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Segunda-feira, 23/5/2005 Um livro policial e um Toni Venturi oportuno Marcelo Miranda 1. Histórias policiais clássicas têm características próprias: crimes misteriosos, investigadores sabichões, pistas falsas e revelações surpreendentes. Claro, dependendo de quem escreve, nada é tão simplista quanto este meu emaranhado de adjetivações. Um Edgar Alan Poe raramente soa simplista, ou mesmo Conan Doyle em momentos mais inspirados. Agatha Christie já não é tão complexa e interessante assim, apesar de ter papel fundamental na escrita de mistério: seus livros costumam ser porta de entrada para quem se aventura nesse gênero literário ou mesmo na literatura com um todo (eu mesmo aprendi a gostar de ler livros devorando, ainda muito criança, dezenas de casos do detetive francês - ops, belga - Hercule Poirot. E não desdenho Agatha Christie jamais. Apenas reconheço a limitação de seus escritos, o que não deixa de ser um elogio dentro de sua proposta). Os Demônios Morrem Duas Vezes (Editora Códex, 2005, 254 páginas), de Fernando Pessoa Ferreira, não chega a ser um romance policial desses clássicos, mas presta tributo a eles. Principalmente ao comissário Maigret, criação do francês Georges Simenon. O protagonista, investigador Omar Fonseca, segue ao longo de todas as páginas (e não se cansa de repetir) a máxima de Maigret "eu nunca tenho idéias", quando se refere aos casos em que se vê envolvido. Especificamente no livro de Ferreira, o caso diz respeito ao assassinato brutal de dois travestis numa São Paulo (bairro Vila Madalena) recheada de peculiares personagens. Pais-de-santo, divorciadas burguesas, velhinhos paranóicos, porteiros nordestinos, grupos neonazistas, freqüentadores de academias de artes marciais, delegados viciados em charutos cubanos. Estes são alguns tipos que transitam pelas páginas deste romance de estréia do autor. Apesar de prestar tributo a Maigret e a tantos outros "papas" da narrativa policial (não deve ser à toa que o investigador Omar Fonseca tenha esse sobrenome, nos remetendo de imediato ao mestre Rubem Fonseca), Fernando Pessoa Ferreira está menos interessado na investigação e nos crimes propriamente ditos do que em se deleitar com ironias, deboches e referências pop - tudo isso no mesmo caldeirão. Um divertido diálogo entre Omar e seu parceiro (que veio do nordeste e não tem a carga cultural do chefe) deixa isso bem claro: - Você se lembra do Capitão Marvel? - Não. Ele é capitão da PM? Todo o texto de Ferreira segue esse estilo. Bem humorado, direto, sem grandes desenvolvimentos de personalidades e pensamentos. Um trabalho comercial, voltado para o grande público leitor. Pesa a favor o fato de que o autor demonstra ter absoluta noção de para quem está falando desde as primeiras páginas, sem pretensões de ir mais longe. Há certo exagero de citações, por vezes explícitas demais (Os Três Mosqueteiros, Janela Indiscreta e Harvey Keitel no filme Cortina de Fumaça), o que enfraquece a condução da história. E é essa condução o maior ponto de interesse no livro, já que Ferreira não parece preocupado em valorizar sua própria trama policial, mas sim apresentar um universo de criaturas humanas em constante contato, passando pelas mais variadas situações que vão descambar em momentos de puro pastiche. Isso fica óbvio na resolução do enredo: após mostrar todos os passos do investigador em busca do assassino, o desfecho inteiro acontece fora da vista do protagonista, de forma independente e quase sem relação com suas andanças junto ao parceiro. É como se Ferreira assumisse que seu interesse mesmo era usar esses personagens apenas como pretexto para uma curiosa, porém ligeira, denúncia da violência incompreensível e beirando o fascismo que assola a maior metrólope do país. No saldo final, Os Demônios Morrem Duas Vezes se afasta de suas maiores referências, mas proporciona bons momentos de diversão. E só. 2. O sucesso de público e crítica do novo longa-metragem de Toni Venturi, Cabra Cega, vem animando o circuito independente do cinema brasileiro e dando alternativa de qualidade em cima do "mais do mesmo" tão apregoado nas nossas telas. O filme, com meras oito cópias em circulação, já deve estar beirando um público de 20 mil espectadores - se este número já não foi ultrapassado. Num momento como esse, é válido conhecer (ou rever) o primeiro longa-metragem de ficção de Toni Venturi. Latitude Zero, disponível em DVD e VHS, causou boa repercussão quando foi lançado, em 2001. É um filme ao mesmo tempo estranho e intrigante. Intrigante pela história que conta: mulher grávida de oito meses vive sozinha no meio do nada, no Planalto Central, tomando conta de um bar onde ninguém pára. Ao seu redor, montanhas e terras abandonadas pelo garimpo não mais reinante; certo dia, um homem chega ao local e passa a conviver com ela, numa relação que mistura apreensão, sexualidade e raiva. Intrigante por conta do tom que Venturi dá ao filme: em alguns momentos, a narrativa se assemelha a um pesadelo (o parto da mulher em meio a velas, o choro incessante do bebê, a loucura do parceiro); em outros, a crueza das imagens e das ações dos personagens (desde a primeira cena, quando vemos a protagonista se masturbando) nem sempre se fecham num único sentido, mas possuem suas razões de ser, têm parâmetros para acontecerem da forma como são mostradas. Ainda não vi Cabra Cega. O triste circuito exibidor do país não deixou o longa aportar na cidade onde moro. Questão de tempo (ou não, nunca se sabe). De qualquer forma, dá para perceber claras semelhanças entre este novo trabalho de Venturi e seu projeto anterior - o que já delineia certo aspecto autoral na sua trajetória como cineasta. Tanto em Latitude Zero quanto em Cabra Cega, temos dois personagens isolados, mas inseridos num contexto externo do qual nenhum deles possui controle (no primeiro, o bar contrastando com a vastidão do planalto; no segundo, um apartamento servindo de esconderijo ao regime militar no auge da repressão). Também acompanhamos, num crescendo quase introspectivo, relacionamentos inicialmente marcados pela desconfiança, depois pelo companheirismo e por fim (aí já estou especulando em torno do filme mais recente) pelo extremismo que a situação desfavorável vai provocar, ao mesmo tempo em que gera uma tomada de consciência definitiva. Há semelhanças ainda na produção. Em ambos os filmes, Toni Venturi trabalha com Débora Duboc (sua esposa) num dos papéis principais e dirige roteiro assinado por Di Moretti inspirado em texto do escritor Fernando Bonassi. Com estes seus dois filmes de ficção, Toni Venturi é um nome a se acompanhar com extremo interesse. Assim como Beto Brant, diretor do excepcional O Invasor, Venturi é um artista jovem e ousado, experimentador e sem medo de furar a mesmice e a pretensão que reinam em grande parte do nosso cinema. Os dois fogem dos temas óbvios ou, melhor, pegam assuntos já exaustivamente abordados (a ditadura, a violência urbana) e dão-lhes novos caminhos de desenvolvimento e significados. Há vários Venturis e Brants espalhados por aí. Tudo que precisamos é ter a oportunidade de conhecê-los. P.S. - o DVD de Latitude Zero é recomendável não apenas pelo filme, indispensável, mas também pelos bons extras. O principal deles é uma longa seqüência de 17 minutos, cortada da versão final e comentada pelo próprio diretor, que mostra a chegada de um terceiro (e fundamental) personagem na trama. Como bem diz Venturi, a melhor decisão foi mesmo cortar, pois aqueles minutos dariam uma "barriga" que nada acrescentaria à complexidade do filme. Vale pela curiosidade e de aprendizado sobre como são necessárias decisões dolorosas para tornar uma obra mais artisticamente saudável. Para ir além Marcelo Miranda |
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