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Sexta-feira, 18/3/2005
Autores novos
Julio Daio Borges

Quem me conhece sabe que eu sou um entusiasta da minha geração. A geração que surgiu através da internet, como eu costumo falar. Falei já, até, de uma geração que vai mudar o panorama das letras brasileiras. E, no fundo, eu continuo acreditando nisso, mas, às vezes, quando leio os livros ou as seletas de contos dos meus contemporâneos, me desanimo. Não só por eles, que publicaram. Mas por mim e por todos os outros que, com ambições literárias ou não, permanecem inéditos.

Eu escrevi, meio na base da gozação, meio a sério, que somos "apocalípticos, disléxicos e desarticulados", mas, embora seja uma boa piada, e até convincente por sinal, sei que o buraco é mais embaixo. Beeem mais embaixo. Então este texto é uma tentativa de identificar as falhas na nossa formação e o porquê delas redundarem em produções literárias, muitas vezes, tão sofríveis — que eu não sei se têm salvação.

Tentei, uma vez, explicar como nascemos no vácuo pós-ditadura e como a televisão ocupou um lugar muito maior do que deveria ocupar, na nossa formação. E, de fato, por mais que eu não seja de esquerda, nem muitos menos uma viúva de 68, o vácuo está aí para quem quiser enxergar. A produção cultural do País praticamente se encerrou no final dos anos 60 e — outra coisa que ninguém pode negar — assistimos a um renascimento só a partir dos anos 90, a começar pelo cinema.

Então, você imagine crescer nos anos 80. O que havia sobrado de conteúdo intelectual? Alguns sobreviventes da MPB que, mesmo que tivessem sido exilados, já haviam voltado — embora qualquer "conteúdo" que tivesse restado já havia sido devidamente neutralizado, ou então o seria pela efusão do rock BR. Foi a década do Realce, de Gilberto Gil, tão xingado por Caetano Veloso, foi a década dos especiais do Roberto Carlos, mais romântico do que nunca, foi a década do relativamente insosso Chico e Caetano (para não dizer que a Globo implicava com o primeiro) e foi a década da morte da Elis Regina, e da fase quase 100% ecológica de Tom Jobim ("Passarim" afora).

Ou seja, essas pessoas não tinham mais a influência que tiveram nos anos 60. Por outro lado, estava estourando uma turma barulhenta e gritona, mas que se sabia silenciada também pela "revolução cultural" brasileira: "Nos empurraram com os enlatados, de USA, de 9 às 6". Esse é um dos versos mais emblemáticos para mim dessa questão. Os outros estavam cantando: ou que usavam óculos; ou que iam para a Califórnia; ou que iam invadir sua praia; ou que eram boys (office boys). Não estou cobrando engajamento desse povo, porque pessoalmente acho uma coisa lamentável — isso de ficar raciocinando em cima de velhos padrões e de ficar querendo retroceder para 1964 ou 1968. Acontece que percebo, também, um negócio muito óbvio nesse pessoal: não sei se consciente ou inconscientemente, mas, sim, eles eram alienados. Como nós também somos; à nossa maneira, mas somos.

Continuando. Na música não havia nenhuma esperança. No cinema, também, não. Depois da explosão das pornochanchadas nos anos 70, o que nos restava era assistir a uma nesga de Sala Especial, às sextas-feiras, na Record. O cinema brasileiro havia se reduzido a produções como as de Walter Hugo Khouri, muito incensadas no momento em que ele morreu, mas que se limitavam a um hedonismo brega e metido a besta — como o Eu, de Tarcísio Meira. E, ah, claro, havia, anualmente ou bienalmente, as fitas dos Trapalhões, mas eu ainda não cheguei na televisão.

O que mais poderia haver de arte nesse cenário? A literatura, que em certa medida é aqui o que mais importa, havia morrido de vez. Todos os escritores, ou potenciais escritores, haviam sido presos e/ou exilados antes. Vamos recapitular: a patota inteira do Pasquim, Antonio Callado, Ferreira Gullar, Fernando Gabeira... Os grandes vultos de outras décadas, literatos de verdade, se se for considerar, já estavam, nos anos 80, suficientemente velhos ou então inócuos. Lembro do Drummond como o "maior poeta" apenas, e como o combalido octogenário que — opa, deixaram escapar — desejava a filha, e que se encontrava a léguas de distância de Rosa do Povo, por exemplo. Lembro também do Fernando Sabino, que fazia aparições ocasionais na televisão, mas que só voltou a escrever, de verdade, na década seguinte, para dar um tremendo de um fora, que foi Zélia, uma paixão.

Estávamos, portanto, reduzidos aos infantis e aos infanto-juvenis, da série Vaga-Lume ou similares. E os lemos, por que o que mais havia para ler? Eram, ou bem infantis mesmo (vide Marcelo, marmelo, martelo, de Ruth Rocha) ou, então, bastante fantasiosos (vide as aventuras de Xisto, de Lúcia Machado de Almeida, e A montanha encantada, de Maria José Dupré). Marcos Rey havia sobrevivido aos anos de chumbo, mas só porque embarcara numa linha meio detetivesca (O Mistério do Cinco Estrelas) ou meio romanesca (Memórias de um Gigolô). Os autores populares, ou populistas, inchavam e dominavam a cena, como Jorge Amado — que, embora fosse comunista na origem, havia caído numa fórmula, que Paulo Francis classificou como "uma mistura de sacanagem e violência, sem ao menos o vigor ideológico, o talento primitivo e forte".

A eterna briga entre dramaturgos e autores de telenovela já havia começado. Pois, como brincara Nélson Rodrigues, que morreu — como Vinicius de Moraes — em 1980, quem era mais importante: Dias Gomes ou, sua esposa, Janete Clair? Foi o boom do padrão Globo de televisão. A ponto de, na nossa geração, sem brincadeira, termos mais referências de novelas das 6, das 7 e das 8 do que literárias, por mais que tenhamos lido ou tentado ler. Talvez por peso na consciência, os Globais decidiram resgatar os autores de verdade, nas tais "Séries Brasileiras". Mas, em vez de incentivar a leitura dos nossos mestres, eles geraram a falsa sensação de já se conhecer a obra previamente (pra que ler então?). Parecido com o que os filmes fizeram.

Se o cinema nacional não existia em termos de salas de cinema, os "enlatados", da letra do Legião Urbana, tomavam conta. Crescemos sob a influência dos primeiros blockbusters de sexo e violência. Nossa geração era a primeira a descobrir o sexo depois que as comportas haviam sido liberadas (pelas gerações anteriores, das décadas de 60 e 70). Então eram aquelas comédias universitárias, ou (sub)urbanas, sobre iniciação sexual: as primeiras saídas com o carro do pai; os primeiros bailinhos (alguns bailes de formatura — os proms); e o tema ainda incipiente do sexo livre e descompromissado, de um casal que, de repente, se encontrava por acaso, sei lá, numa cidade.

A violência vinha graças ao trio Stallone, Schwarzenegger e Bruce Willis, o do Planet Hollywood, que preparava o terreno — agora não tenho certeza — para os videogames. Fomos a primeira geração amplamente consumidora de jogos eletrônicos. E a primeira, também, a ter contato com o computador pessoal (e com o videocassete). Talvez, na "programação" que vinha dos Estados Unidos, eles já previssem que a nossa geração conviveria com guerras (no front oriental) e que precisaria, portanto, deglutir e processar a violência sem sobressaltos. Os videogames, além de reforçar esses conceitos (onde a fronteira entre virtual e real já começava a nublar), introduziam suavemente o computador e a noção de rede, utilíssima na implantação do Big Brother global. Mas devo estar divagando.

Não é à toa que a década de 90 começaria com uma guerra, a do Kuwait, e, no Brasil, com a continuação de um festival de rock, o Rock in Rio II. A década de 90 foi uma tentativa, falha a meu ver, de prolongar a alienação dos anos 80. A começar pelo rock, que continuava, só que cada vez mais pesado, reforçado pelo surgimento da MTV, via grunge. A TV a cabo faria uma abertura lenta e gradual mas, "assegurada" (e talvez até sabotada) pela própria Globo (como negócio): garantiria a prevalência do horário nobre — alimentado pelas mesmas telenovelas, que continuam influentes até hoje.

O que eles não previam, ou previam mas subestimavam, era a internet, a partir da metade da década anterior. Na verdade, a "programação" já começaria a falhar através das injunções do cinema nacional — embora grandes ícones, como Cacá Diegues, tenham se convertido à agenda de apenas divulgar o Brasil no exterior, como marca.

A era eletrônica dos anos 2000 democratizaria os meios de produção, deixando a coisa correr, fora de controle — e uma geração inteira abriria os olhos, como se despertada do coma, para verdades ancestrais...

Mas eu não queria transformar isto num documento político (já transformei?). Apenas queria mostrar, e me empolguei um pouco (confesso), que não temos formação intelectual para nos lançar rumo à literatura — apesar da internet. A internet, às vezes quando eu olho, me parece uma faca nas mãos de um bebê. Ou o acesso irrestrito, à mais poderosa ferramenta de comunicação já inventada, a uma geração que, vamos admitir, não sabe se expressar, não sabe organizar o próprio pensamento, não sabe de onde vem e, muito menos, para aonde vai. A minha geração.

Quando eu comecei a escrever, vou admitir igualmente, lá na longínqua década de 90, não tinha formação literária alguma. Tinha vontade. Então meus "contos" saíam como uma mistura malfeita de Comédias da Vida Privada de Luis Fernando Verissimo, que eu lia no jornal (que nem literatura é — que é excelente crônica, isso sim), com livros de terror do Clive Barker e do Stephen King (que é o que eu conhecia bem, depois de ter sofrido as injunções cinematográficas da ficção científica — aliás, nem falei sobre isso), com laivos de música popular (rock principalmente), com pitadas de comédia universitária norte-americana. Esse era o produto, sofrível, da minha imaginação. Um refugo, liquefeito, do que eu havia consumido, quando criança e adolescente, em toda a década anterior, a dos anos 80.

Felizmente, nos anos 2000, através do Digestivo, pude despertar da hibernação (como muita gente está virtualmente despertando, eu vejo). Li o que me havia sido negado, ou o que nem sequer havia chegado até mim, nas décadas anteriores. Vale recordar que o monopólio das editoras, 10, 20 anos atrás, era o mesmo dos canais de televisão: só existia aquilo e pronto. Sem opção. Ocorre que essa percepção do mundo em volta, e do que existia antes de nós, apenas confirmou minha falta de preparo, e a de meus contemporâneos, para atacar as letras comme il faut.

Assim, quando me caem nas mãos os contos ou romances dos meus colegas de redação virtual, eu enxergo neles as mesmas falhas que enxergava na minha produção inicial. E eles ficam bravos. E não aceitam que eu venha a criticá-los. Infelizmente, porém, hoje eu sei o que é literatura — e sei que eles não estão fazendo literatura de verdade. Porque não têm formação para tanto.

Logo, se o sujeito é "poeta", vai puxar inspiração nos compositores populares. Ora, apesar de sua grande importância política (nos anos 60) e comportamental (nos anos 80), eles não são poetas. Cazuza não é; Chico Buarque não é. Muito menos Caetano Veloso e Renato Russo. Em vez de o sujeito ir lá ler Manuel Bandeira, João Cabral de Mello Neto e Carlos Drummond de Andrade, vai, no máximo, ouvir Vinicius de Moraes, rir com os trocadilhos de Paulo Leminski (que era muito hábil nisso mas só nisso) e incorporar alguma informação publicitária, de slogans e piadinhas breves, que nos são bombardeadas de hora em hora. Você me desculpe mas não tem como sair poesia daí.

Agora, se o cara quer ser "contista", vai mamar obviamente no Verissimo, que eu já citei. Mas que não escreve conto. Ou vai usar as referências cinematográficas que cresceu recebendo; mas diálogo de filme, ou até roteiro, por mais genial que seja, não é literatura. Portanto, em vez de ler — aqui é fácil — Rubem Fonseca, Machado de Assis ou Guimarães Rosa, o cara prefere se debruçar sobre os "contistas" interneteiros que, se não estão tão perdidos quanto, estão até mais perdidos do que ele.

Dos romancistas, então, putz..., nem quero falar. Se o sujeito não domina a forma curta, que é o conto, como é que vai dominar a forma longa, que é o romance? Aí saem livros macarrônicos que os resenhistas abandonam logo no primeiro parágrafo (com razão) ou que não lêem at all...

A solução seria que houvesse editores como antes. Editores de livro. José Olympio e Ênio Silveira, por exemplo, em suas respectivas épocas, foram editores; um da editora que levava o seu nome e o outro da Civilização Brasileira (ambos selos, hoje, da editora Record). Um editor que me passa pela cabeça, e que passa pela cabeça de todo mundo a partir da década de 90, é o Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. É a ele que devemos, refresquemos a memória alheia, Diogo Mainardi (o escritor), Fernando Morais e Ruy Castro, os biógrafos, todo o último Rubem Fonseca e até algumas bombas (que me desculpe o Luiz Schwarcz, mas é verdade) como Jô Soares, Chico Buarque e Caetano Veloso (em livro). Como sabe quem acompanha o setor livreiro, ele revolucionou o mercado editorial local.

Para o nosso azar, a editora dele cresceu, foi comprada parcialmente por um grande grupo financeiro, e hoje o Luiz Schwarcz tem mais responsabilidades (e deveres) de empresário do que de editor. Não vai nos ajudar. Sorry.

E as pequenas editoras? As pequenas editoras que se formaram, neste recente boom, são: ou pertencentes a pequenos grupos de escritores, que se ocupam de se promover uns aos outros; ou permissivas demais, projetando um lucro futuro, em cima de autores jovens (ou seja: não vão dizer a eles que eles são ruins; vão primeiro publicá-los, ganhar dinheiro em cima, vender seu passe para grandes editoras — se for o caso —, e depois tchau).

A solução, então, é se jogar debaixo da ponte? Não. Acontece que: ou nós veremos escritores geniais se formando por si mesmos ainda nesta geração (o que, em algumas civilizações, até acontece); ou então vamos ter de esperar um amadurecimento geral (de escritores, de editores e de leitores) para garantir uma estrutura, e uma formação, a gerações vindouras. Eu adoraria abrir os livros dos meus contemporâneos e me encantar com eles, mas, tirando duas raríssimas exceções, de Fabrício Carpinejar (na poesia) e de Michel Laub (na prosa), isso não acontece agora.

Julio Daio Borges
São Paulo, 18/3/2005

 

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