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Terça-feira, 15/3/2005 Abismos literários Luis Eduardo Matta Venho acompanhando com atenção o que se passa no mercado editorial brasileiro desde 1992, quando escrevi meu primeiro romance, Conexão Beirute-Teeran, publicado no ano seguinte. É uma seara muito interessante, repleta de contradições, controvérsias e muitos mistérios. Freqüentemente consulto os arquivos que formei durante todos esses anos, releio relatórios, entrevistas, artigos e resenhas; confronto os diferentes pontos de vista de autores, críticos, articulistas, agentes e editores, procuro desvendar as idéias e anseios que se escondem por trás de cada novo lançamento, de cada novo projeto literário. A Literatura como um mercado firme, como uma força cultural poderosa, de alcance longo e abrangente, é algo ainda para ser construído num país que precisa vencer sérios obstáculos educacionais, onde a maioria do povo é iletrada ou semiletrada e onde a qualidade de ensino nas escolas públicas, em geral, é sofrível. A produção de livros no Brasil é direcionada a uma minoria de 15% da população. São pequenas porções de um vasto contingente de pessoas, distribuídas, sobretudo, pelas cidades maiores, contempladas por livrarias, bibliotecas e eventos como as bienais e os salões do livro. Ao escarafunchar esses meus arquivos de Literatura, tenho quase sempre a sensação de penetrar num mundo à parte, num mundo desvinculado da realidade do país. São textos que se debruçam sobre o último lançamento daquele escritor extraordinário, fazem defesas apaixonadas de um tipo de escrita ideal, promovem debates sobre a estética na Literatura, comparam os poetas e contistas desta e daquela geração, criticam, por vezes de maneira enfurecida, um determinado autor, como se ele fosse a própria encarnação do diabo e por aí vai. Aqui mesmo no Digestivo Cultural não faltam textos assim; esse artigo, inclusive, é um exemplo. Ao nos acostumarmos a falar de Literatura quase sempre teorizando sobre ela, nos esquecemos do mais fundamental, o seu aspecto prático. A Literatura não existe - ou ao menos não está completa - sem a leitura. Adquiri essa noção muito cedo, ainda em 1992, e, paralelamente à formação e consulta dos meus arquivos, desenvolvi um outro hábito: o de conversar com leitores e compradores de livros, coisa que venho fazendo regularmente há bastante tempo. O aprendizado decorrente dessa experiência é inestimável, pois permite descobrir, nas ruas, o que as pessoas lêem habitualmente e com que freqüência. Em geral, alijada das páginas das publicações e suplementos literários e de cultura, é essa gente que sustenta o mercado editorial e livreiro. E acho importantíssimo, senão fundamental, conhecer as suas preferências quando o assunto é livro, para se ter uma idéia do tipo de público ao qual escritores e editores estão se dirigindo e, sobretudo, para se traçar um painel verdadeiro e objetivo sobre as razões pelas quais o mercado editorial é o que é. Desde 1997, freqüento uma locadora de livros, localizada no coração de Ipanema. É uma espécie de biblioteca paga, um lugar alegre e acolhedor, um pequeno reduto de leitores, onde se respira Literatura. Como tenho comprado muitos livros e recebido outros tantos de presente, já faz algum tempo que não alugo nenhum; mesmo assim, todas as semanas faço uma visita à locadora para conversar e tomar um cafezinho. São sempre momentos muito agradáveis, onde aproveito para trocar idéias com as proprietárias e os demais associados, pessoas inteligentes e de todas as idades que, em sua maioria, lêem muito; algumas chegam a levar seis, oito, até dez livros por semana. Eu me arriscaria a dizer que elas constituem um microcosmo bastante representativo do universo de leitores brasileiros. Elas gostam do que a maioria gosta, lêem o que a maioria lê e buscam nos livros o que a maioria busca. Conversando com elas, têm-se uma amostra real e desmistificada de quem são os leitores brasileiros. Uma das primeiras constatações que saltam aos olhos é o acentuado desprezo dispensado à Literatura nacional, a despeito da fartura de títulos distribuídos por estantes que tomam quase uma ala inteira da loja. Os escritores brasileiros são vistos como complicados, herméticos, demasiado auto-referentes, chatos, de prosa arrastada e enfadonha. Poucas são as vezes em que um cliente da locadora decide levar para casa o livro de um autor nacional; quando muito escolhe uma biografia, como a de Nelson Rodrigues, escrita por Ruy Castro ou um livro policial como os de Luiz Alfredo Garcia-Roza (que costuma ser elogiado pela ambientação das suas histórias e criticado pela construção da narrativa, considerada, pela maioria, fraca e previsível). Paulo Coelho quase não é procurado. Os livros de auto-ajuda, menos ainda. O conto, uma tradição na Literatura brasileira, é solenemente rejeitado, evidenciando sua alta impopularidade entre os leitores em geral. A razão principal talvez resida na proposta dos livros de contos que, a juízo de muita gente, são uma caixa de surpresas e padecem da falta de uma "cara" que os defina com clareza; seriam como vários pequenos livros reunidos num só volume, o que passa, muitas vezes, a falsa impressão de um saco de gatos feito sem qualquer critério, assinado por um autor preguiçoso, que não possui fôlego e talento para planejar e redigir um bom romance. Por outro lado, os romances estrangeiros contemporâneos, sobretudo os de entretenimento - policiais, de suspense, de amor, de terror, de tribunais, as grandes sagas históricas - saem como água e são objeto de ardorosos comentários e discussões no balcão da locadora. Os autores de língua inglesa são os mais procurados, mas há também quem aprecie os italianos, como Andrea Camilleri e os latino-americanos, como Isabel Allende. Há títulos estrangeiros que contam, na locadora, com quase dez exemplares à disposição dos clientes, tamanha é a sua procura. O romance estrangeiro desperta nos leitores uma grande paixão e isso tem uma explicação bastante simples: a maioria das pessoas que lê livros, o faz em busca de momentos de lazer, e não de aprendizado, reflexão ou crescimento interior. Poderiam estar assistindo a filmes ou telenovelas, ouvindo o rádio ou um CD, ou mesmo navegando pela internet, mas preferem ler livros. Para horror dos intelectuais e da crítica acadêmica, esse é o leitor predominante, não só no Brasil, mas em todo o mundo ocidental. Pessoas comuns que desenvolveram o gosto pela leitura com naturalidade e olham para o livro sem qualquer vestígio de cerimônia ou reverência, como outros olham para um CD ou para um DVD. Confrontando as centenas de textos contidos nos meus arquivos, assinados por puristas, defensores intransigentes da "Grande Literatura", com os depoimentos colhidos diretamente dos leitores, percebo que existem grandes abismos dentro do universo literário, que separam dois hemisférios distintos: o hemisfério ideal, do que seria o melhor e mais elevado em termos de Literatura e leitura; e o hemisfério real, do que ocorre de fato na relação entre livros e leitores. Às vezes tenho a impressão de que esses dois mundos, se não se desconhecem por completo, fingem se desconhecer. Há uma incompreensão mútua, que acaba produzindo equívocos, como a acusação recorrente de que o mercado é o grande inimigo do livro enquanto bem cultural. Ora, o mercado não é uma entidade sobrenatural, pérfida e imperialista, imbuída da missão de destruir a cultura e, sim, o conjunto dos consumidores de livros. Acusar cegamente o mercado é desqualificar sistematicamente um universo de pessoas que têm pleno direito de decidir que livro preferem comprar para ler ou dar de presente. Se os clássicos, se as obras dos maiores poetas e prosadores de todos os tempos não habitam os corações da maioria dessas pessoas, paciência. A curto prazo, há pouco o que ser feito para reverter esse quadro. De nada adiantarão protestos revoltados, medidas oficiais de incentivo, campanhas setoriais, aumento de tiragens, melhor distribuição e mais divulgação se os leitores simplesmente não se interessam por determinado tipo de livro. É claro que a "Grande Literatura" continuará a ser publicada. Seria um crime se ela fosse, de uma hora para outra, sumariamente riscada dos catálogos das editoras por questões mercadológicas e nem é isso o que está sendo debatido. No entanto, é preciso reduzir esses abismos entre os que pensam e os que consomem Literatura, até para que possam ser traçadas estratégias novas, realistas e eficazes de incremento da leitura no Brasil. É uma dica, sobretudo, para os aspirantes a escritor e editor, que, muitas vezes, ingressam no meio sem a menor noção do terreno em que estão pisando. Costumo dizer que o problema da escassez de leitura no Brasil não se resolverá enquanto a forma como os livros entram em contato com os alunos nas escolas não for radicalmente modificada, transformando o ensino de Literatura, hoje maçante e burocrático, em algo prazeroso e atraente, que aproxime os jovens dos livros. Inclusive, tenho um artigo, publicado aqui no Digestivo Cultural, inteiramente dedicado a este tema. Entretanto, duvido muito que isso se concretize sem que os nossos abismos literários sejam reduzidos. Somente com menos utopia e mais pragmatismo conseguiremos superar esse desafio histórico e democratizar, de fato, o hábito de ler, tornando-o, para a maioria, um ato tão prosaico quanto ligar a televisão para assistir à novela das oito. Luis Eduardo Matta |
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