisa que nem viajando algumas pessoas conseguem ter. Raduan Nassar e Manoel de Barros fazem questão de suas casas retiradas do corre-corre das cidades. Manuel Bandeira foi atrás de tratamentos para sua tísica e conseguiu compor uma obra ímpar. Em contrapartida, João Cabral de Melo Neto imortalizou Sevilha em poemas que permanecerão, embora o poeta mesmo já se tenha ido. Drummond fez de Itabira retratos de minério, honra que muita cidade grande não terá. E assim vão se formando as listas de pessoas que interessam porque mudaram alguma centelha de coisa neste mundo e de lugares que se tornaram cenários de memórias imortais. Listas de pintores, músicos, escritores, escultores, professores, cientistas que não gostavam de viajar porque se sentiam satisfeitos com seu metro quadrado ou mesmo porque tinham medo de avião. Diferentemente da experiência muitíssimo enriquecedora de passar por mil lugares e não contribuir com nada. É um imenso aprendizado sentir-se suficiente em seu canto; é uma grande lição aprender a gostar de estar só, na companhia de si mesmo, embora a pressão seja no sentido contrário. Estar feliz acontece, para alguns, no quintal de casa. Se a sua cabeça pensa... Você deve achar que a sua cabeça pensa, que você produz idéias e pensamentos com a mente e que a memória é uma espécie de escaninho muito grande que fica dentro do cérebro. Alguns médicos e psicólogos também acham isso. No entanto, outros tantos médicos e psicólogos acham que a mente, as idéias, a memória e outras coisas que a gente faz e é não estão apenas na cabeça. Talvez estejam mais iluminadas lá, sim, mas estão pelo corpo todo, nas sensações espalhadas por um sistema nervoso que se ramifica quase infinitamente pela pele, pelos dedos (do pé e da mão), pela língua, pelos olhos. Desde tempos imemoriais (!) a filosofia vem discutindo esse enigma mente/corpo e os cientistas também bancaram essa idéia. Muita gente, inclusive René Descartes, de certa forma, o mentor deste mundo em que vivemos, queria saber o que nos rege, que homenzinho é este que deve morar em nós e nos pilota tão bem (ou mal). E se existisse esse "homúnculo", estaríamos perdidos num infinito de homenzinhos inquilinos uns dos outros, como aquelas bonequinhas russas que são infinitamente grávidas. E se não há homúnculo, há outra coisa qualquer. Dizia Freud, pensando nisso, que não regemos, mas somos regidos por um cara chamado "inconsciente", explicação que não explicou nada e tornou o homem uma caixa-preta cheia de boas desculpas para os deslizes de todos nós. Boa jogada, Freud. E Lacan veio com muitas explicações e, principalmente, com todos aqueles prefixos. Era, mais que um grande psicanalista, um grande conhecedor da morfologia da língua e um grande empregador de tradutores: o não-lugar, o não-sexo, o não-ser. Então não se é nem se não é. Em todo caso, é preciso empregar o hífen. E então estamos até hoje pensando que pensamos na cabeça; lembrando que lembramos na memória e que esses são lugares, com direito a prateleira no cérebro e tudo. E se pensássemos e sentíssemos e aprendêssemos só com algo que estivesse definitivamente localizado no cérebro, talvez não precisássemos do resto do corpo pra perceber, pra sentir, pra pressentir, pra ter medo, pra ter prazer. Pensando no corpo como uma máquina, não precisaríamos de cérebro, o que é diametralmente oposto a pensar que a mente resolve tudo. Então fazer o quê? Não pensar nisso e ir percebendo tudo o que nos cercar. Mente e cérebro ficam sendo, assim, um casalzinho de gêmeros siameses. E o corpo e a mente ficam sendo um casalzinho de opostos que se atraem. E o que eu sei é que eu, por exemplo, sou mais do que uma mente vestida de um corpo branquelo; ou mais do que apenas um corpo sem mente, coisa que não posso dizer de todas as pessoas. Ana Elisa Ribeiro |
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