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Segunda-feira, 20/6/2005
Oito países e uma língua reunidos pelo cinema
Marcelo Miranda

1.
Nos doze primeiros dias de junho deste ano, aconteceu o 1º Cineport - Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa, sediado em Cataguases, pequena cidade mineira de 67 mil habitantes. Para quem não sabe ou não ligou o nome à pessoa, Cataguases é a terra onde Humberto Mauro, grande pai do cinema brasileiro, fez boa parte de sua carreira de sucesso, ainda dos anos 20 (depois ele se mudaria para o Rio de Janeiro e, no final da vida, retornaria ao interior, onde seguiria filmando até morrer, em 1983). Sem falar que é um dos centros do modernismo brasileiro, espaço em que se dividem obras artísticas de Tarsila do Amaral, Oscar Niemeyer, Djanira e Cândido Portinari, além de ser berço da lendária revista Verde, editada na cidade por nomes como Rosário Fusco e Ascânio Lopes.

Ou seja, de cultura Cataguases entende. O Cineport chegou como cereja de bolo para devolver o município à categoria de catalisador das artes. Não apenas no cinema: o evento reuniu, além de 83 filmes, diversas exposições de pinturas e fotografias, lançamento de livros, apresentações musicais e teatrais. O cinema é a sétima arte; o Cineport conseguiu juntar todas as outras seis num único período de tempo e espaço, criando verdadeiro congraçamento cultural. Aumentando ainda mais essa imponência, a proposta inovadora teve boa repercussão e recepção: apresentar e debater as cinematografias de todos os oito países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Brasil, Portugal, Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Timor Leste, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde estavam presentes. Nem todos tiveram filmes exibidos, como Timor, pelo simples fato de lá não existir produção cinematográfica. Nesse caso, trabalhos temáticos eram mostrados - como o documentário brasileiro Timor Lorosae - O Massacre que o Mundo Não Viu, de Lucélia Santos, sobre a guerra de independência no país mais jovem do mundo.

Apenas três países tiveram filmes no formato 35mm. Portugal, Angola e Brasil disputaram o Troféu Andorinha em quinze categorias típicas de um festival (filme, diretor, ator, roteiro e por aí afora). A andorinha foi escolhida símbolo por ser a ave que, ao longo de todo o ano, migra entre Brasil, Europa e África. Na falta de trabalhos em película, houve a competição dos digitais, em que Moçambique se destacou. A proposta de fazer uma confraternização entre as nações deu muito certo: o cinema serviu de porta de entrada para outros mundos, outros povos, outros costumes, todos sob a mesma língua, o português. Mais do que apreciarmos o que se cria em cinema nesses lugares, assistir a raridades angolanas como Comboio da canhoca, O herói e Na cidade vazia torna-se algo mágico, a partir de quando descobrimos que gerar um filme num continente tão miserável é tarefa hercúlea, "heróica", como disse Orlando Fortunato, diretor presente no evento. A magia aumenta ainda mais ao percebermos a qualidade dessa obra, a urgência em tentar transmitir por muitas imagens e poucas palavras o estado de inquietação e dor vivido por um povo marcado pela guerra. E, quem sabe ainda mais que tudo, captar esses sentimentos escutando os atores falando português - um português carregado, distante do que estamos acostumados, mas ainda a velha e boa língua de Camões e Drummond.

Guiné-Bissau foi outro país que fez bonito no Cineport. Flora Gomes, considerado o mais conhecido e bem sucedido diretor africano, foi homenageado com a exibição de A Minha Voz (Nha Fala), musical otimista e coloridíssimo em que o renascimento é a palavra de ordem. Em vez de se entregar ao pessimismo em potencial de quem vive na África, Flora seguiu caminho inverso. Fez uma fábula sobre segundas chances, sobre a compreensão e aceitação do novo. Conta a história de Vita, jovem que vai estudar em Paris mas precisa cumprir a promessa que fez à mãe: jamais cantar, ou morrerá. Imagine a protagonista de um musical proibida de cantar! Nesta premissa peculiar, Flora Gomes encantou o público, que novamente pôde compartilhar dessa maravilha escutando a língua que nos une a esses países.

Frente a tamanha impressão positiva dos cineastas africanos, os portugueses ficaram em segundo plano - apesar de seus filmes também serem peça rara em terras tupiniquins. José Fonseca e Costa foi homenageado, tendo dois de seus trabalhos mostrados: O Fascínio e Cinco Dias, Cinco Noites. Na competição, alguns sucessos internacionais, como A Costa dos Murmúrios e O Milagre Segundo Salomé. Mas o maior dos destaques foi Noite Escura, sufocante drama familiar em que acompanhamos as últimas horas de uma garota com sua família, antes dela ser vendida a mafiosos russos. Os planos fechados (lembrando o belga O Filho, dos irmãos Dardenne), que expressam a angústia dos personagens, mais a narrativa seca e o elenco primoroso tornaram este o melhor exemplar lusitano no Cineport. Tanto ele quanto os demais passaram idéia de que o cinema em Portugal se preocupa com o íntimo das pessoas, focando dúvidas e anseios de uma população que, como disse a diretora Margarida Cardoso (de A Costa... ), é marcada pelo constrangimento do colonialismo do passado. Presenciar, num festival de cinema, o encontro de antigas colônias com sua antiga metrópole, todos falando o mesmo idioma, foi algo de mais estranho no Cineport. Uma estranheza positiva, mostra de que a cultura é mesmo um caminho que pode trazer paz e entendimento ao homem. Aliada à língua em comum, é mistura para não dar errado. O Cineport não resolveu velhas rusgas. Talvez jamais resolva. Mas é um passo inicial de respeito.

O Brasil acabou ficando em último plano porque os filmes eram parte da safra 2004 - exceto Como Era Gostoso o Meu Francês (1971) e Memórias do Cárcere (1984), ambos de Nelson Pereira dos Santos e mostrados em sua homenagem. Fora estas duas obras-primas, os trabalhos exibidos já estiveram nas nossas telas no ano passado. A oportunidade foi melhor para os cineastas de fora, que puderam conferir uma cinematografia cheia de bons momentos (Garotas do ABC, O Outro Lado da Rua, Contra Todos) e outros nem tanto (Olga). No saldo final, deve ter ficado a noção de que o cinema brasileiro é inquieto demais, preocupado em tentar entender e explicar o que, afinal, está acontecendo no país. Interessante foi o comentário de Margarida Cardoso: deixando claro que viu poucos filmes recentes do Brasil, disse em entrevista a este que escreve que sente os nossos diretores sem capacidade de enfrentar "a dor", não encarando seus medos ou mesmo tentando demonstrar não existir uma dor. Que dor é esta, fica a cargo de cada um entender...

O Cineport foi promovido pela Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho, instituição de Cataguases. A idéia, a partir dessa primeira edição, é revezar o país-sede do evento entre Brasil, Portugal e África. A ambição é grande. Em hora dessa, é indispensável que se relembre de Humberto Mauro, tão pioneiro e ambicioso em tudo que fez, e seguir em frente. Detalhes e premiações podem ser conferidas no site oficial do festival.

2.
Ser escritor no Brasil é fácil. Difícil é publicar livros. Colegas do Digestivo já trataram do assunto de forma brilhante (leia, por exemplo, este texto do xará Maroldi, ou este outro do Luis Eduardo Matta). Iniciativas para resolver esse beco quase sem saída existem aos montes, mas ainda não são suficientes. De qualquer forma, projetos como o Casa Verde de Porto Alegre merecem aplausos. Formado oficialmente em junho de 2004, reúne hoje oito escritores com o objetivo de escrever e publicar. Senão pelas vias "normais", que seja pelas alternativas. Caco Belmonte, Christina Dias, Filipe Bortolini, Flávio Ilha, Laís Chaffe, Luciana Veiga, Luiz Paulo Faccioli e Marcelo Spalding criaram selo próprio e se aventuram pelos meandros editoriais. O resultado ficou muito bom: é o livro Fatais (2005, Casa Verde, 126 páginas).

São vinte contos em que a inquietação, a dor e o pessimismo são presenças marcantes. Talvez essas pequenas histórias reflitam, de certa maneira, o próprio pensamento dos autores em sua função de escritores em busca do melhor, batendo de frente com muros às vezes intransponíveis e tendo que vencer na marra. Não deve ser à toa que a maioria dos contos no livro seja escritos em primeira pessoa. Algo de auto-identificação está ali. Claro que, assim como no cinema, a literatura permite extravasar sentimentos, ir além do que a realidade e suas convenções nos permitiriam. Assim, crimes, traições, maldades, tudo permeia a antologia reunida em Fatais.

O livro é enriquecido pela visão distinta de cada autor para o que conta. Se Caco Belmonte se expressa por historietas rápidas, cuja resolução nos pega de surpresa mas já estava implícita desde o começo, Flávio Ilha gasta 14 páginas para contar como a própria arte da escrita pode ser enganadora e manipulativa. Alguns, como Filipe Bortolini, usam a narrativa policial para falar do acaso e das tragédias cotidianas; outros, como Christina Dias, vão fundo no coração dos personagens, lembrando a introspecção tão bem delineada na literatura de Clarice Lispector; ou Laís Chaffe ou Luciana Veiga, que tematizam a família e as relações tempestuosas e ao mesmo tempo singelas e doces de seus membros. E há ainda Luiz Paulo Faccioli, que lida diretamente com a morte. Todos talentosos, com passagens por oficinas literárias e boa formação acadêmica. Provavelmente são capazes de terem publicados seus trabalhos. Não tendo oportunidades, decidiram andar sozinhos. Num universo tão mesquinho que é o mercado literário atual, provavelmente esta é a solução para quem não abre mão de escrever, este grande "prazer? mania? necessidade? maldição?", nas palavras de Laís Chaffe.

Para ir além





Marcelo Miranda
Juiz de Fora, 20/6/2005

 

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