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Sexta-feira, 29/4/2005
A crítica e o custo Brasil
Julio Daio Borges

"As revistas literárias deveriam ser um dique contra a escrevinhação inescrupulosa do nosso tempo e a conseqüente enxurrada cada vez maior de livros inúteis e ruins, julgando-os de maneira íntegra, justa e rigorosa e flagelando sem piedade toda obra malfeita de um incompetente, toda literatice com que as cabeças-ocas querem socorrer os bolsos vazios, portanto cerca de nove décimos de todos os livros, e contrariando, conforme o dever, a comichão de escrever e o logro, em vez de promovê-los, já que sua tolerância infame encontra-se aliada ao autor e ao editor para subtrair ao público tempo e dinheiro."
Arthur Schopenhauer, em 1851

"Nosso jornalismo americano, hoje, é bem diferente. Vastas organizações preparam para nós sua versão das coisas do exterior. Com este propósito, empregam um grande número de repórteres comuns. E quando o material recolhido por estes repórteres chega, é processado editorialmente. Assim nos é servida uma substância homogênea chamada informação, criada por especialistas (ou ideólogos) inteiramente imbuídos dos pontos de vista da gerência. Raramente se permite que escritores talentosos e cultos apresentem nas suas próprias palavras o seu sentimento de realidade. Não. Se uma atividade, em nossa época burocrática, não é corporativa, controlada por gente 'responsável', se torna algo suspeito. O que lemos em nossos jornais e revistas nacionais é uma mistura artificial preparada com o intuito de aplacar nosso desejo de informação."
Saul Bellow, em 1955

Quando escrevi, no ano passado, um texto longo sobre a situação da crítica, fui bastante genérico, até um pouco teórico, e, talvez por isso, omiti um dado fundamental para quem exerce (ou pretende exercer) a atividade crítica no País: o custo Brasil. O custo Brasil, muito conhecido em matéria de economia, tem o seu equivalente entre profissionais de cultura: são os obstáculos, que todos enfrentamos, e que são inerentes, justamente, ao nosso País. Aquelas barreiras, que atravancam o progresso e que, financeiramente ou não, impõem um custo - fixo ou variável, ao que se tenta executar. Lógico que a minha abordagem, aqui, é em forma de metáfora, de alusão, mas as repercussões indiretas, em termos pecuniários, obviamente ocorrem.

Reputo o fato, primeiro, a um conceito, visitado e revisitado, do historiador Sérgio Buarque de Hollanda: o do homem cordial. Sendo bem literal, e não extrapolando a expressão, digo que a crítica raramente floresce, como deveria, num ambiente extremamente cordial como o nosso. Pois qualquer negativa, ou pequena objeção, mal chega a ser formulada e já sofre o patrulhamento da turma do deixa-disso. Quando não do próprio criticado. Sei do que estou falando porque já experimentei esse fenômeno.

Hoje na internet (ou talvez desde sempre), para quem se expõe na mídia, existe uma prática muito comum que, em inglês, se conhece como ego surfing. Funciona como uma espécie de clipping, via Google (ou qualquer outro mecanismo de busca), que permite ao citado conferir, através da Web, as últimas citações a seu nome e, averiguar, em termos críticos, se elas lhe são favoráveis ou não. Até aí, uma curiosidade normal, humana. Quem nunca se serviu do ego surfing? A peculiaridade está em, localizando as críticas contrárias à sua opinião, o criticado contatar os críticos e exigir deles uma retratação, ou então tentar, simplesmente, convencê-los de que estavam enganados em sua avaliação.

Vale frisar que não há nada de mal no diálogo e que, graças à internet até, ele floresceu ultimamente de maneira notável. O que não se pode, porém, é buscar a unanimidade. Imagine a situação: você faz uma crítica necessária, a determinada obra ou a determinado artista e, dias depois, ou meses depois, o sujeito surge na sua caixa postal tentando te convencer de que você estava errado e de que, na próxima vez, você tem de obrigatoriamente reconsiderar. Claro que o criticado tem todo o direito de se manifestar, e às vezes até tem direito de resposta, mas ele não pode querer exercer um controle sobre o pensamento do crítico em questão. Isso é o Brasil; e isso freqüentemente ocorre.

Pessoalmente, acho a unanimidade de uma pobreza torpe. Como dizia Nélson Rodrigues, ela é típica de ambientes, como brasileiro, em que não se pensa. Pois, se as pessoas de fato pensassem, com suas próprias cabeças, e não por procuração, não haveria unanimidade - ela não resistiria à liberdade de opinião. Mas nossos notáveis são vaidosos e à unanimidade ambicionam sem a menor vergonha, como se ela fosse o objetivo último ou a consagração maior. Não é; ela é apenas idiota. Observe a unanimidade televisiva e entenderá o que estou falando: ela é essencialmente estúpida, proferia por mentes embotadas, de que o raciocínio passa longe, mudando de acordo com a estação, com a imposição da "intelligentsia" e do entertainment world. Não tem, portanto, o menor valor. E quem a persegue terá de acertar as contas com o futuro, com os cérebros que, sem agir em coro como hoje, vão observar com distanciamento a realidade atual e concluir algo sobre o que de relevante se fez e o que efetivamente ficou. Garanto que não será nada (nem ninguém) unânime.

Mas voltando ao homem cordial, a maioria dos criticados não responde, muitos simplesmente xingam, a minoria argumenta e uma meia dúzia usa de uma polidez e de uma educação tão grandes que, se se for considerar a cordialidade ao extremo e ao pé da letra, nenhum crítico resiste ou sustenta por muito tempo suas posições. Como se uma atitude de desprendimento ou uma caridade quase cristã, para com o crítico mais feroz, neutralizasse qualquer objeção momentânea ou, no pior dos casos, garantisse uma diminuição na intensidade ou no poder de fogo, já que nenhum ser humano tem coração de pedra ou sangue de barata. Como se o criticado olhasse para o crítico e dissesse, em linguagem bem coloquial: "Veja bem, eu sou um cara tããão legal... Será que - de você - eu mereço isso (ou só isso)?" É muito bonito, é muito grande, é muito magnânimo - mas crítica mesmo não tem nada a ver com essas coisas.

Para começar que, ao contrário do que se pensa no Brasil, e apesar de Nietzsche, crítica de verdade não deve ser ad hominem. Críticas dirigidas exclusivamente a pessoas são, geralmente, moralismo, recalque ou ressentimento - uma dessas três coisas; que, aliás, devem ser tratadas com profissionais habilitados do ramo médico. Até o século XIX, funcionava muito bem desqualificar o adversário pelo que ele era e não pelo que ele realizava. Como se o crítico dissesse: "Como você é narigudo e feio, eu não vou nem discutir". Era engraçado e provocava um belo efeito cômico sobre a platéia, mas, hoje, em pleno século XXI, soa apenas infantil e bobo - como se um adulto, numa discussão séria, precisasse retroceder e usar argumentos de criança. Logo, o sujeito pensar que estamos criticando ele, e não o que ele fez, está totalmente fora de questão (embora muitos críticos fora de moda ainda sigam essa diretiva básica).

Assim, não tem o menor cabimento o criticado se apresentar como uma excelente pessoa (ou um excepcional ser humano) e, imediatamente, imaginar que sua obra está acima de qualquer juízo que lhe venha a ser desfavorável. Se uma realização é falha, seus defeitos devem ser apontados, por uma crítica justa, independentemente de quem seja o realizador. Eu sei que, novamente, na teoria, isso tudo soa muito óbvio e defensável, mas, por incrível que pareça, os principais baluartes das artes e da cultura no Brasil ainda não entenderam (ou não quiseram entender). Lembro de um exemplo prático do Tom Zé, um músico de valor, que - justiça seja feita - tenta se conservar inquieto e interessante. Pois ele declarou, anos atrás, que era inconcebível alguém criticar um livro de Chico Buarque, pelo simples fato de que era... um livro de Chico Buarque (!). Como se autor e obra fossem entes inseparáveis; e como se afirmar, digamos, que Chico Buarque não era bom escritor, equivalesse a afirmar, por conseguinte, que ele não era boa pessoa, que ele não era bom artista, que ele não era enfim bom compositor. Visto dessa maneira, parece um absurdo retórico - mas a crítica brasileira se alimenta diariamente de absurdos similares (ou você nunca reparou que, na imprensa, nunca sai uma crítica desfavorável ao escritor Chico Buarque?).

Claro que não é tão simples assim e claro que existem outros interesses em jogo: interesses de mercado, por exemplo. Imagine a seguinte situação: você é jornalista, com ambições de se tornar escritor, e recebe determinado livro de uma editora grande para criticar. Se for rigorosamente justo, no Brasil, corre o risco enorme de, quando for publicar seu volume, ser terminantemente recusado por essa mesma editora. "Falou mal, fechou uma porta" - esse é o tipo de profissionalismo, personalíssimo, que impera nas relações entre críticos e criticados neste País. Outro exemplo: se você for jovem escritor e depender de um desses mandarins literários que hoje dominam os pequenos selos e influenciam os principais suplementos, e algum dia os houver criticado (mesmo que sutilmente), está liquidado. De início, vão fingir te ignorar; se ainda estiverem com raiva, de alguma forma vão te atacar; mas, a longo prazo (isso se você não sumir na poeira das ruas), vão mobilizar todos os recursos para garantir que seu projeto não decole - e passe assim incólume pelo establishment intelectual. Eu não sei exatamente o que eles vão falar pra te queimar, mas - sendo bem coloquial aqui, de novo - será algo como: "Olha, esse cara aí não é legal...".

Entre as pessoas e o mercado, existem, evidentemente, as relações profissionais (ou quase). Voltando ao meio literário (é o exemplo mais eloqüente e próximo que me ocorre), você sabia que, se for mais uma vez jornalista, pode perder um emprego por que não elogiou determinado autor - que agora virou seu editor? Pois pode apostar. É de uma pequeneza atroz, mas acontece toda hora. Infelizmente, no Brasil, por não haver ainda (talvez nunca haja) profissionais sérios no ramo da cultura, permanece a confusão licenciosa entre artistas e administradores de empresas, instituições ou orgãos fomentadores. Ou seja: o cineasta, teatrólogo ou músico que você acabou de contestar, criticando seu último filme, sua última peça ou seu último disco, pode vir a se tornar secretário municipal, estadual ou até ministro da cultura, e pode vir a bloquear, vingativamente, os acessos aos fundos que você um dia pleiteou. A ciranda, aqui, é desse tipo, e tenazmente se recusar a elogiar um livro, um filme ou um CD, de determinado grande nome, pode se converter numa tremenda de uma enrascada, da qual você pode nunca mais escapar - e, ai, se chegar a depender dessa pessoa para alguma coisa, ela não lhe dará nenhuma chance, porque não se esquecerá jamais.

Eu, obviamente, como entrei no sistema pelos fundos, não sabia nada dessas coisas, quando comecei a criticar por conta própria. Com os anos, contudo, notei que alguns processos eram estranhamente demorados, que algumas iniciativas misteriosamente não floresciam, que determinadas pontes, entre o ato e o fato, pareciam se estender sobre um abismo, e meu destino parecia ser nunca atravessá-las. Então fui entrando nas engrenagens e entendendo, parte a parte, o todo. A crítica que hoje se exerce no Brasil, estou falando da grande mídia (e da pequena também, posto que imita a grande), é pífia, quando não inexistente em todos os sentidos. A roda-vida que amarra críticos e criticados, e cria uma dependência permanente entre eles, inviabiliza a própria liberdade de expressão - e aquilo a que assistimos é uma pantomima (que nem vou chamar de pueril, por respeito aos seres humanos em formação - acredito mais cerebralmente ativos do que os nossos críticos de plantão). Muito se fala em educação, e no papel (in)formativo de jornais e revistas, mas ninguém percebe (ou não quer perceber) que essa critiquinha que aí está é antieducativa, e que seus defensores estão, visivelmente, colaborando com a queda geral do nível mental que - no mass media - se instala a passos largos. Não sou ingênuo a ponto de dizer que só a internet vai salvar a pátria, porque não vai; mas, pelo menos, não estou reportando um mundo que, para muita gente, está uma maravilha - quando, na verdade, não está. Num futuro não muito distante, alguém vai cruzar a produção cultural com o que se dizia dela, em nossa época, principalmente no mainstream, e vai constatar que estávamos cegos, surdos e mudos. Será a hipótese mais condescendente com a absoluta miséria da crítica atual.

Julio Daio Borges
São Paulo, 29/4/2005

 

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