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Segunda-feira, 9/5/2005
A falta de paciência com o cinema
Marcelo Miranda

"Se você não fosse crítico, será que ia gostar?" A pergunta me foi feita recentemente por uma colega de trabalho, após intensas discussões sobre a qualidade (ou falta de) do filme Reencarnação, com Nicole Kidman, ainda cartaz em algumas salas do país. Tudo girava em torno de dois conceitos a princípio meramente pessoais: o filme é bom; e o filme é ruim. Falar e debater isso não é trabalho algum, pelo contrário, é prazer. Não há nada mais estimulante na experiência pós-fílmica (inventei essa expressão?) do que concordar ou, principalmente, discordar do argumento alheio. Mas nunca eu tinha sido desarmado por um comentário tão simplório: "você é crítico e enxerga com outros olhos. Por isso o filme te parece bom".

Não sei explicar o motivo dessas frases terem me incomodado tanto. Muito menos o porquê de ter tido a reação que eu tive: baixinho, quase pra dentro de mim, disse à colega "não é bem isso", virei as costas e saí, desconcertado. O que dizer a ela? O que mais argumentar? Nestas perguntas e afirmações, ela já decretava que jamais mudaria a opinião, pois, na sua cabeça, o único motivo de não ter gostado de Reencarnação era não ter os "olhos do crítico". E ponto final (isso para evitar discorrer sobre o peso terrível que ela colocou nas costas do filme - "é o pior que já vi na minha vida", me levando a pensar, maldosa e silenciosamente, que ela deve ter visto muitos poucos filmes na vida. Enfim...).

Pensando melhor no desfecho do amigável bate-boca, mais uma vez me veio à mente a conturbada relação do crítico com o público. Quem nunca xingou os maiores impropérios ao ver um zé-mané escrever no jornal ou revista absurdos (positivos ou negativos) de determinado artista ou obra? Quantas vezes não nos pegamos pensando "ora, que coisa inaceitável! Quem é ele pra falar isso?" Mesmo os próprios críticos têm rusgas com o trabalho dos companheiros de profissão, menos por se acharem maiores e mais pelos próprios pensamentos e crenças, formados (nos casos dos bons profissionais) por anos de estudos e aprendizados.

Já o público em geral... Esse não tem dó. São poucos os leitores que param e tentam entender os motivos para o crítico tecer determinados argumentos. Menos ainda tentam compreender seu ponto de vista. Se foi contrário ao de quem lê, é guerra decretada. E como a crítica em geral, por viver e estudar aquilo que escreve, por estar inserida em universos quase específicos das artes, já desenvolveu certo refinamento nos gostos, na escrita, nas opiniões, o pensamento médio é normalmente o mesmo: se o crítico gostou, estou fora.

E dá-lhe uma barreira por vezes intransponível entre essas duas entidades, o todo-poderoso crítico e o indefinido público médio (englobando aí ouvintes, leitores, espectadores e afins). Este é um assunto já fartamente debatido, mas jamais concluído. Enquanto existirem os críticos, existirão os detratores dos críticos e essa aura de "do contra" do profissional que se aventura a escrever da obra de arte alheia.

O que me leva de volta à minha colega de trabalho. Naquelas simples palavras que tanto me derrubaram, ela apenas quis dizer que não adianta o público se igualar ao crítico. Este último não vive no mesmo mundo daquele. Nem vale a pena discutir, pois, mais uma vez nas palavras arrasadoras da colega, "a função do crítico é discordar". Discordar do quê - do que ela pensa? do que a massa pensa?? do que eu mesmo penso???

Falta paciência no mundo das artes. Especificamente na área de cinema, na qual atuo com mais afinco e conhecimento, sinto que falta MUITA paciência. Paciência para apreciar um filme mais lento, para aproveitar cada segundo na sala escura com o que de melhor se pode tirar da tela, entender gestos e palavras nem sempre de sentido fechado, esquecer do roteiro por um instante e se embasbacar com imagens, sons, movimentos, corpos, natureza. Enfim, sentir o cinema não como a arte de contar histórias (muitos ainda o enxergam apenas assim), mas como experiência sensorial única, sem comparativos dentro da arte, na qual planos e montagem fazem criar toda uma poesia que resvala da tela para o nosso universo. Não nos preocupar com os lances "geniais" do último roteiro de M. Night Shyamalan, mas tentar entender as reais propostas de uma pequena obra-prima como A Vila. Não nos ater aos detalhes limitados da conclusão de Reencarnação, mas ao rosto sofrido e expressivo de uma Nicole Kidman à beira do colapso, perturbada por algo sem explicações racionais e ao qual ela percebe a gravidade durante a apresentação de uma ópera. Esquecer a "necessidade" de um desenvolvimento "aprofundado" de personagens e mergulhar na (falta de) psicologia de Elefante e sua visão seca e contundente sobre a presença constante da violência no cotidiano de jovens de classe média. Parar de cobrar de todo casal o sexo puro e simples e passar a curtir os momentos eternizados nos olhares encabulados de Encontros e Desencontros. Não buscar apenas referências hitchcockianas no quase-suspense criado em O Outro Lado da Rua e tentar compreender na profundeza dos personagens de Fernanda Montenegro e Raul Cortez e na direção sensível de Marcos Bernstein a relação de solidão e afetividade existente naquele casal e sua busca alucinada, porém interiorizada, de atenção, afeto e amor no final da vida.

São inúmeros os exemplos de filmes pouco compreendidos no cinema recente. A mente falha em horas como essas, mas dá para levantar vários que se encaixariam numa categoria criada aqui, agora: a dos filmes que clamam por paciência. Não por serem lentos, arrastados, chatos. Longe disso. Simplesmente por serem menos afoitos do que a maioria das obras apresentadas a nós anualmente pelo viciado circuito comercial brasileiro. Será que a televisão invadiu com tanta força as mentes dos espectadores, tornando-as massas amorfas e sem raciocínio que, ao se depararem com qualquer outro trabalho audiovisual sem aquele "padrão de qualidade", logo ficam tão revoltadas e incomodadas a ponto de enxovalharem em praça pública o pobre do trabalho despadronizado? Porque só isso explicaria o sucesso de coisas como Os Normais - O Filme, produto televisivo transposto para a tela grande, repetindo os mesmos conceitos e linguagens da telinha, com a diferença de, agora, o espectador pagar para ver. Até quando a cultura do "mais do mesmo", do "quero o que conheço", vai imperar?

É onde entra a função do bom crítico, seja lá de que arte for. Ele deve saber muito bem do que está falando, para encaminhar o receptor nos caminhos mais certeiros para a melhor apreciação da obra. Não adianta querer impor a visão. É preciso propor, provocar, induzir o "alvo" a não simplesmente aceitar o que está escrito, mas tentar formar um ponto de vista próprio a partir dos escritos. Como dizia o francês André Bazin, talvez o mais importante crítico de cinema em todos os tempos (um perigo afirmar isso!), "a função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o lêem, o impacto da obra de arte". Palavras sábias e lúcidas de quem exerceu seu trabalho da forma mais exemplar possível. Num simplismo apropriado, mau crítico é aquele que se acha o descobridor definitivo dos segredos da obra; bom crítico é o que quer entender os significados junto com quem o acompanha ou, no mínimo, dar as referências necessárias para a descoberta. É quase uma continuação do filme, um adendo, um posfácio, fundamental para a evolução, registro e compreensão da cultura em geral.

Só que, de uns tempos pra cá, o crítico não vem sendo muito aceito na função a qual deveria lhe caber. Costumo sempre atacar em meus textos opinativos de cinema o fato de alguns diretores ou produtores considerarem seu espectador um ser incapaz de entender o que está ali, impresso na tela. Olga, por exemplo, é filme que grita por atenção, pede o choro, clama por emoção de quem o assiste, através dos recursos mais artificiais e superficiais possíveis (música altíssima, closes e lágrimas, crianças sendo levadas da mãe), matando totalmente uma possível crença na capacidade mental do espectador em entender os acontecimentos apresentados. Mas se Olga é capaz de ser o segundo maior sucesso do ano no cinema brasileiro e se filmes que pedem um mínimo de participação ativa do público são taxados de "chatos", "modorrentos", "nada envolventes" ou outras adjetivações semelhantes, sem que parte desse público aceite sequer abrir a cabeça para novas idéias de profissionais gabaritados a tentar lhes iluminar, talvez os tais diretores e produtores citados no início deste parágrafo não estejam tão equivocados quanto eu supunha. Ou então, como bem comentou um outro amigo cinéfilo meu, é um círculo vicioso: os filmes oferecidos em larga escala são cada vez mais burros (com honrosas exceções), por conta disso o espectador exige cada vez menos, e ele vai ficando sempre mais "emburrecido". Ou, por fim, o negócio é continuar nessa eterna e triste murada separando hermeticamente os críticos e os espectadores "comuns". E fiquemos todos assim, cada um no seu mundinho, cientes de estarmos pensando a coisa certa - minha colega de trabalho, pelo menos, não tem dúvidas quanto à visão dela sobre Reencarnação, e certamente vive feliz com isso. Talvez os bobos sejamos nós, os críticos "com outra visão", que esquentamos a cabeça demais.

Marcelo Miranda
Juiz de Fora, 9/5/2005

 

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