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Terça-feira, 12/4/2005
Quando a tradição não põe mesa
Luis Eduardo Matta

Uma das coisas que mais me impressionam no Brasil é a nossa falta de apego por aquilo que é antigo, tradicional. Aqui valorizamos, sobretudo, o novo. Tom Jobim, numa entrevista dada a Leila Pinheiro para a revista Domingo, do Jornal do Brasil, em 1994, ano de sua morte, lamentava que, no Brasil, uma música de um ano já era considerada velha. E ele, certamente, não se referia aos modismos musicais, deliberadamente descartáveis que, após uma exposição massacrante na mídia, são rapidamente relegados ao ostracismo e substituídos por novos ritmos. E sim, à música como um todo, ele próprio incluído.

Essa lógica bizarra e, eu diria, quase ilógica, cada vez mais onipresente no mundo da música, também se aplica - e como - ao meio gastronômico. Na cidade do Rio, venho assistindo nos últimos anos ao fechamento de diversos restaurantes tradicionais, que atravessaram décadas e sucumbiram ao gosto de um público obcecado pelas novidades e pouco inclinado à idéia de freqüentar estabelecimentos que, a despeito da excelência de seu cardápio e atendimento, não se encontram em franca e total sintonia com a modernidade. Nessa onda, desapareceram, nos últimos anos, grandes restaurantes que fizeram história como Monte Carlo, Le Bec Fin, Nino, Antonio's, Florentino, Alt München e a tradicional Confeitaria Colombo, da avenida Copacabana. Em comum, todos possuíam ambientes sóbrios, por vezes até solenes, serviam boa comida, atendiam a uma clientela fiel e não freqüentavam as listas dos lugares da moda. Num tempo em que as pessoas se enjoam muito facilmente de tudo e buscam sempre por coisas novas, arrojadas, que emanem contemporaneidade por todos os lados, esses restaurantes acabaram sucumbindo àquilo que tinham de melhor: o apego à tradição e a aversão aos modismos. E a cidade ficou mais vazia sem eles.

Pode ser exagero meu, mas às vezes sinto-me tentado a acreditar que o brasileiro odeia ambientes sóbrios - não apenas os tradicionais -, e faz de tudo para destruí-los, substituindo-os por algo mais em conformidade com a nossa alegre e brejeira brasilidade. Talvez pelo fato de a sobriedade estar intrinsecamente associada ao passado, em contraste com um presente tecnológico e colorido. Um exemplo singular que ajuda a corroborar essa tese é o do Ao Ponto. Este era um dos mais agradáveis restaurantes de toda a orla de Copacabana, no início da década de 1990, quando comecei a freqüentá-lo. Recém-inaugurado, porém com ares de estabelecimento tradicional, ocupava parte do lobby de um grande hotel, erguido onde antes funcionava o belo cinema Rian. Ostentando uma discreta e suavemente requintada decoração art déco, o Ao Ponto dividia-se entre o restaurante propriamente dito - no qual eram servidos pratos saborosíssimos em porções generosas, como a inesquecível vitela acompanhada de batata rösti -, e um misto de café e snack bar, na entrada, onde era possível passar momentos agradáveis tomando uma singela xícara de café ou comendo um sanduíche acompanhado de um copo de Coca-Cola com gelo picado. O meu sanduíche favorito era chamado de "o seu sanduíche", onde o cliente escolhia o pão e todo o recheio, uma inovação para a época. Numa das minhas antológicas idas ao Ao Ponto, no verão de 1992, tive o prazer de comer "o seu sanduíche" ao som de um belíssimo concerto de jazz, que acontecia no subsolo, aonde se chegava por uma escada em curva que partia exatamente da entrada do snack bar. Essa verdadeira era de ouro do Ao Ponto foi bruscamente interrompida no verão de 1994, quando a sua administração, provavelmente liderada por algum débil-mental que criava minhocas e fungos no lugar do cérebro, decidiu mudar radicalmente a sua aparência, substituindo o refinado art déco, por uma horrenda e brega decoração de inspiração tropicalista que, pelo visto, agradou em cheio, pois perdurou por muitos anos. Não faço idéia de como o restaurante está hoje, nem sei se ele ainda existe, pois nunca mais pisei lá. Mas é lamentável que, neste caso, o mau-gosto tenha prevalecido e se incumbido de destruir o requinte para por no lugar um ambiente tão pavoroso.

A modernidade, muitas vezes, é cruel. Apressa-se em decretar a falência do antigo, para se impor a todo custo. Incute na mente pueril das pessoas um código de valores efêmero, apresentando-se como o único caminho para a redenção e para o bem-estar. A modernidade sussurra nos nossos ouvidos: "Ei, não vá àquele restaurante velho, pois coisas velhas são para serem jogadas fora. Vá àquele outro, que abriu na semana passada, com comida contemporânea, drinques transados, visual bem-bolado. Ir lá está na moda, está in". Nada contra os novos estabelecimentos, muitos são até muito bons, mas eles não podem ser a única opção. É por causa disso, dessa volúpia da modernidade, que hoje, no Rio como em todas as grandes capitais brasileiras, dificilmente encontramos um restaurante que tenha sido testemunha de outros tempos. Com raras exceções como o Bar Luiz e a Confeitaria Colombo, da rua Gonçalves Dias não existe um equivalente carioca de restaurantes tradicionais como, por exemplo, o Le Procope, em Paris, o Botín, em Madri, o Savini, em Milão e o Gröninger, em Hamburgo, que atravessaram décadas, às vezes séculos, servindo bem a gerações de clientes satisfeitos. Em compensação, é impressionante a quantidade de bares e restaurantes que fecham dois anos depois de inaugurados, dando lugar a outros, que acabam seguindo as mesmas pegadas.

Essa sina dos restaurantes serve para por em relevo a nossa busca frenética pelo novo em detrimento do antigo, uma característica histórica do Brasil, que só muito recentemente começou a ser atenuada. Basta dizer que, há trinta anos, a preocupação com o patrimônio histórico no país era quase nenhuma, o que custou a vida de muitas construções de valor inestimável, como o Palácio Monroe, no Rio, demolido em 1976. É como se, no fundo, nos sentíssemos arcaicos e víssemos, no advento da modernidade absoluta, um bálsamo curativo para o nosso atraso quase patológico. Notem que o emprego exagerado de anglicismos e galicismos em letreiros de lojas e na linguagem dos mais antenados, muitas vezes não ocorre para mostrar elegância e sofisticação, e sim, modernidade. Talvez pelo fato de havermos sido colonizados por Portugal que já na época da nossa independência, era um país de importância menor na Europa, adquirimos a tendência de negar tudo o que é "português" por nos recusarmos a permanecer estacionados no atraso, distantes da vanguarda francesa e anglo-saxã. Com a entrada em cena da mentalidade norte-americana e seu sedutor modo de vida, nos habituamos a assistir, nos filmes, à opulência moderna das suas metrópoles, muito mais em sintonia com o espírito jovem do que a velha Europa. Isso, é lógico, levou a distorções. Os Estados Unidos, com todo o seu tamanho e multiplicidade, são um país de muitas faces que também valorizam a tradição. Não fosse assim, não existiria na cidade de Nova York um restaurante como o Barbetta, fundado há cem anos e bastante freqüentado até hoje.

No mundo todo, o comércio está em constante mutação. Lojas, café e restaurantes fecham e outros abrem no lugar. Isso não é mau. É sinal de dinamismo urbano. Uma cidade grande, para progredir e manter-se vibrante, não pode se deixar engessar. No Brasil, no entanto, a questão é diferente. Como disse Tom Jobim, em relação à música, aqui as coisas envelhecem com uma velocidade ímpar. E envelhecem no pior sentido do termo. Tornam-se caquéticas e moribundas. Se um estabelecimento, um produto, ou mesmo um artista não estiver permanentemente na mídia, carregando uma bandeja repleta de novidades, ele será rapidamente relegado ao esquecimento. Uma sociedade que valoriza algumas tradições e conserva vivos ícones e elementos do passado, é uma sociedade com alicerces sólidos, com valores consolidados e que não abandona tudo para ir atrás do primeiro modismo que aparece. A mesma modernidade que sepulta estabelecimentos tradicionais, condena a memória de toda uma sociedade ao ostracismo, enaltecendo o presente e nada mais. Talvez seja isso o que falte ao Brasil: memória. É uma constatação já tantas vezes feita, já tão óbvia que virou um clichê, mas é a pura verdade: somos um país sem memória. E que não faz o menor esforço para manter o que existe, que dirá resgatar o que já se foi.

Enquanto esse panorama não muda, precisamos tomar cuidado para não nos apegarmos em demasia a um determinado bar ou restaurante no qual nos sintamos acolhidos e em casa, pois na semana seguinte, ele poderá já não existir, ser posto abaixo ou ser substituído por uma farmácia, uma agência bancária ou um estacionamento. Tentar construir uma tradição no Brasil é uma tarefa ingrata, a menos que optemos por uma vida isolada longe desse frenesi que graça por aí.

Para ler e assistir

Uma ótima pedida para quem aprecia a combinação entre cinema e livros é a coleção No Escurinho do Cinema, lançada pela Editora Planeta. Com projeto editorial da agente literária Ana Maria Santeiro, a coleção pretende trazer para as páginas, histórias originais escritas em prosa de filmes brasileiros voltados para o público infanto-juvenil. É fato que não temos, no Brasil, uma tradição de publicações nesta linha. Quando muito, as editoras lançam em livro, roteiros de produções que tiveram boa bilheteria. Por isso, a iniciativa desta coleção é tão interessante, sobretudo se considerarmos que o cinema brasileiro e infantil recebe ainda menos atenção por parte dos editores.

Os primeiros títulos da coleção são Tainá: uma aventura na Amazônia (Planeta; 76 páginas; 2004), Tainá 2: a aventura continua (Planeta; 80 páginas; 2004), ambos de Cláudia Levay e O Amigo Invisível (Planeta; 152 páginas; 2004), de Maria Letícia. Tainá e Tainá 2, grandes sucessos do cinema, premiados em festivais no Brasil e no exterior, foram dirigidos, respectivamente por Tânia Lamarca e Sérgio Bloch e por Mauro Lima e têm como protagonista Tainá, uma indiazinha órfã, que vive às margens do rio Negro, na Amazônia e se envolve em grandes aventuras para impedir o contrabando de animais por parte de traficantes de espécimes raros. Já O Amigo Invisível, escrito, produzido e dirigido por Maria Letícia, foi inspirado na própria infância da cineasta e mostra um painel das turbulências políticas do Brasil dos anos 50, através do olhar de uma menina, Tixa, que devido à pouca atenção que recebia em casa, acaba ganhando um amigo invisível que só ela pode ver e com quem fala sobre diversos assuntos.

Os livros receberam um projeto gráfico caprichado, com belas ilustrações e fotografias mostrando cenas dos filmes. Ao que tudo indica, a editora pretende levar a coleção adiante e publicar outros títulos, atendo-se, a princípio, à esfera do cinema infantil nacional. Para quem é adepto do lema "leia o livro - veja o filme", a novidade não poderia ser melhor.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 12/4/2005

 

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