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Quarta-feira, 27/4/2005
Leitura-tartaruga
Daniela Sandler

Numa das muitas cenas memoráveis do documentário Derrida (2002), o filósofo francês Jacques Derrida mostra às câmeras sua biblioteca particular: estantes apinhadas de livros, livros escorrendo pelos cantos. Teria o filósofo lido todas essas obras tão complexas? Não, diz Derrida. "Eu li apenas uns dois ou três livros. Mas os livros que eu li, eu li muito, muito bem." É claro que Derrida leu mais do que três livros - é claro também que ele leu muito mais livros do que a maioria das pessoas. E, sem dúvida, leu todos com atenção e profundidade. Mas, com a mistura de ironia e enigma que permeia também seus escritos, a declaração do filósofo não era uma asserção literal. Era, sim, um comentário sobre a superficialidade e a ligeireza com que se pratica a "leitura" atualmente.

Quantos de nós paramos para ler a resenha de três páginas do "Mais!", a coluna de quinze parágrafos do Digestivo, os tomos de história ou filosofia na prateleira, o clássico esperando na cabeceira da cama? Não é culpa apenas da falta de tempo, de preguiça ou cansaço, ou do "estresse da vida moderna" (como se a vida antiga, com guerras e escravidão e barbarismo, não tivesse seus estresses também!). Para cada matéria esparramada do "Mais!," a Folha publica cem outras materinhas curtas ou curtíssimas. Como em quase todos os jornais e revistas, o tamanho das notícias diminui no curso dos anos, perdendo espaço para anúncios, imagens, e até mesmo margens em branco. A filosofia? Não assustar o leitor com um mar infindável e nebuloso de letras. Os nossos olhos desacostumados provavelmente achariam engraçado, até desatino, o comprimento dos textos dos jornais de cem anos atrás. A notícia, hoje, vem empacotada no primeiro parágrafo - diz o ibope que a maioria dos leitores não passa da manchete.

Ler na diagonal

O pouco espaço dos jornais ecoa o parco tempo das reportagens televisivas e a parcimônia de boletins on-line. Se a prática condiciona nossos hábitos, então estamos sendo treinados a ler sobre cada vez mais assuntos cada vez mais rápido cada vez menos. A pressa não é exclusiva à cultura cotidiana do jornalismo e da publicidade. Até mesmo nos redutos onde poderíamos ter a chance de nos aprofundar, de nos demorar sobre um texto - nas salas de aula, nas universidades, nos seminários e conferências - a regra é a leitura dinâmica.

É comum um curso de graduação norte-americano pedir que os alunos leiam de cem a trezentas páginas por semana, obras complexas de literatura, filosofia, sociologia, história. Juntando todos os cursos que um aluno faz por semestre, o volume pode ser três ou quatro vezes maior. As duas ou três horas de aula por semana não são suficientes para a discussão de todos os textos lidos. Os professores justificam: os alunos precisam aprender a fazer leitura dinâmica. A "ler diagonalmente" (read diagonally). A "dar uma olhada superficial" (skim). Isso se aplica não só a alunos de graduação - que, muitas vezes, querem apenas um diploma profissional e nada mais com a academia -, mas também a pós-graduandos, cuja vocação é o mergulho na pesquisa e teoria. Fazer um doutorado, segundo alguns professores, é aprender a fazer leitura dinâmica. Senão, de que outra maneira se pode dar conta do imenso volume de textos e obras publicados no campo estudado? É preciso, afinal, mostrar domínio do campo, autoridade sobre o conhecimento; é preciso mostrar que se sabe e que o que se escreve não é igual a nenhum outro texto já publicado. O caso é que "domínio do conhecimento," aqui, equivale a quantidade, e não conteúdo.

Não admira, então, que nós, pesquisadores ou não, tenhamos esta atenção tão curta. Como disse antes, não por preguiça, mas para dar conta da torrente de informação e idéias e publicações que avança e se acumula ao nosso redor. Há, sim, obras compridas na lista de mais vendidos - mas são em geral a leitura fácil de humor, auto-ajuda, panfleto político de Michael Moore ou diário feminino. Como disse Derrida tão sinteticamente, o problema não é a quantidade ou a extensão do livro, mas o modo como lemos.

Com mais delongas

Eu às vezes me sinto tão antiga e empoeirada como livro em canto de sebo. Teimo em refletir sobre cada parágrafo diante de meus olhos em vez de galopar sobre a página. Insisto em reler certas frases tantas vezes quantas forem necessárias para desencavar seu sentido. Faço questão de vagar meu pensamento, conectando o autor que tenho em mãos com outros autores lidos no passado. Regresso a páginas viradas para cotejar as diversas partes de um texto e compreender a estrutura e a progressão da obra toda. Não deixo escapar nenhuma palavrinha, uma vírgula que seja ou nota de rodapé. Anoto nos cantos, sublinho, marco páginas, transcrevo longas citações. Nesse meio tempo, meus colegas já dominaram três livros, dois artigos científicos e dois periódicos semanais. Chocados, incrédulos, tentam entender o que é que eu faço que consigo ler apenas uma média de dez páginas por hora - isso, nos dias em que estou muito veloz. Meu recorde? Trinta, na época de muita prática. E eu, que nunca tinha parado para contar até então...

Mas essa coisa de querer entender muito, muito bem um livro não funciona na nossa cultura por atacado. Eu temo, por exemplo, que se pular partes de um livro talvez perca uma passagem fundamental, uma declaração útil, ou uma idéia que muda ou nuança todo o resto. Na hora de a gente se referir às idéias de outros autores, usando palavras alheias fora de seu contexto, é fácil afinal deturpar o sentido original. Mas para que tanta preocupação? Afinal, o que quer que seja que eu escreva, a maioria dos leitores não prestará muita atenção. Na leitura dinâmica, diagonal (o que quer que seja isso!), o uso espúrio de uma idéia provavelmente não será percebido. Se apressamos a leitura, apressamos também o pensamento e a escrita; e o ciclo se repete, se multiplica. Pessimismo? Digo de minha experiência fazendo checagem de livros prestigiosos de autores mais ainda: é de pasmar a quantidade de trechos mal-citados, transcrições erradas, títulos alterados, páginas inexistentes e idéias mal-interpretadas - para não dizer de plágio mais ou menos velado que passa batido porque ninguém se dá ao trabalho de conferir os originais.

Fora da universidade também

Essa desilusão poderia ser apenas com a cultura acadêmica ultracompetitiva que se baseia no número e volume de páginas publicadas, mais do que na qualidade de cada idéia. Mas a tal "cultura acadêmica" não existe num vácuo. Reverbera e reflete a cultura ao redor. Derrida não estava se dirigindo apenas a seus colegas filósofos ou a seus estudantes - falava ao público, e do público em geral (assim como o documentário, aliás, que é de interesse para muito além dos especialistas; é envolvente, claro e relevante). Em tudo, em todos os lugares, somos bombardeados pela mesma lógica: mais coisas, mais rápido. Tentamos "ficar em dia com os acontecimentos", assistir ao filme mais novo em cartaz, freqüentar o mais recente bar da moda, usar a roupa ou o penteado da última estação, saber sobre a celebridade da hora, falar na gíria do momento. Não à toa, uma das doenças psiquiátricas de nossa época (mais um modismo, talvez?) é a tal da "desordem do déficit de atenção" (Attention Deficit Disorder, ou ADD). A sucessão de novas coisas não pára, e nem deve parar. O que questiono é a ansiedade de engatar na sua carreira desabalada.

Derrida leu um montão de livros muito, muito bem, e escreveu um montão de outros. Sua crítica não é sobre o número de páginas, ou o tamanho de textos produzidos. Afinal, nem todos nós podemos, mesmo que quiséssemos, devotar nossa vida a transformar a filosofia ocidental. Mas talvez encontremos valor e prazer - e algo de nós mesmos - se nos alongarmos sobre um livro, uma idéia, uma pintura, uma conversa, ou a vista da janela. É tentador, nessa nossa época de relativismo generalizado, diluir as fronteiras da arte e da cultura de massa, e acusar a distinção entre elas de "elitismo". Talvez seja, de uma forma. Mas, de outra forma, temos muito a ganhar e a aprender com o cultivo da pausa e da reflexão. No mesmo documentário, em outro trecho igualmente antológico, Derrida aparece sendo entrevistado por uma norte-americana. Ela faz referência ao conceito de pós-modernismo que muitos associam com o filósofo, mais especificamente a idéia de fragmentação e ironia. A entrevistadora então dá um exemplo que tem se tornado popular, descrevendo o seriado Seinfeld - com sua justaposição de situações díspares, cômicas e absurdas, sua coleção de referências paródicas a elementos da cultura contemporânea, e a ausência de um sentido ou narrativa básica - como encarnação do pós-modernismo e da filosofia de Derrida. O filósofo solta um olhar como a dizer, "De que raios você está falando?", e conclui: "Eu acho que vocês deveriam é ver menos televisão, e ler mais."

O retorno das Cruzadas II

Há algumas semanas eu publiquei uma coluna sobre o recrudescimento do conservadorismo ideológico e do fundamentalismo religioso. Gostaria que meu texto tivesse sido apenas exagero pessimista. Mas, na semana passada, o cardeal alemão Joseph Ratzinger foi escolhido como novo papa - entre os candidatos, talvez o mais linha-dura possível. Ratzinger segue o conservadorismo de João Paulo II em assuntos como o uso de preservativos e a pesquisa científica com células-tronco; no passado, condenou a Teologia da Libertação, ignorando sua importância na luta contra severas condições de opressão social; e escreveu textos defendendo a idéia de que o catolicismo é melhor do que todas as outras religiões. Não qualquer catolicismo, mas o catolicismo rígido e retrógrado que ele prega. Ratzinger tem, é claro, todo o direito de acreditar no que quiser. Tem até mesmo o direito de pregar seus valores. Mas, na condição de líder espiritual do mundo cristão, deveria ao menos demonstrar mais diplomacia (senão sensibilidade e tolerância) diante da polarização e do conflito crescentes entre fundamentalistas islâmicos e cristãos. Em vez de aproximação ecumênica ou tentativa de paz, Ratzinger parece querer radicalizar ainda mais o confronto, e atiçar seus fiéis.

Daniela Sandler
Riverside, 27/4/2005

 

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