|
Quarta-feira, 20/4/2005 Pais e filhos, maridos e esposas II Fabrício Carpinejar Não existe amor errado. Existe somente amor que não se convenceu. É senso comum defender que o casamento desmorona após dez ou quinze anos. Que chega a monotonia, o tédio, o marasmo. Os casados têm que atravessar uma praga, uma maldição dos divorciados, desbastar o olho gordo, resistir a essa música bate-estaca nos ouvidos. Quem pergunta "quanto tempo tem seu casamento?" e recebe uma resposta acima de uma década, solta uma risadinha cínica. A risadinha cínica está a afirmar: "espera, a tragédia virá!". Casado, me vejo como um ingênuo, um idealista, como uma criança que olha sexo na tevê e o pai apaga e avisa que no futuro ela entenderá. Não concordo com o hábito de ser pessimista para não sofrer depois. O pessimista sofre duas vezes, antecipando e cumprindo. O otimista, no máximo, sofre uma única vez. E nem sempre se aprende com o sofrimento. Já vi gente que sofre barbaridade e não muda nada. Sofre e termina mais egoísta, mais cético, mais isolado, mais frio. Pode-se aprender com alegria, não? A alegria ensina, ainda mais depois das dificuldades. Da onde vem essa fobia da longa convivência? Será que a mulher com quem vivemos se torna indiferente, deixa de oferecer toda a intensidade de antes, ou o amor é que se torna mais exigente com o tempo e se especializa em reivindicar. Poucos param para sondar essa hipótese: é natural o amor ficar excessivamente severo, já que agora tem uma história e a fortuna dos dias, a tal ponto que cobra o que nem precisava. Não é o amor de antes que acabou, o amor de antes ficou tão grande que vê tudo como falta de amor. Perto do que se transformou, o mundo é pequeno para alojá-lo. O amor é insaciável. Quanto mais obtém mais quer. Diferente da amizade que não aposta alto e se contenta em proteger o que obteve em vida. A amizade larga a roleta ao empenhar um único lance. O amor não. O amor se endivida até pedir falência. O amor tem uma fome obscena, pois devora a própria memória se necessário, devora a própria imaginação se preciso. O que cada um representa individualmente é diferente do amor dos dois, assim como um filho é diferente dos pais. O amor dos dois é uma outra entidade, resultado de todos os momentos em que sentaram juntos e dividiram os movimentos das sobrancelhas. O amor dos dois é mais forte do que o amor pessoal. O amor dos dois faz com que o passado seja pouco, que o futuro seja pouco, que o corpo seja pouco. O amor dos dois é justamente o que pode apartar. Incrivelmente o marido e a mulher sentem ciúme do amor que criaram. Fico arrependido ao brigar. Não planejo minha raiva a ponto de soltá-la devagar, com humilde arrogância, se é que existe algo assim. Não saio de uma discussão com a convicção de estar certo. Não saio leve, com a calma de quem fez o que deveria fazer. Não saio impune, a jogar futebol e beber depois. Não saio amasiado, esperando o pedido de desculpas do outro. Saio ofendido, alterado, com a respiração presa. Como se tivesse sido espancado por abelhas. Entro em desativação total. Discutir me faz mal, como um luto. Subir a voz, empurrar, sortear desaforo. Eu me sinto grosseiro, egoísta, ínfimo. Os vizinhos escutam os berros, as cobranças, as ironias, a bateção de portas. Eu me vejo como um mentiroso, que não soube tocar e amar a não ser pela violência. Exagerei na maldade, falei o que não quis dizer, mas falei e agora há uma responsabilidade em ter inventado. E as palavras que eu disse involuntariamente serão cobradas por quem xinguei. Serão catalogadas, fichadas, examinadas com rigor. Brigar é estornar o depósito da fidelidade. É desmerecer. É desqualificar. É rebaixar logo o que mais valorizamos, para aparentar seriedade e preocupação. É bancar o triste e ofendido para convencer que sou mais triste e ofendido do que qualquer um. Briga-se para assegurar exclusividade da dor, quando poderia garantir no lugar a exclusividade da alegria. Pode ser ciúme, inveja, incompreensão. Nenhuma briga começa por um motivo generoso, e sim por banalidades. Saio de toda bronca querendo fazer as pazes. Não suporto dormir em cama separada, não suporto atravessar a noite no desentendimento, não suporto as indiretas, não suporto observar o desconcerto dos filhos, no meio, fingindo olhar a tevê. Acho que sou fraco, sou tolo, porém engulo de volta o orgulho, como quem é obrigado a tomar um remédio amargo de uma só vez. Um remédio para controlar a acidez da memória, a acidez do estômago, a acidez dos lábios. Peço desculpas ainda que não seja o culpado. Tento fazer a amizade com o riso. Tento apelar para o abraço. Tento inclinar o dorso em barco, ainda que o barco engatinhe em terra seca, ainda que o barco demore para a chuva, ainda que o barco seja o leme de uma árvore. Ao brigar, procuro os cartões que recebi de meus filhos. Os primeiros, dos 3 aos 5 anos, feitos com desenhos e letras garrafais, com uma distância enorme entre as palavras. Na época do presente, corrigia o português deles, procurando inspirar a escrever certo. Que ridículo. Não era o momento de corrigir nada. Hoje admiro qualquer erro de concordância que encontro na antiga cartolina, nos postais com colagens de revistas, nas cartas de aniversário, pois há espontaneidade no ato de dizer. O deslize na ortografia é a paz que não encontro mais em mim. O deslize na ortografia é como um beijo que salta do rosto e estala nos ouvidos. Prefiro muito mais o "pesso que Deus pássaro te proteja" de meus filhos pequenos do que o "peço" adulto, que é uma ordem, não uma reza. "Pesso" é quase uma pessoa. "Pesso" é Deus. Meu maior medo não é morrer sozinho, ainda que morrer sozinho, sem visitas em um hospital ou sem pássaros num asilo, é tão triste quanto uma pilha de discos de vinil para vender. Meu maior medo é viver sozinho e não me acompanhar. Meu maior medo é ter um dia de aniversário por ano para lembrar de que não nasci, de que estou "apenas olhando". Meu maior medo é perder a curiosidade da solidão. Ficar com alguém para disfarçar a espera, esquecendo do egoísmo de prender esse alguém de uma nova chance. Meu maior medo é ser reconhecido por aquilo que poderia ser. Meu maior medo é dizer sim para desistir depois, dizer não para querer depois. Meu maior medo é não ser avisado pelo medo. Meu maior medo é fingir que estou bem e me contentar em afirmar "o problema não é você, sou eu" em cada fim de relacionamento. E não acreditar nisso, seguir sendo o problema dos outros para me livrar de meu problema. Meu maior medo é viver sozinho e não ter fé para receber um mundo diferente e não ter paz para se despedir. Meu maior medo é almoçar sozinho, jantar sozinho e me esforçar em me manter ocupado para não provocar compaixão dos garçons. Meu maior medo é ajudar as pessoas porque não sei me ajudar. Meu maior medo é desperdiçar espaço em uma cama de casal, sem acordar durante a chuva mais revolta, sem adormecer diante da chuva mais branda. Meu maior medo é a necessidade de ligar a tevê enquanto tomo banho. Meu maior medo é conversar com o rádio em engarrafamento. Meu maior medo é enfrentar um final de semana sozinho depois de ouvir os programas de meus colegas de trabalho. Meu maior medo é a segunda-feira e me calar para não parecer estranho e anti-social. Meu maior medo é escavar a noite para encontrar um par e voltar mais solteiro do que antes. Meu maior medo é não conseguir acabar uma cerveja sozinho. Meu maior medo é a indecisão ao escolher um presente para mim. Meu maior medo é a expectativa de dar certo na família, que não me deixa ao menos dar errado. Meu maior medo é escutar uma música, entender a letra e faltar uma companhia para concordar comigo. Meu maior medo é que a metade do rosto que apanho com a mão seja convencida a partir com a metade do rosto que não alcanço. Meu maior medo é escrever para não pensar. Nota do Editor Fabrício Carpinejar é poeta, autor de seis livros: entre eles, Cinco Marias (2004) e Caixa de Sapatos (2003). Estes textos foram originalmente publicados em seu blog e reproduzidos aqui com sua autorização. Fabrício Carpinejar |
|
|