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Terça-feira, 7/8/2001 A árvore da vida Vera Moreira Arrumar gavetas é revirar o passado. Assim como as lembranças que não conseguimos apagar, nossos arquivos materiais são implacáveis, pois sempre que tentamos nos livrar dos papéis, fotos, objetos, etc, nunca é de todo, falta coragem e acabamos voltando a guardar muito mais coisas do que pretendíamos. Na próxima faxina elas reaparecem, às vezes belas surpresas, às vezes nem tão boas. Eu gosto destas faxinas físicas e mentais, ver o lixo abarrotado, papéis amassados, fotos rasgadas, as gavetas novamente com pilhas simétricas. Fico ao menos com a impressão da vida reorganizada, porque organizada acredito ser impossível. Semana passada, em uma empreitada dessas, descobri um texto escrito em 1996, para uma revista de variedades e cultura que eu fazia em São Paulo, para o Shopping Iguatemi. Foi uma daquelas belas surpresas, fiquei muito feliz de reencontrá-lo, pois já dava por perdido. Não publiquei na época, porque achei pessoal demais, avaliei que nenhum cliente do shopping ia se interessar pelas memórias de infância de uma gaúcha desgarrada e faminta... Hoje penso diferente, depois de tantas leituras sobre as memórias gastronômicas de pessoas das mais variadas. Um livro bem interessante que li nos últimos tempos neste sentido é a "Cozinha dos Imigrantes", uma coletânea de depoimentos de italianos, japoneses, portugueses, espanhóis, libaneses, sírios, alemães, húngaros, gregos, iugoslavos, austríacos, poloneses, romenos, russos, armênios, e filhos da Bessarábia e do Egito, que honestamente não sei como denominar. Quando o livro chegou ao mercado, imaginei o conteúdo histórico, dados, etc. Mas nada, são relatos simples, diretos, de pessoas que chegaram a São Paulo e agora adultas revisitaram suas experiências gustativas em solo brasileiro, contando sobre a formação de suas famílias. No texto que encontrei amarrotado dentro do exemplar de Dia das Crianças da "Iguatemi" (na página onde publiquei um texto mais cosmopolita, digamos assim) faço essa viagem. Aí vai: Feliz o mortal que fecha os olhos e volta nos anos para sentir os cheiros, as sensações e as ocasiões em que seu paladar começou a se desenvolver. São lembranças impregnadas de tradições, de história e de vida da terra onde a gente nasceu e dos lugares por onde nossos pais nos levaram. No sul do Brasil, as coxilhas se derramam verdes a perder de vista, com um gado manso a se mover placidamente, concentrado na tarefa de engordar, alheio ao desafio do encontro do campo com o céu. Uma paisagem bucólica, que sequer de longe parece ter sido palco de derramamentos de sangue de um povo bravo na luta por seu pedaço de chão. As longas extensões de terra do pampa gaúcho são lembrança das mais inesquecíveis, as férias na fazenda, a marcação do gado, o churrasco feito na vala aberta no chão, os peões contando causos, a molecada e os cachorros correndo livres pelo pasto. Os gaúchos são muito apegados à terra e a partir dela estabelecem sua relação com a vida. Podem passar o resto da existência a rodar o mundo, nunca perdem a referência do seu chão. Aliás, o brasileiro, em geral, tem este sentimento em relação ao seu "chão", o país. Não esqueço jamais a cena de uma baiana chegando de uma viagem à Paris, ao pisar no aeroporto de São Paulo: chorava e batia de mansinho com os pés no solo, murmurando "Brasil, Brasil, Brasil querido...". Somos um povo emotivo, de raízes, ligado às tradições e é fácil saber deste ou daquele as lembranças da infância. Nas fazendas do Rio Grande do Sul, a fartura brota sem cerimônia, desce os rios e entra pela porta das cozinhas despojadas, com o fogão a lenha mantendo sempre quente a grande chaleira com água do chimarrão. Nos meses do verão, os galhos das árvores pendem cansados com os marmelos, as goiabas, os figos e as pêras. É diversão pura para a garotada que trepa pelos troncos e vai lá pra cima jogar ao chão os frutos que logo estarão no tacho a se desmanchar em marmelada vermelha, figada, goiabada ou ainda nos doces de pêra, figo em calda, rapadurinha de marmelo branca (indescritível...). Os açudes serenos pontuam o campo, convidativos ao banho digno de pato, com luta livre, caldos e muçuns a ameaçar os tornozelos. No fim da tarde, a vara de pescar e a latinha com as minhocas são os apetrechos para fisgar a traíra do aperitivo antes do jantar. Na cozinha, a luz do lampião, a frigideira pronta com o óleo para a traíra. No banheiro gelado, a grande caneca de alumínio de água fervente para o banho à luz de velas. É o prelúdio da refeição da paz, da amizade, da harmonia, da família. Feijão preto, arroz branco, ensopado de espinhaço de ovelha, sopa, galinha ao molho, milho cozido - pratos simples e substanciosos que chegam fumegantes à mesa, liberando os aromas que confortam a alma. Nas fazendas, o que vai à mesa está por ali, horas antes, bem vivo e disposto, como a galinha que cisca à volta da casa absolutamente ignorante ao destino que lhe está reservado lá dentro. A cozinheira sai da casa, escolhe sua vítima e as crianças são convocadas para a caçada. É uma correria, uma gritaria, uma farra; e não tem mistério, nem horror algum, desde muito cedo se aprende nos campos o milagre da vida e que o maior come o menor. Assim como os legumes e verduras da horta, as frutas do pomar, a água fresca e gélida do poço, o leite ordenhado da vaca, a farinha do pão caseiro, as espigas de milho e o charque secando no galpão - alimento direto da fonte para nossa subsistência. O momento maior nas fazendas, de festa, é e sempre será o churrasco. Domingo a casa se enche de expectativa e os preparativos começam cedo. As batatas são postas a cozinhar, busca-se os ovos no galinheiro para a maionese, separa-se os grãos bons e maus de arroz e de feijão, o charque é picado, as folhas de salada lavadas, as sobremesas arrumadas - sim, churrasco em fronteira não é só carne, é uma orgia - e lá fora, no curral, os peões matam o novilho e a ovelha. A molecada não admite perder nada e sobe na cerca para ver como o novilho se despede da vida. Logo o bicho é carneado e os cortes pendurados para escorrer o sangue. A lã da ovelha sai todinha e também fica a secar para virar pelego, que depois irá para o lombo do cavalo do gaúcho. A vala é aberta no chão, as taquaras transformadas em fortes e longos espetos, a mesa de tábua muito comprida é posta e os bancos de madeira puxados para perto. Senta-se todo mundo à volta do churrasco, numa conversa animada, cada um com sua faca na bainha, só a espera da primeira lasca de carne. Ao longe o mugido de uma vaca, as moscas incomodando por perto, o calor se misturando com a fumaça, embaçando o olhar tranqüilo que se perde no abençoado horizonte verde. Vera Moreira |
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