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Segunda-feira, 18/4/2005
Um tiro no sonho americano
Marcelo Miranda

A primeira constatação após assistir a O Aviador, de Martin Scorsese, e ler a biografia homônima escrita por Charles Higham e lançada pela primeira vez em 1993 (agora ganhando oportuna reedição pela Record) é de que o Howard Hughes de cada obra não pode ser a mesma pessoa. Scorsese, grande mestre do cinema que é, parece ter escolhido retratar essa figura mítica do imaginário americano mais por conseguir fazê-la se encaixar às suas obsessões como cineasta do que efetivamente registrar em película a vida desse personagem estranho e cheio de ambigüidades. O realizador de obras-primas como Taxi Driver, Touro Indomável e Os Bons Companheiros deve ter encontrado em Hughes, nas suas obsessões, nas suas paixões, no sua ânsia ao isolamento e sentimento de "único no mundo", todas as características de um personagem no estilo do taxista Travis Bickle, do boxeador Jake LaMotta e de tantas outras gentes perturbadas que marcam sua filmografia. Não interessava o Hughes real, e sim o Hughes utópico. O resultado é uma epopéia de glamour e dor como poucas vezes o cinema americano conseguiu fazer numa produção desse porte.

Já o livro de Higham sobre Howard Hughes, que supostamente inspirou o épico de Scorsese, cava fundo para tentar entender quem era, afinal, esse texano surgido do nada no universo de estrelas da Hollywood dos anos 20. Pode-se até dizer que Higham dá uma visão particular sobre a vida do milionário, mas o autor tem a seu favor catorze páginas detalhadamente explicativas sobre as fontes para cada informação do livro, incluindo nomes de entrevistados, documentos e datas. Parece mera obrigação de escritor, mas em se tratando da biografia de uma personalidade tão estranha, misteriosa e polêmica como Hughes, faz toda a diferença na hora de tentar se buscar o quanto de realmente verdadeiro há naqueles dezenove capítulos.

Não é à toa que o livro tenha como subtítulo A Vida Secreta de Howard Hughes. Se a fase do biografado no mundo do cinema e da aviação quase não é segredo algum, o trunfo está em Higham dissecar praticamente dia a dia o cotidiano corrupto e mesquinho de Hughes no final da vida. Uma fase marcada pela nebulosidade, quando muita gente pensava que ele era apenas um vegetal deitado numa cama, tomando drogas contra dores no corpo, escondido do mundo por medo de germes e bactérias, sendo controlado pelos funcionários. O autor desmistifica essa faceta e apresenta um Hughes calculista, no auge da canalhice e das manobras para conseguir lucros e driblar o imposto de renda. O homem que surge entre os dezoito anos que vão de 1958 a 1976 é dos mais próximos aos conceitos de canalha e maldoso que a história dos EUA concebeu.

A gênese dessa vilania típica de produções do cinema-lixo que surgem aos montes pode estar ainda na juventude de Hughes. Ou não. Difícil encontrar a chave para o que ele se tornaria. Howard Hughes nasceu em 24 de setembro de 1905 (sendo registrado exatos três meses depois, o que sempre gerou confusão sobre sua idade). O pai era dono de uma empresa de perfuração de petróleo, e logo tornou-se endinheirado. Quando ficou órfão, aos 18 anos, Hughes já era rico o suficiente para fazer as excentricidades que lhe conviessem. Possivelmente traumatizado por ter sido molestado pelo tio, um pouco surdo, paranóico como a mãe por limpeza e doenças, Hughes jamais conseguiu permanecer estável na vida. Nunca estava satisfeito, querendo mais e mais. Assim foi parar em Los Angeles, em meados da década de 20, interessado em se envolver no mundo mágico do cinema, arte pela qual era apaixonado. Em Hollywood encontrou o "sustento" que tanto almejava: produções cheias de atores famosos e lindas mulheres aos montes. Tornou-se o playboy preferido das colunas sociais e das camas de homens e mulheres. Teve casos com uma galeria de estrelas impressionante, beirando o inacreditável: Carole Lombard, Bette Davis, Ginger Rogers, Katherine Hepburn, Fay Wray, Rita Hayworth, Marlene Dietrich, Ava Gardner, Jean Peters. Na sua verve homossexual, Hughes se envolveu com, entre outros, Tyrone Power e Cary Grant, este talvez seu romance mais extenso, entre idas e vindas. Engravidou Hayworth e Peters, mas ambas abortaram, fosse por problemas naturais (a primeira) ou por manipulações do próprio Hughes (no caso de Peters). Ele odiava crianças e faria tudo para interromper uma gravidez.

É no que se refere aos romances de Hughes que O Aviador de Charles Higham exagera na dose. Existe grande significado no envolvimento do biografado com tantas personalidades, é parte de sua essência. Mas Higham por vezes extrapola o limite do bom senso, explicitando algumas situações que beiram o mau gosto, na tentativa de dar ao leitor visão abrangente das perversões de Hughes na cama. Por vezes soa dispensável e maçante, tirando a atenção de temas mais relevantes e dignos de serem tratados. O leitor interessado em determinadas manias sexuais pode ler algo mais especializado, como o curioso A Vida Sexual dos Ídolos de Hollywood, de Nigel Cawthorne (que tem, inclusive, um capítulo dedicado a Cary Grant). Tenho minhas dúvidas se uma biografia que se preste a radiografar uma personalidade deva especular excessivamente sobre as formas prediletas do protagonista na hora do amor.

A persona de aviador de Hughes também é fartamente registrada por Higham. Os principais momentos são o recorde de velocidade em vôos sobre terra firme, que ele atingiu em 1935; e, principalmente, a volta ao mundo em três dias, dezenove horas e dezessete minutos, a bordo de um L-14, em 1938. Essa proeza deu a Hughes celebridade nacional, tornando-o o herói exemplar de toda uma época. Mal sabiam as pessoas que o exaltavam o quanto de egoísmo se escondia ali. Da época de aviador em diante, as negociatas de Hughes como empresário da indústria de aviação foram aumentando e aumentando, inclusive no nível de ilegalidades. Contratos com o governo, desperdício de dinheiro público, sonegação de impostos, fuga de fiscais. Todo tipo de coisa errada, Hughes e seus asseclas experimentaram.

Principalmente naqueles tais últimos vinte anos de vida. Corroído pela síndrome obsessivo-compulsiva e pelos dolorosos sintomas de uma doença jamais diagnosticada (Higham levanta a hipótese de ser AIDS), Hughes parece ter perdido as estribeiras e dado consciência de que, sendo o homem mais rico dos EUA, em tese não precisaria se privar de nada que lhe favorecesse. Isolando-se em quartos fechados, marcado pela falta de higiene (algo paradoxal à sua mania de limpeza), cabelos grandes, unhas colossais, dentes podres, hemorróidas, tumor na cabeça e vários outros problemas, Hughes se manteve ativo, dando golpes e financiando atividades escusas do governo de Richard Nixon - incluindo participação fundamental no escândalo Watergate. Virou o maior investidor da jogatina de Las Vegas, envolveu-se com gângsteres e atentados à vida de Fidel Castro, deu dinheiro para a Casa Branca interromper testes nucleares (não por preocupação ao bem-estar mundial, mas pelo pavor de ser contaminado pela radiação), vendeu armamentos militares que foram usados na 2a Guerra e no Vietnã, manteve contratos secretos com a CIA, pelos quais fornecia equipamentos de espionagem, satélites, lasers e grampos, em troca do não pagamento de impostos.

Estas são apenas pinceladas num poço de sujeira. À medida que O Aviador vai avançando, a sensação é de que Howard Hughes era um incompetente megalômano, que se aproveitava da esperteza de quem trabalhava para ele em vez de se envolver diretamente nas ações. Sua utilidade era apenas ordenar e dar ou não aval às maquinações. Incompetente para gerir, jamais para gerar dinheiro a si mesmo, que fique bem claro. Faz sentido Martin Scorsese ter ignorado o "lado negro" de Howard Hughes. Na vontade de adequar o homem aos seus personagens, a melhor decisão era mesmo não mexer em vespeiro. Mas fica difícil apreciar com mais vontade o filme de Scorsese após conhecer o livro de Charles Higham, um tiro na idéia simplista de que o sonho americano pode ser construído honestamente e de que os EUA de outrora sejam o patamar da decência. O "sonho" de Hughes foi montado à base de muita infelicidade e prejuízo. Dos outros.

Para ir além





Marcelo Miranda
Juiz de Fora, 18/4/2005

 

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