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Quarta-feira, 1/6/2005 Senhor, perdoai a nossa pressa Ana Elisa Ribeiro Certa vez uma amiga (muito querida) me apareceu com um livreto mal-acabado, com cara e jeito de missal antigo, e disse que aquilo era produto da ironia de um poeta itabirano. Como Drummond não tinha essas manias, resolvi ficar curiosa e levei o "missal" de araque para casa. Lastimavelmente, não me lembro do nome do poeta, mas tenho suas frases anotadas pelos cantos do meu escritório até hoje. Itabira, interior de Minas Gerais, ficou conhecida pelo cheiro de minério e pelos poemas de Drummond, que cascou fora da cidade e zarpou para o Rio de Janeiro, ser secretário, importante, escritor, alguma coisa mais do que virar o lunático poeta da cidade. Depois que ficou famoso, virou rua, casarão, estátua. E qualquer guardanapo de boteco em que ele tenha deixado uma garatuja virou peça caríssima de museu. Mas Itabira tem outros poetas. E tem também professores, editores, joalheiros. Todo itabirano reconhece um conterrâneo e até lhe sabe a genealogia. No final, todo itabirano é primo. E eles se reproduzem em proporção geométrica, porque a minha amiga vê mais itabiranos em Belo Horizonte do que belo-horizontinos. O poeta de cujo nome me esqueci escreveu poemas marginais e produziu com eles um livrinho com cara de missal. Isso foi coerente porque a maior parte dos textos faz alguma referência sacana aos textos da Igreja ou às frases da Bíblia. E um poemeto que me ficou na cabeça foi esse aí, que dá título a esta crônica: "Senhor, perdoai a nossa pressa". Há algumas semanas, lembro-me de haver lido neste site um texto do gaúcho Fabrício Carpinejar em que ele falava, com certo nojo, das pessoas que não assinam as histórias de suas próprias vidas. E como aquele texto me demoliu! Passei dias e dias tentando não me melindrar com aquelas palavras do poeta e, por fim, sucumbi à idéia de que talvez eu esteja deixando a autoria dos meus passos para outros. E então resolvi me corrigir antes que fosse tarde. E como se faz isso? Decidindo. E como decidir? Ouvindo o coração. E como ouvir apenas o coração? Ainda não sei. Carpinejar falou das relações amorosas e dos casamentos. E enquanto eu lia, assobiava e chupava cana, me dei conta de que o que é mais importante vai ficando para trás. Atualmente, mandam em mim, no meu tempo e nas minhas prioridades nada mais nada menos do que 4 diretores, 6 coordenadores e alguns colegas de trabalho. Também definem minha agenda quase 400 alunos e todas as probabilidades do semestre que vem. Desses 4 diretores, dois estão em contato direto comigo e sempre me fazem lembrar de horários e atividades extras. Dos 6 coordenadores, 1 tem 2 reuniões semanais comigo, 1 me encontra pelos corredores e sempre tem um recado a dar e 1 conversa comigo ao menos uma vez ao dia por telefone, sem contar os e-mails em série. Todas essas pessoas têm o espaço da minha vida que meu marido pleiteia desde que se uniu a mim e que meu filho jamais teve desde que nasceu. E eu me pergunto: O que está deslocado do centro de gravidade deste sistema? Quem assina a autoria da minha vida? Por que estou endossando essas assinaturas? Das 24 horas que um dia costuma ter, passo 16 fora de casa e 5 dormindo e sonhando com formulários e aulas. Sobraram 4 horas? Sim, ao menos 2 delas eu passo dentro do carro, no trânsito, ouvindo músicas de que gosto. As outras 2 horas se distribuem, necessariamente, em fragmentados momentos de almoço, conversa telefônica, idas ao banheiro e alguma troca de palavras com meu filho e meu marido. E se não fosse o fone de ouvido para falar no celular enquanto dirijo (eu sei que é proibido!), eu gastaria mais tempo resolvendo perrengues por telefone. Isso tudo para que minha conta bancária cresça morbidamente pouco a cada mês, para que eu dê conta das manutenções e dos débitos e para que eu consiga pagar impostos no início do ano. Enquanto isso, algumas pessoas fazem jardinagem, vão à academia de ginástica esculpir os quadríceps ou fazem aulas de canto lírico. Algumas mulheres se arvoram a ter 2 ou 3 filhos e os homens têm hora marcada para a "pelada" da semana. E eu penso: como conseguem? Não têm remorso? Não se sentem "perdendo tempo"? Mas aí eu me lembro do Fabrício Carpinejar e também dos poetas do Carpe Diem e dos poemas do Fernando Pessoa. E então eu me lembro do poeta itabirano que pedia perdão a Deus pela pressa obsessiva e neurótica. E eu peço perdão de joelhos pelas horas que meu filho passou na minha ausência, enquanto eu dava aulas quase indomáveis para os filhos dos outros. Também peço perdão ao marido que se casou com uma esposa de intervalos. E espero a cura desta doença da pressa, que, afinal, não deve ter sentido algum, a não ser o de transformar em fragmento o que deveria ser a razão do meu universo. Conto Janine Hospeda Cães e Gatos Durante as Férias. Janine cuida do gato que apanhei na rua. Quando meu pai foi embora e disse a minha mãe que se fodesse sozinha, eu tomava café e me divertia com umas bolachas coloridas. Ele saiu sem bater a porta e isso não se parecia com as cenas que eu via em filmes sobre abandono. E então eu percebi em mim uma jura lastimosa. Jamais deixei minha mãe dormir sozinha e não lhe permiti lágrimas próximas umas das outras. Não me casei, mal me enamorei de umas meninas, não abandonei ninguém e não suportei histórias como a minha. Quando vi Jaguar na rua, pensei que embora fosse gato e pudesse viver livre, talvez sentisse falta de um ambiente aconchegante onde dormir e comer. Adotei meu gato numa tarde quente e dei a ele o leite das histórias de ficção. Jaguar comia carne e era forte, apesar da aparência frágil. E não se parecia com minha mãe, que ameaçava chorar passados mais de dez anos da saída de meu pai, tão sem glamour, pela porta da frente. Jaguar ficou sendo nosso menino de estimação e dávamos a ele o tratamento que os humanos não se dispensam, mesmo no amor declarado. Jaguar tinha liberdade e também saía pela porta da frente, quando desejava a rua, mas voltava pelas janelas, pelos basculantes, pela mesma porta, pelo serviço, sempre que tinha o desejo de retornar. E nossos sorrisos não eram poupados quando ele miava com sono e fome. Jaguar remoçou minha mãe, quase perdida, e apagou meu pai da memória da casa, aos poucos, como os felinos costumam amar. Mas minha mãe morreu de velha, aos 93 anos, deitada no sofá. E foi Jaguar quem me deu a notícia, miando chorado, como uma carpideira consciente e sentida. Respondi à morte dela como ao abandono de meu pai, com sensação de oco e ar de improviso. Resolvi viajar. Comprei uns tíquetes que me levavam, por terra, a São Luís, e aprontei duas malas com camisetas, bermudas e uns livros de receitas. Deixei a Bíblia de capa dura encostada aos catálogos e queimei os jornais velhos na despensa. Retirei as lâmpadas e guardei numa gaveta perdida, dessas que a gente não pode mais encontrar quando volta. Se eu retornasse, queria iluminar tudo com luzes novas. Desmontei o armário da cozinha e não removi o lodo do box de acrílico. Dispensei os perfumes velhos na privada e saí sem trancar a porta, para dar à casa chances de que algo lhe ocorresse. Mas não abandonei Jaguar. Entreguei meu gato a Janine, a menina que cuidava de animais enquanto as famílias viajavam de férias. E Janine me atendeu com sorriso de aeromoça. Disse a ela que não sabia quando ia voltar, mas que acertaria tudo na volta. Deixei o endereço onde me hospedaria em São Luís. Janine me manda cartas de vez em quando. Me conta dos incidentes da vida cotidiana, dos estudos, dos desejos e às vezes fala de Jaguar, que se sentiu abandonado quando parti, pulou do telhado e não tinha sete vidas. Nota do Editor Leia também a entrevista de Ana Elisa Ribeiro, concedida a Marcelino Freire, na revista "Idiossincrasia" do Portal Literal. Ana Elisa Ribeiro |
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