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Quarta-feira, 8/6/2005
E depois, perder-se também é caminho
Daniela Sandler

Há pessoas que seguem uma trajetória linear. Escolhem um caminho e persistem. Decidem uma carreira, uma atividade, um lugar para morar, um modo de vida, um plano para o futuro, ou uma relação pessoal. E seguem. Fazem progresso, se aperfeiçoam, constróem, conquistam. Claro, há percalços. Há bifurcações no caminho, buracos inesperados, acidentes, mudanças de rumo. Há também golpes de sorte, atalhos. Mas, mais que tudo, há a recompensa da constância. Em inglês diz-se "practice makes perfect" - quer dizer, a prática leva à perfeição. Pense numa ocupação ou hobby: arquiteto, administrador, jogador de xadrez, mecânico de carros, presidente do clube de bocha, padeiro, mergulhador, pára-quedista, marceneiro, banqueiro, bancário. Quanto mais se faz, mais se aprende; a experiência esculpe o talento, aprimora a vocação. Com o tempo acumula-se não só o saber, como também a rede de contatos. E faz-se a própria reputação. Não só com trabalho. É a mesma coisa com morar no mesmo lugar por muito tempo, ou cultivar o mesmo círculo de amigos.

Eu sempre invejei essas pessoas. Aliás, eu sempre achei que essa era a única opção. Subir a montanha, gradualmente, com uns tombos no meio - mas subir de todo modo, e sempre e só a mesma montanha, para um dia chegar ao cume. A vida era essa linha. Então eu sempre achei que o meu problema era ainda não ter encontrado minha montanha. Estive sempre esperando o momento de eu, também, começar a minha escalada. A minha trajetória linear. Era só questão de tempo e de circunstâncias. Ou melhor, o problema não estava no mundo externo: estava em mim. Eu tinha de amadurecer. Tinha de me conhecer melhor, saber o que queria; e também me conformar de que eu só podia querer uma coisa (no máximo, duas ou três). Então, mais que tudo, era questão de eu "me encontrar" para depois poder achar a minha trilha.

O tempo passou e eis que eu me encontro aqui, com 31 anos, sem que o tal grande momento tenha chegado. Se não chegou até agora, não sei não, acho que não chega mais. Que cilada! Senão, veja você: comecei estudando arquitetura, embora sonhasse ser cineasta e tivesse uma queda por medicina. Na universidade, em vez de fazer o estágio natural em escritórios de projeto, fui fazer pesquisa acadêmica. Não que eu não gostasse das matérias de projeto arquitetônico. Mas até nisso eu era diferente. Ao meu redor os outros alunos levavam o semestre num crescendo, começando com um rascunho vago, evoluindo para um projeto mais definido que o orientador ajudava, gradualmente, a aperfeiçoar. No fim do semestre, tinham plantas e perspectivas detalhadas para edifícios elaborados. Mas eu não conseguia. Tinha uns repentes em que esboçava tudo de uma vez, imaginando de cara até onde iria a mesinha lateral na sala do almoxarifado. Mostrava ao orientador. E aí, no encontro seguinte, eu mudava tudo. Tinha outra idéia. Tinha sempre outras idéias. Tinha autocrítica demais. Ou tinha, talvez, simplesmente esgotado a primeira idéia. Talvez a primeira idéia fosse o exercício necessário para que a segunda idéia - completamente diversa - brotasse. O orientador se encafifava. "Mas o seu projeto estava bom, por que mudar tudo?" Mas e este, não é bom também? E em geral era, sim. Então, por que não mudar?

Essa poderia ser a minha coda, me seguindo por todo lado a cada mudança de rumo: por que não mudar? Virei arquiteta, trabalhei para urbanista, virei jornalista, voltei à universidade. Vim fazer doutorado. Morei na gélida Rochester, no nordeste norte-americano; vivi em Berlim por quase um ano; estou na Califórnia ensolarada; de malas prontas para a Pensilvânia. A maioria dos meus amigos casou, alguns já tiveram filhos, alguns já se divorciaram. Eu tive muitos namorados. Fiz balé por sete anos: mais um e eu teria virado bailarina clássica. Mas parei porque quis ser atriz. Na época, odiava nadar. Uns anos depois, estava nadando quatro vezes por semana e treinando para participar de competição de Masters. Por motivos externos, tive de parar. Como vocês vêem, nem sempre a mudança é voluntária. Meu emprego atual é numa editora de livros de arte. O emprego que vou começar em três meses é como professora universitária. Se você leu minha coluna anterior, sabe que comecei três blogs diferentes e não continuei nenhum. Até minhas colunas do Digestivo serpenteiam: no princípio eu escrevia sobre cinema, também sobre comida; depois veio uma fase política; então veio o tempo das cidades, São Paulo, Berlim, Riverside, Los Angeles; ultimamente eu tenho sido pessoal.

Enquanto esperamos

Como ia dizendo, aqui me encontro, com 31 anos, e nada mudou. Não sou uma pessoa linear. A cada novo lugar tenho de novo o trabalho de construir do zero as relações pessoais. Não tenho anos de carreira. Minha agenda de negócios não tem dúzias ou centenas de telefones e e-mails de contatos profissionais. Aliás, não tenho agenda de negócios nem cartão de visita. Conheço gente que também mudou de rumo. Mudar de rumo não é novidade. Mas bifurcações, como eu disse no primeiro parágrafo, também fazem parte do caminho linear. Pode-se mudar de profissão e, na segunda profissão, ainda que totalmente outra, novamente seguir a linha ascendente. Eu não me sinto assim. Eu me sinto ao mesmo tempo sempre começando e terminando. Sempre me despedindo de algo que parece ter durado pouco demais, e principiando outra coisa em que tudo é novidade. Como se sempre, sempre, eu estivesse simultaneamente no início e no fim de ciclos. Com a exceção, claro, dos momentos em que estou no meio dos ciclos. Mas são ciclos, mesmo assim.

Foi aí que me deu um estalo. Aqui me encontro, nesta cilada. Aqui me encontro. Aqui "me encontro". Não era mesmo aquela coisa meio paulo-coelha de que eu tinha de "me encontrar"? Pois eu me encontrei! Não no sentido de uma revelação transcendental de um eu escondido, não no sentido de finalmente descobrir qual é o meu desejo profundo, a minha vocação recalcada, chame lá como quiser, a minha missão, a minha montanha, a minha verdadeira profissão. Não. O que eu encontrei estava lá o tempo todo, claro, na superfície, só que eu não sabia olhar porque afinal eu não gostava do que via, queria que fosse diferente. O que encontro, em mim, é isso: eu não sou uma pessoa linear. Eu sou uma pessoa de ciclos. E aposto que não estou sozinha.

O que há, afinal, de errado em ser uma pessoa cíclica? Não fui nem eu quem inventou essa história de ciclo. Para começo de conversa, está na natureza. As rotações da Terra. As estações do ano. As fases da lua. As fases da vida. Um ciclo se fecha, o outro começa. Sem morte não há renovação. Mora na filosofia. Friedrich Nietzsche escreveu sobre o "eterno retorno": a existência não seria uma progressão linear e ascendente. Seria uma sucessão cíclica, o eterno retorno - do mesmo. (Pense na rotação terrestre, nas estações.) Mas esse "mesmo", ainda que retorne ao ponto de origem, não é nunca exatamente mais o mesmo; nem a origem permanece. O pensamento nômade de Nietzsche não se fixa em ponto algum. Durante o ciclo, algo se transforma. Pense de novo nas estações. Sempre volta o verão. O mundo é ao mesmo tempo o mesmo, mas renovado; e outro, mas similar ao anterior. Ou vice-versa. Pois um ciclo não significa necessariamente dar voltas no mesmo lugar como uma roda-gigante, ou, pior, girar em falso como pneu atolado. O ciclo é uma espiral. Dá voltas e volta, assim, à origem, mas nunca no mesmo lugar. Para Nietzsche, a existência não é definida em termos de um "ser" estático, mas em termos de um "vir a ser". Tudo está sempre no processo de vir a ser, de se tornar, em constante movimento.

As estações da cruz

Nietzsche não foi único a falar de ciclos. Ele, aliás, era muito interessado em filosofia e religião orientais, como o budismo. Muitas dessas idéias que Nietzsche introduziu com tanto impacto na filosofia ocidental estão presentes em algumas correntes budistas. O "vir a ser", ou "devir", corresponde à noção da ausência de essências permanentes (um eu ou uma alma imutáveis), já que tudo está em constante mutação. A reencarnação em diferentes ciclos de vida sugere o eterno retorno do mesmo e o movimento em espiral, já que cada encarnação é sempre distinta e o movimento é ascendente (atingindo níveis mais elevados de existência a cada ciclo). Essa visão é oposta à perspectiva judaico-cristã, em que cada um de nós tem apenas uma chance para nossa passagem pelo mundo, depois da qual nossa alma segue o caminho conseqüente à nossa trajetória terrena: céu ou inferno. A visão linear também está na tradição filosófica de Hegel, que é teleológica: ou seja, o homem estaria em progresso constante em direção ao objetivo último - o aprimoramento do espírito. Karl Marx colocou a teleologia em termos sócio-econômicos: a luta de classes inevitavelmente iria desembocar no estágio mais evoluído e final, o comunismo.

Essas duas visões opostas - a teleológica e a cíclica - têm algo em comum. Em ambas, há um processo de aperfeiçoamento. Para Nietzsche, seria o "super-homem", um estágio de existência mais avançado. Afinal, o "vir a ser" não se esgota em movimento gratuito, ou mudança ao acaso. O sentido está sempre em se superar: não se acomodar, estar em constante desafio. Qual a diferença, então, em relação à teleologia hegeliana ou cristã? A diferença é que a teleologia assume uma trajetória linear, ainda que com contradições ou conflitos. Sim, é uma trajetória dialética, com embate entre forças opostas; mas o destino final é sempre o mesmo, e os obstáculos dialéticos são apenas o motor de propulsão para adiante. A trajetória linear assume também uma essência constante que percorre o caminho - aprimorada, mas basicamente a mesma. O espírito é essencialmente bom ou mau; a classe sócio-econômica, idem. Para Nietzsche, o fluxo é constante; o bom pode não só vir a ser mau, como ao mesmo tempo ser um e outro sem que esteja destinado a nenhum dos dois. Não à toa, Nietzsche - que era também conhecedor profundo da teologia cristã - chamou um de seus textos de "Para além do bem e do mal."

Quando partimos

Pois aí está: ser cíclico não é o mesmo que girar em falso. Eu ia recontando minha própria história (muitos de vocês hão de sentir o mesmo, ou conhecer alguém assim). Eu ia dizendo, nos parágrafos acima, de todas as coisas que comecei e terminei abruptamente, precocemente, o que, para muita gente, significa não ter terminado. Mas agora queria contar de todas as coisas que, no processo, retornaram, melhoradas; de como, com tanta mudança e tumulto, no fim, algo de mim permaneceu. Pois aqui estou, onze anos depois de ter iniciado o meu primeiro trabalho de iniciação científica, com um emprego de professora universitária para dar aula sobre os assuntos que mais me interessam. Depois de treze anos do meu ingresso na faculdade de arquitetura e urbanismo, continuo lidando exatamente com isso: prédios e cidades. É isso que pesquiso, é sobre isso que escrevo. Fui parar em Berlim, tão longe de São Paulo, para estudar justamente o tema que me fascina desde que me entendo por gente: história e memória. Desde sempre escrevi. Continuo escrevendo. O meio mudou: composição escolar, diário, esboço literário, trabalho da faculdade, Folha de São Paulo, doutorado, Digestivo Cultural. Mas escrevo. E quem comparar meu primeiro texto do Digestivo com os mais recentes há de concordar que eu melhorei.

Mas esta coluna não é para provar as virtudes de ser cíclica. Aliás, não quero provar as virtudes de nada. Não tenho nada contra as trajetórias lineares ou as teleologias. Nem acho que sejam opostos, esses caminhos retos aos caminhos em espiral: coexistem, se interceptam, e há um pouco de nós todos em cada uma dessas possibilidades. E tantas outras possibilidades que aqui não descrevi. Mas eu vou, sim, é dar mais uma volta com este texto, chegando num outro assunto ainda. Ou talvez seja o mesmo. Eis aqui onde queria chegar.

Este texto é o fim de um ciclo. É o fim de minha segunda passagem pelo Digestivo. Na minha primeira temporada, parei por exaustão criativa, em 2002. Não sabia mais sobre o que escrever, sentia que já havia dito tudo o que queria naquele momento. Estava de partida para uma viagem de dois meses, começando meu projeto de pesquisa sobre Berlim, me enfurnando numa nova língua, num novo país. Nem coluna de despedida eu escrevi. Quando voltei, em 2004, eu me surpreendi com o tanto que tinha de novo para escrever, eu, que tinha me achado exaurida. Continuo tendo um montão pra dizer. Tenho uns temas de coluna engavetados faz tempo que não couberam desta vez. Minha voz anda solta e fácil, as colunas pulsam na minha goela querendo sair. Mas tenho de parar, assim, justo quando tudo vai tão fluente. Tenho seis meses para terminar meu doutorado. Em três meses, começo meu novo emprego, em período integral. Não há tempo de fazer tudo.

Vou sentir falta de vocês, ainda que sejam, na maior parte, tão silenciosos. Vou sentir falta de ser colega dos demais colunistas, ainda que eu possa sempre acompanhá-los como leitora. Vou sentir falta da edição, do apoio, da atenção e do trabalho do Julio, mesmo sabendo que continuamos amigos. Terei saudades de escrever colunas. De esperar comentários. Espero também deixar saudades. Vocês sempre podem ler minhas colunas antigas, claro. Talvez até me encontrem num blog, que criei para o caso de eu ter muita comichão de escrever. Só não prometo constância. Ah, e antes do ponto final: eu dedico esta coluna a umas outras pessoas de ciclos que eu conheço, entre as quais há cinema fotografia literatura jornalismo mestrado revista bumba-meu-boi história avião internet jornadas no mundo e, tantas vezes, aquele sentimento de estar começando tudo de novo. Olha só quanta História vocês já fizeram.

Nota

A frase que dá título a esta coluna é de Clarice Lispector

Daniela Sandler
Riverside, 8/6/2005

 

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