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Quinta-feira, 16/6/2005 Traficante, sim. Bandido, não. Adriana Baggio Dia desses, a MTV apresentou ao mercado publicitário os resultados de uma pesquisa que realiza periodicamente com jovens de várias cidades brasileiras. As revelações do 3º Dossiê Universo Jovem MTV foram, ao mesmo tempo, esclarecedoras e preocupantes. À medida em que o filme mostrava entrevistas e dados estatísticos, o público ia perdendo o foco na publicidade e pensava nos filhos em casa e no mundo que os espera: experiências sexuais cada vez mais precoces, vaidade exacerbada, superficialidade, individualismo e um acesso extremamente fácil às drogas. Tão fácil que um entrevistado não sabia dizer se é proibido ou não fumar maconha, enquanto outra não conseguia ver como traficante o amigo que vive da venda de drogas. Será que é por que traficante é só aquele favelado malvado, com arma na mão? João Guilherme Estrella foi um desses traficantes com jeito de mocinho. Um cara simpático, carismático, cheio de amigos. Burguês da zona sul do Rio, estudou nos melhores colégios, freqüentou os melhores clubes e festas e teve tudo que um menino da sua idade poderia querer. Foi um típico representante da "geração perdida" dos anos 80. Além de uma família carinhosa e de uma estrutura material confortável, João Guilherme pôde contar com a educação de um pai que acreditava em permitir uma liberdade total e irrestrita aos filhos como forma de prepará-los para o mundo. Talvez tenha sido esse aspecto - falta de limites - um dos que levaram o jovem a experimentar drogas aos 14 anos e chegar a ser considerado "barão do tráfico" no Rio de Janeiro. O início de João Guilherme na carreira foi meio por acaso. Certa vez, os companheiros do "rachid" deram pra trás e ele ficou com toda a despesa dos papelotes que haviam encomendado ao traficante na sexta-feira. Sem grana para bancar tudo na hora, prometeu ao fornecedor acertar as contas na segunda. Não foi difícil encontrar clientes para o excesso que caíra em suas mãos. No início da semana, pagou o que devia e o traficante percebeu que ele tinha jeito para a coisa. Tudo isso está no livro do jornalista Guilherme Fiuza, Meu nome não é Johnny - a viagem real de um filho da burguesia à elite do tráfico (Record, 2004). Primo de João Guilherme, Fiuza ouviu sua história desde a infância até a saída do manicômio em que ficou preso; entrevistou a polícia, o poder judiciário, outros traficantes; também conversou com colegas que João Guilherme conheceu na cadeia e no manicômio. Com uma boa história na mão e talento para contá-la, Guilherme Fiuza lançou um livro com todos os ingredientes de um best-seller: suspense, emoção, ritmo e fatos reais. A vida de um traficante também é cheia desses elementos. O livro conta os primeiros passos de João Guilherme no tráfico, o desenvolvimento de sistemas e processos para poder atender e distribuir um crescente número de clientes e quantidade de droga, a conexão com o tráfico internacional, a prisão e os anos de cadeia e manicômio e, finalmente, a redenção. A legislação faz uma importante distinção entre o usuário de drogas e o traficante. Mesmo o traficante pode ter sua pena atenuada se for comprovado que, por conta do consumo de drogas, ele age sem saber o que está fazendo. João Guilherme acabou sendo enquadrado nessa última categoria, o que foi parte justo e parte sorte. Ele traficava internacionalmente (foi preso com 15 quilos de cocaína!!!), usava métodos elaborados para enviar a droga ao exterior (embutida em forros de casacos) e confessou que gostava do poder e do prazer que o tráfico proporcionava. Não parecem ser atitudes de alguém que não sabe o que faz... Por outro lado, Estrella nunca foi violento e nem assumiu a postura de outros chefões do tráfico, que andam armados, têm capangas e acumulam um patrimônio com o dinheiro obtido. Como João Guilherme torrava tudo em festas, viagens e mais drogas, pôde ser enquadrado na categoria de viciado e mentalmente incapacitado. Além disso, teve a sorte de contar com um bom advogado e a sensatez de uma juíza que acreditava que a recuperação de dependentes químicos passa longe dos presídios. O carismático filho de boa família foi condenado a quatro anos de prisão, convertidos em dois anos de internamento em um manicômio. Mesmo misturado a esquizofrênicos e psicopatas perigosos, João Guilherme teve chance de trabalhar, passar Natal e Ano Novo em casa e obter uma licença para sair aos finais de semana. Tudo isso, com certeza, foi importante para sua recuperação. Mas até ele entende que um rapaz pobre da favela, se fosse preso em condições similares, não teria as mesmas oportunidades. Se o manicômio não é exatamente um ambiente saudável para recuperar um cidadão e devolvê-lo à sociedade, pode ser melhor do que ficar preso em uma cela minúscula com mais não sei quantos assassinos e bandidos "de verdade". João passou quatro meses em um local assim antes do julgamento. Tanto em um quanto em outro lugar, o livro mostra como ele usou seu carisma, sua lábia, sua inteligência e até sua prepotência para sobreviver. À medida em que ele se dá bem entre os colegas, escapa de uma ameaça de morte e ganha o campeonato de futebol do manicômio, a imagem do traficante vai se dissolvendo e dá lugar à de um herói. É o arquétipo do bom homem que toma um caminho errado na vida e depois começa a pagar por isso. No final, se redime e justifica a simpatia que o público nunca deixou de sentir por ele. Essa estrutura de construção de personagem é muito comum no cinema, e a relação do livro com a sétima arte não fica por aí. A divisão da narrativa em capítulos com começo, meio e fim (que Guilherme Fiuza entende como uma característica inerente aos livros escritos por jornalistas, um favor que eles prestam ao leitor...), a glamorização do personagem e a descrição dos locais fazem a gente pensar em tela grande e trilha sonora enquanto devora cada página. Dito e feito. Vários produtores disputaram os direitos de filmagem, mas eles acabaram ficando com Mariza Leão, responsável por Guerra de Canudos, O homem da capa preta e Lamarca. O filme de Meu nome não é Johnny..., tem co-produção e distribuição da Columbia e começa a ser rodado no segundo semestre deste ano. Ainda falando em cinema, guardadas as devidas proporções, alguns aspectos do roteiro são parecidos com outra história de cadeia, Carandiru. No filme, a existência de um código de ética entre os presos (que provoca admiração na gente; achamos que são incapazes de ter respeito por algum tipo de norma ou instituição), a abordagem "humanizada" dos condenados e as injustiças do sistema penal nos fazem vê-los de outra forma. É importante perceber essas pessoas como fruto de uma situação muito mais ampla, pela qual toda sociedade é responsável, e que merecem um tratamento adequado. Por outro lado, uma emotividade oportunista e barata desvia o foco da realidade do crime e da responsabilidade de cada um. Como o brasileiro médio tem uma tendência em torcer pelo que está perdendo, João Guilherme e os presos de Carandiru são alçados à categoria de heróis por conta da via crucis que passaram no sistema penitenciário e não exatamente pelos motivos que justificariam essa "promoção". Além de ser um thriller dos melhores, o livro alimenta a polêmica da legalização ou não das drogas e o debate sobre a relação com a violência e a criminalidade. Fiuza faz questão de não ser nem moralista, nem panfletário. A reboque dessa "neutralidade", o livro procura desvincular as drogas, o vício e o tráfico, no contexto de João Guilherme, do crime e da violência. É uma ideologia coerente com o que pensa Estrella, que defende a legalização das drogas e desvia o foco da culpa pela violência para outro tipo de tráfico, o de armas. Ele se assume traficante, mas não bandido: "nunca usei armas, nunca dedurei ninguém. Não havia esse link com fuzis, crianças, gente morrendo no meio da rua. Mas você sempre tenta se defender". Não sei se o "tentar se defender" refere-se à sua prática de suborno aos policiais, o que alimenta a ciranda do tráfico. Além disso, ele próprio pode não ter usado armas e nem matado ninguém, mas entre seus clientes estavam outros fornecedores menores, que atuavam dentro de um estilo mais "tradicional": o dos tiroteios que a gente vê na televisão. E mesmo que o raio de distribuição fosse apenas o círculo de amigos de Estrella, o fato de fazer parte de um esquema como esse é sim um link com a violência, os tiros de fuzis, as crianças e as pessoas morrendo na rua. Hoje, Fiuza e Estrella dão palestras em colégios e reforçam a importância de não se experimentar drogas para não correr o risco de cair na dependência química. Fora das escolas, a postura é um pouco mais ambígua. Na entrevista publicada no Dizventura2, o ex-traficante revela suas motivações: "[Por que você se tornou traficante?] Foi uma união de várias coisas, como a busca pela liberdade a todo custo, a aventura, a grana que circula, o poder, o trabalho sem patrão. Eu aproveitei bastante, tirei muito prazer daquilo. Comecei usando, fui conhecendo pessoas, virou uma grande diversão e se transformou numa locomotiva em alta velocidade sem freio. O freio foi o bote da Polícia Federal." Quando se pinta um quadro tão sedutor desse mundo, é complicado tentar incutir em crianças e adolescentes que a droga pode causar dependência, que o tráfico contribui para a violência, que é necessário o apoio da família, da escola e da sociedade para evitar que os jovens se viciem... Apesar das agruras pelas quais passou na prisão e no manicômio, o livro dá a impressão de que João Guilherme teve apenas uma bad trip. Curtiu bastante, fez o que deu na telha, se safou relativamente bem e hoje está recuperado. Como ele mesmo diz, "eu não me arrependo do que fiz, mas não faria de novo". Como posição pessoal ou perfil de um personagem, não há o que questionar em relação a esse ponto de vista. Afinal, Estrella teve a vida e as fraquezas expostas em um livro. É uma troca justa que ele se recuse a assumir que perdeu (coisa que ele odiava) e mantenha uma certa prepotência, mais ou menos como os simpáticos gangsters mafiosos do cinema. No entanto, glamurizar a vida de traficante não é uma atitude adequada para quem dá palestras em escolas sobre o perigo das drogas. Ainda mais quando se leva em conta a realidade mostrada pela pesquisa da MTV. Para os jovens, os limites entre o que é ou não saudável, adequado e criminoso, andam cada vez mais tênues. Para ir além Adriana Baggio |
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