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Quarta-feira, 11/5/2005
A queda
Daniela Sandler

No meio de Os Últimos Dias de Hitler (Der Untergang, 2004, dirigido por Oliver Hirschbiegel), o ditador nazista e seu círculo íntimo almoçam no bunker berlinense. Ao redor da mesa, estão Eva Braun (a amante), Traudl Junge (a secretária), Joseph Goebbels (o ministro da propaganda) e sua esposa Magda. São as últimas semanas da guerra, e, sobre o almoço protegido no bunker, Berlim está em escombros, sob bombardeio constante e o rumor de tanques e tropas soviéticas já na beira da cidade. Falta comida, luz e água; as ruas são front de guerra; a violência grassa entre milícias fanáticas enforcando supostos desertores. Tudo é doença, mutilação, suicídio e fumaça. Sob as cinzas da cidade, o almoço continua: na porcelana branca dos pratos há chucrute, salsicha, batatas, verduras (para Hitler, que era vegetariano). Há esboços de risada, a tentativa de fingir otimismo ou, no mínimo, lealdade.

As falas de Hitler no almoço íntimo têm o mesmo tom formal, fanático e proclamatório de seus discursos públicos para milhares de seguidores. Nesta mesa, todos são adeptos, e escutam, reverentes. "A compaixão é para os fracos," diz Hitler, e desanda numa invectiva contra a compaixão. "É contra os instintos da natureza," justifica. Ele defende a lei do mais forte. Os fracos merecem morrer. Remete às idéias de uma raça superior, um super-homem - desenvolvido, triunfante, invencível. No filme, a seqüência alterna o discurso com imagens de ruas destruídas, gente morta ou ferida: recurso quase didático para ilustrar o abismo entre o Führer (líder) e seu povo. Não há sinal de super-homem na terra arrasada, apenas sofrimento e horror.



Compaixão e o "super-homem"

A idéia do super-homem foi roubada por ideólogos nazistas ao pensamento do filósofo Friedrich Nietzsche. Hitler e demais defensores da superioridade "ariana" (suposta "raça" dos alemães) foram auxiliados, em sua pilhagem conceitual, pela irmã de Nietzsche, notória simpatizante do nazismo. Elisabeth Förster-Nietzsche fez-se porta-voz do irmão desde que ele, por conta de doença misteriosa, perdeu a sanidade. Além de não entender o pensamento complexo de Friedrich, Elisabeth torceu seus escritos ao sabor da ideologia em voga. Na época, convenceu como autoridade sobre Nietzsche graças a estratagemas como ter publicado manuscritos inéditos do irmão como se fossem seus. Nas mãos de Elisabeth, de Hitler, e de outros escritores nazistas, a idéia do super-homem foi deturpada e simplificada, reduzida a um evolucionismo boçal e ignorante.

Nietzsche escreveu, é claro, sobre o super-homem; sobre um processo constante de auto-superação e desenvolvimento. Ele era contra a acomodação intelectual, o conforto das idéias conhecidas. Pregava o desafio de novos terrenos sem medo da adversidade, sem temor de conflitos, sem vacilo - ele próprio tendo desafiado não apenas a filosofia de seu tempo, mas seus colegas e contemporâneos. Para ele, piedade fácil era o mesmo que desprezo. Entre dois iguais, só poderia haver embate corajoso; do confronto entre adversários poderia surgir verdadeira amizade. Nietzsche falava de idéias. Seu pensamento complexo não se presta a transposições literais e rasas. Nietzsche pode ter escrito contra a piedade, mas o último gesto são de sua vida foi justamente de empatia e compaixão. Na cidade italiana de Turim, num dia de inverno rigoroso, Nietzsche viu o cocheiro de uma carruagem açoitar seu cavalo com crueldade. Nietzsche, então, abraçou o cavalo e chorou.

Hitler, por sua vez, após imergir seu país numa guerra perdida e sem saída, culpou seu povo pela derrota. Segundo o filme, baseado em livro do historiador Joachim Fest (Inside Hitler's Bunker: The Last Days of the Third Reich), Hitler teria dito que os melhores alemães já haviam mesmo perecido em batalha; os sobreviventes, incapazes de resistir ao inimigo, mereciam morrer. Capitulação ou armistício eram concessões impensáveis.

Cultura tétrica

Alguns críticos condenaram o filme por crer que Hitler, demonstrando princípios inquebrantáveis mesmo diante da derrota, estaria sendo representado como uma espécie de herói - um herói equivocado e sinistro, mas ainda assim corajoso e leal a seus valores, recusando a fuga e enfrentando seu destino trágico como um mártir. Em vez de tentar fugir, Hitler preferiu o suicídio em Berlim. No entanto, a atitude de Hitler - a crença de que, perdida a guerra, só resta a morte e a extinção - não é heróica. É, sim, condizente com a megalomania e o desprezo pela vida que permearam toda a existência do Terceiro Reich, o império nazista. Como governante, Hitler pensava em construir uma "civilização" que fosse admirada milênios após sua extinção, como o Império Romano ou a Grécia antiga. A cidade grandiosa que ele queria construir no lugar de Berlim, a ser chamada Germânia, tinha menos valia na monumentalidade acabada de seus edifícios do que nas imponentes ruínas em que se transformaria no futuro - algo como uma Acrópole grega gigante.

Muitos historiadores vêem como evidência da alienação do ditador o fato de que ele, no fim da guerra, em vez de se preocupar com questões logísticas ou estratégicas, preferia se debruçar sobre a maquete de Germânia. A cena está no filme. Parece contradição que, com bombas destroçando Berlim, ele sonhasse com os espaços descomunais de seu Arco do Triunfo ou do Grande Salão para 170.000 pessoas. Mas não havia contradição. No filme, Hitler festeja os bombardeios, que adiantariam o trabalho de demolição para preparar o terreno para Germânia. Mais do que terrapleno, os bombardeios sugerem o papel central da destruição na ideologia nazista. Se Germânia teria mais valor como ruína do que como cidade construída, se a importância do Terceiro Reich estava mais em sua glória póstuma do que no bem-estar de seus cidadãos, então o nazismo consistia mesmo, como sugere Peter Cohen em seu documentário homônimo, numa Arquitetura da Destruição (Undergångens arkitektur, 1989).

Não à toa o Holocausto e a "guerra total" (com a política de aniquilar completamente o inimigo em vez de apenas anexar ou dominar) eram centrais ao nazismo. O movimento nasceu na violência ilegal e gratuita de milícias e gangues que, vestidas de preto e marrom escuro, portavam imagens de crânios como insígnia. Rituais centrais ao nazismo envolviam a queima de livros e a destruição de obras de arte consideradas "degeneradas". A face macabra coexistia com visões supostamente idílicas: as crianças louras, sorridentes e saudáveis da Juventude Hitlerista; a arquitetura tradicional e romântica de suas novas cidades e escolas, com telhados pontiagudos, vigas de madeira e estoco branco como na Alemanha medieval. Ou as esculturas musculosas de Arno Breker, os atletas olímpicos retratados pela cineasta Leni Riefenstahl, e os milhares de jovens reunidos nas performances de ginástica coletiva que integravam as cerimônias públicas do partido nazista. Todas essas instâncias indicam aparente celebração da vida. Mas o que se celebra é uma versão idealizada, mítica e exagerada da "vida" - uma vida, como os próprios nazistas concordariam, sobre-humana.

Anulação individual

Era parte assumida da ideologia que a existência individual - a psique, as particularidades físicas, os sofrimentos ou desejos, a história e os afetos pessoais - não tinha importância. O indivíduo só valia como parte de uma entidade maior: o povo, a nação. Daí que a idéia de sacrifício individual era aceita: morrer pela pátria porque a própria vida, de outro modo, não contava. O indivíduo perdia-se na nação coletiva assim como as pessoas se dissolviam nas multidões das demonstrações nazistas. A monumentalidade da arquitetura que servia de palco para essas demonstrações, em Nurembergue, fôra concebida pelo arquiteto Albert Speer para reforçar a sensação de anulação pessoal. Da mesma forma, a chancelaria que sediava o governo de Hitler em Berlim tinha uma enorme galeria pela qual visitantes estrangeiros tinham de passar até chegar ao ditador. A galeria era propositalmente longa e desproporcionalmente grande para "cansar" e "diminuir" o visitante, que se sentiria esmagado pelo poder e imponência do Reich alemão antes mesmo de chegar ao líder.

A anulação do sentido de personalidade favorecia o dogmatismo cego com que os alemães se entregaram à doutrinação nazista. O idílio pastoral do nazismo era inseparável da aniquilação - pessoal ou alheia. Perto do final de Os Últimos Dias de Hitler, uma enfermeira se desespera em lágrimas diante de Hitler, pedindo que ele diga algo para encorajá-la a acreditar que a vitória ainda seria possível. Em vez de crer na realidade que a cerca - mortos, feridos graves, doentes, soldados arrebentando os miolos ou se embebedando - ela quer se inebriar com um discurso do Führer. O filme foi criticado por mostrar, em cenas como essa, os alemães como vítimas inocentes, ludibriados e traídos por um líder alucinado. A enfermeira, no entanto, aparece menos como vítima e mais como alguém que escolhe, voluntariamente, o auto-engano. Assim como seus compatriotas, que decidiram se engajar na guerra genocida e no fervor totalitário, ela se mostra responsável pela própria atitude escapista.

Jovens seguidores

Essa visão é endossada pela voz de Traudl Junge, a secretária de Hitler, cujo depoimento, gravado pouco antes de sua morte, emoldura o filme (a entrevista integra o excelente documentário A Secretária de Hitler, de 2002). Ela conta que, após a guerra, tentou perdoar a si mesma por ter participado do regime hitlerista, desculpando-se pela pouca idade, pouca experiência, ingenuidade. Como outras pessoas, foi anistiada por ter sido uma "jovem seguidora", ou seja, suscetível a manipulação. Como outros, disse não ter tido conhecimento do lado macabro do nazismo - os campos de concentração e extermínio, a violência e a crueldade da perseguição racial e da guerra. Mas um dia, conta Junge, ela se deparou com uma placa memorializando Sophie Scholl. Sophie foi assassinada pelo regime nazista em 1943, aos 22 anos, por ter integrado o grupo de oposição Rosa Branca. Tinha a mesma idade de Traudl quando ela foi contratada por Hitler. "Naquele momento," disse Traudl, "eu me dei conta de que ser jovem não era desculpa, e que teria sido possível descobrir o que de fato acontecia." Essa declaração fecha o filme. Dissipa, por um lado, a caracterização dos alemães como vítimas históricas. Por outro lado, sugere a ambigüidade da ética e da consciência pessoais. Como Traudl, muitos alemães que se consideravam pessoas decentes inventaram desculpas e se entregaram a cegueiras seletivas para justificar seus atos. A desculpa-clichê era sempre, "Estava apenas cumprindo ordens" ou "tinha de seguir a lei", como se a culpa fosse exclusivamente de Hitler. Essas desculpas escondem os muitos motivos para o apoio generalizado ao regime nazista e a cumplicidade mais ou menos direta da população - motivos que incluem fanatismo, histeria coletiva, oportunismo, senso de sobrevivência e preguiça moral. E, talvez principalmente, a agressividade e violência que as "pessoas comuns" compartilhavam com os medalhões nazistas.



Ódio ordinário

O anti-semitismo, afinal, não era exclusivo ao nacional-socialismo. Estava presente na Alemanha e na Europa desde a Idade Média, alimentado pelo fervor católico da Inquisição. A perseguição era institucionalizada em leis de discriminação que perduraram até o século dezenove, e manifesta em ações criminosas como os pogroms (massacres) do leste europeu. Na virada para o século vinte, esses ódios arcaicos ganharam a roupa nova do positivismo, em tratados supostamente científicos sobre raças ou explicações sobre a origem dos males econômicos. A aparente racionalidade parecia justificar o preconceito e o uso dos judeus como bode expiatório. Essa atitude alimentava ódios não só contra judeus, mas também contra poloneses, ciganos, homossexuais, negros, deficientes, etc. A despeito da capa de coerência científica, o impulso por trás desses ódios não tinha nada de racional.

Como pôde uma sociedade inteira participar na segregação gradual e visível de um grupo que a integrava? O erro seria crer que a irracionalidade, a capacidade para a crueldade e a violência são inumanas e excepcionais. Ao contrário, são características tão humanas quanto a capacidade para o progresso. E não são necessariamente um sinal de nosso "lado animal". Ainda não se documentaram casos de crueldade gratuita entre animais - a não ser entre macacos, uma das espécies mais próximas do homem, que mostram grau avançado de organização social e comunicação (sinais de "progresso").

Se acreditarmos que o horror do nazismo foi extraordinário, um ato de seres inumanos e excepcionais, estaremos vulneráveis a novas ocorrências, porque cegos para nosso próprio potencial destrutivo. Muitas das críticas a Os Últimos Dias de Hitler condenam a suposta humanização do ditador. Em vez de mostrar um monstro salivando maldade, o filme revela um homem contraditório, alquebrado, com momentos de delírio ensandecido e rompantes de ternura e sensibilidade. Sem reconhecer esse lado do ditador, é impossível compreender seu apelo e popularidade. Hitler era carismático, idolatrado; segundo Traudl Junge, causava impressão de galã entre as mulheres. Em demonstrações públicas, punha criancinhas no colo. O produtor e roteirista Bernd Eichinger declarou ter sido sua intenção humanizar Hitler. Ver o lado humano de Hitler é a contrapartida de reconhecer o lado "monstruoso" de todo homem. O nazismo pode ter sido associado ao mal absoluto, mas não detém exclusividade do horror. Basta pensar na tortura em Abu Ghraib, em Guantanamo Bay, ou - mais perto de casa - nas ditaduras latino-americanas de duas décadas atrás. Basta pensar nas atrocidades da guerra dos Bálcãs, do Vietnã, da Chechênia; no terrorismo inescrupuloso e sangrento; nas mortes gratuitas e fáceis em assaltos ou brigas de gangue.


Eva Braun (Juliane Köhler), Adolf Hitler (Bruno Ganz) e Albert Speer (Heino Ferch)

O perigo dos "bons nazistas"

O filme constrói esse emaranhado moral de modo convincente. Nuança, também, os membros do regime nazista, divididos entre loucos irredutíveis como Goebbels, e homens aparentemente sensatos como os médicos Ernst Günter-Schenck e Werner Haase. Mas é nessas nuances que o filme peca. Como praticamente todos os personagens são nazistas, é inevitável que haja uma divisão dramática (comum à maioria dos filmes de ficção) entre mocinhos e bandidos. Ainda que sutil ou até mesmo inadvertida, essa divisão transparece no roteiro, nos diálogos, na caracterização física. Günter-Schenck, representado por Christian Berkel, tem o rosto plácido e belo, grandes olhos azuis, porte altivo. O arquiteto Albert Speer (Heino Ferch), que era também ministro de armamentos, tem o garbo clássico de atores de Hollywood dos anos 40. Ambos aparecem em atos éticos, responsáveis, mostrando independência de pensamento e coragem. Günter-Schenck faz discursos defendendo a vida e arrisca a pele para salvar seus concidadãos; Speer confessa a Hitler ter desobedecido ordens de destruição exagerada. O filme claramente elogia os "bons nazistas", sem problematizar sua cumplicidade no regime criminoso ou os motivos que levaram esses homens a aderir à ideologia.

Essa talvez seja uma fraqueza inevitável em uma obra que pretende, pela primeira vez, contar a história dos alemães sob o ponto de vista alemão, fazendo as pazes com um passado atormentado - em oposição a representações demonizadoras feitas por estrangeiros. Na verdade, Hirschbiegel não é o primeiro cineasta alemão a lidar com o tema. O controverso diretor Hans-Jürgen Syberberg filmou Hitler, um Filme Alemão em 1978. Sua perspectiva era muito mais autocrítica e impiedosa.

No escuro

O valor do filme de Hirschbiegel está em parte na reconstituição admirável dos últimos dias da guerra e do bunker em Berlim. É um retrato impressionante de uma situação de desespero e destruição extremos. Mais que isso, o filme é uma revelação lancinante do lugar complicado que a história nazista ainda ocupa na Alemanha. Agora, na Alemanha unificada em que a história parece ter retomado seu curso normal após o fim da divisão - que era parte da "punição" pela guerra perdida -, ganha força uma visão pública que redime o povo alemão como vítima e não apenas perdoa, como valoriza os "bons nazistas". Essa postura é visível não só no filme, como na popularidade dos oficiais nazistas, como Claus von Stauffenberg, que tentaram assassinar Hitler em 1944, celebrados em documentários, cerimônias, museus e publicações.

Além disso, o filme faz pouco para iluminar a personalidade de Hitler ou o sucesso do nazismo entre os alemães. O espectador deixa o cinema tão perplexo quanto Traudl Junge e Eva Braun, que discutem o enigma insolúvel de Hitler: um homem capaz de ternura e generosidade tanto quanto de crueldade extrema. Talvez esse tipo de compreensão lúcida, presente no pensamento de gente como Hannah Arendt e Theodor Adorno, seja impossível para um alemão tentando acertar as contas com seu passado sem se consumir em crítica autodestrutiva, sem cometer "suicídio" do próprio nacionalismo. Sessenta anos depois do fim da guerra, encerrada com a rendição alemã em 8 de maio, esse ainda é o legado de Hitler.

Perto de casa

A propósito... Deu no UOL de 11 de maio: "A OIT (Organização Internacional do Trabalho) divulgou nesta quarta-feira (11/05) o relatório 'Uma Aliança Global contra o Trabalho Escravo' onde afirma existir 1,3 milhão de pessoas trabalhando em regime escravo na América Latina e Caribe. No Brasil, haveria cerca de 25 mil pessoas sujeitas a essas condições, principalmente no Pará e em Mato Grosso." Em 13 de maio, como todos sabemos, comemora-se a abolição da escravatura no Brasil, proclamada em 1888.

Daniela Sandler
Riverside, 11/5/2005

 

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