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Sexta-feira, 8/7/2005 Por que eu moro em São Paulo Eduardo Carvalho Eu não moro em São Paulo como se este fosse meu endereço definitivo, só porque nasci aqui e como se estivesse, para o resto da vida, limitado às suas ruas e às suas referências. Ainda tenho a impressão de que sou um turista nesta cidade. Não me acostumo com seus defeitos mais evidentes - trânsito, sujeira, pobreza, etc. Acho estranho que as pessoas esperem na rua para atravessá-la, dando passos para trás e para frente a cada carro que passa, em vez de esperar na calçada; que ainda não seja hábito, aqui, ficar parado apenas ao lado direito da escada rolante; que algumas pessoas passem tardes inteiras, no fim de semana, tomando cerveja e conversando sobre assunto nenhum; que favelas monstruosas existam praticamente no centro da cidade, e passem despercebidas; que um monumento ao mau gosto arquitetônico, como o novo prédio da Daslu, seja - apesar de bonito por dentro - considerado elegante por fora. Acho difícil me acostumar com tudo isso, e muito mais, apesar de ter nascido aqui. Só que, sinceramente, ando cada vez menos preocupado com os problemas de São Paulo - a combinação de tudo isso é, na verdade, até engraçada, de tão esquisita. Minha maior preocupação é viver meio que à margem dessa bagunça toda. Assim, poupo a minha paciência e a minha sensibilidade. E não me entenda mal. É que São Paulo é uma cidade de personalidade forte, que pode impressionar - inclusive negativamente - todo mundo que vive aqui, e acaba reduzindo interesses e atividades de seus habitantes à circunferência da cidade. É preciso sempre tomar cuidado para não ser paulistano demais. Toda cidade, rica ou pobre, grande ou pequena, exige certas adaptações de seus moradores. É preciso saber identificá-las. Você pode gostar ou não de carro, mas vai precisar ter um em Los Angeles. É melhor que você não tenha o olfato muito apurado se pretende morar em Cairo. E tenha sempre um lenço no bolso para caminhar em Manaus. Em Veneza, no verão, aprenda a não se preocupar nem com o cheiro nem com a umidade da cidade - ou você não vai conseguir apreciar os Caravaggios da Academia, que não tem ar-condicionado. São Paulo ainda é uma cidade mais exigente do que a média. Você precisa se ajustar ao trânsito e à violência, a feiúras e a grosserias. É difícil, mas não é tão difícil assim, e as soluções são manjadas: morar perto do trabalho, evitar horários de pico no trânsito, estar atento a figuras suspeitas; com relação a feiúras e grosserias, o ideal é simplesmente ignorá-las, seja um shopping center ou um gesto agressivo no trânsito - grosseria, aliás, é apenas a parte visível de uma vida desagradável. Morar em São Paulo, portanto, não é igual morar em Hamburgo - mas pode ser, à sua maneira, muito divertido. Morar no Brasil é uma espécie de aventura. E essa aventura é ainda maior em São Paulo. É praticamente impossível viver aqui com o mesmo espírito com que se vive em Amsterdã ou Manhattan. Muita gente se frustra ou se desgasta em São Paulo porque importa modelos supostamente civilizados de outras cidades. Isso não funciona. Pedalar pelas ruas de São Paulo, durante a semana, é um exercício quase masoquista; e é muito difícil assistir um ballet ou ópera que compense a gasolina gasta até o teatro. E olha quem escreve isso: adoro mountain bike e tenho amigas apaixonadas por ballet. Só que reservo certas atividades para Barretos ou Moscou. Em São Paulo, os melhores programas são outros. São programas naturalmente brasileiros - sol, praia, esporte, etc. -, por um lado; e por outro estão nossos programas mais cosmopolitas, que sofrem ajustes tropicais mas não necessariamente se depreciam por isso - como nossos restaurantes. Quem esteve em São Paulo agora em maio, por exemplo, provavelmente estava encantado com a cidade: os dias estavam tão lindos, limpos, azuis, que não dá para se imaginar em outro lugar. É só abrir o teto solar do carro e ir para o escritório. E, no almoço, escolher um lugar aberto - como, no meu caso, o Gil Bistrô ou o Museu da Casa Brasileira -, e apreciar, ao mesmo tempo, a comida, o clima e o movimento. Nos finais de semana, é maravilhoso descer de carro para a praia, apreciando a floresta na paisagem, o céu azul durante o dia ou, à noite, a caminho do interior, olhando as estrelas. São situações clichês, claro: mas são clichês tropicais que, por mais repetidos que sejam quando descritos, não se desgastam quando acontecem de verdade. E combinações entre essas imagens e certas conveniências devem ser exclusivas deste pedaço do mundo. É possível surfar bem a menos de uma hora de São Paulo. E o aeroclube onde piloto planador - e onde espírito é bem caipira, no bom sentido - também não ultrapassa muito mais de uma hora daqui. Isso para não falar de outras múltiplas opções de diversões bacanas próximas a São Paulo - de remo a vela, de trekking a trilhas de jipe. E todo mundo fala isso, mas é verdade: São Paulo é uma das melhores cidades do mundo para se comer. Melhores e mais baratas, em US$. Desde que voltei de viagem, há três meses, devo ter ido a pelo menos um restaurante novo por semana. Não me lembro de nenhuma grande decepção, apesar de pequenos desapontamentos. Ao contrário, comi extremamente bem tanto nos contemporâneos, como o D.O.M. e o Carlota, quanto nos mais tradicionais, como no Ici Bistrô e Nonno Ruggero. E continuo aproveitando os que, por conveniência logística, vou quase toda semana, como o Mercearia do Conde e o Josephine. E tem os novos, como o Café de La Musique, que é quase uma mistura da Lotus com a Amauri, que atrai de Chiquinho Scarpa e Hebe Camargo a uma molecada que pode comer e, mais tarde, dançar no mesmo espaço. As opções gastronômicas em São Paulo não acabam mais, a ponto de, se entendesse do assunto, eu escreveria colunas apenas para comentá-las. Eu não gosto de morar em São Paulo, portanto, por causa da programação cultural, ou de possíveis acessos cosmopolitas da cidade. Para isso, existe Veneza e Londres. Acho que é possível levar uma vida agradável em São Paulo, mas de um modo muito específico. Que, aliás, não se resume a programas outdoors e a restaurantes: mas também não é igual ao que se levaria em Helsinki. São Paulo requer uma certa flexibilidade. Mas recompensa essa exigência: porque esta cidade, bem aproveitada, pode preparar os olhos e os hábitos de quem, apesar de ter nascido aqui, tem o espírito aberto para o mundo. A formação de uma personalidade cosmopolita pode ser ainda mais eficiente quando acontece em um ambiente provinciano. Porque viver na província exige esforços, adaptações, e uma maleabilidade natural para as pequenas coisas do cotidiano. Um ambiente civilizado, nesse sentido, apresenta menos desafios. E, por isso, pode formar toneladas de personalidades aparentemente sofisticadas, mas no fundo mais ingênuas, menos complexas. Joaquim Nabuco cresceu no interior do Pernambuco e Nero Wolfe, outro exemplo, no coração do Egito. São Paulo, em comparação com esse lugares, pode apresentar desafios igualmente didáticos, enriquecedores. Basta não confundi-la com o que ela não é. Domingo no parque E, falando em São Paulo, a apresentação de Wynton Marsalis no Ibirapuera foi ao mesmo tempo encantadora e frustrante. Sempre fui fã de Marsalis. Acho que ele é um gênio quando fala e quando toca. Seu CD de marchinhas clássicas é uma maravilha. Mas ele não pareceu muito atencioso em São Paulo. Estava aparentemente cansado e com pressa, no meio de um tour pela América Latina, e deve ter escolhido o repertório, como reparou o Julio, sem cuidado. Todo mundo ali estava aproveitamento muito mais o dia, o parque, a caminhada, do que a música mesmo, que esbarrou na chatice. Mas a impressão é que estava todo mundo ali mesmo. Foi um evento social para São Paulo - daqueles em que você encontra amigos que não via há anos -, com um motivo relativamente honesto. Confesso que gostei de ver o movimento de pessoas interessadas em música. Se, aos poucos, a quantidade de shows dessa categoria aumentar, um dia vai dar tudo certo: figurino, cenário e enredo - se é que precisa. Barry Lyndon Aliás, assisti na semana passada um filme que devia ter assistido há anos, o último de Kubrick que faltava na minha lista: Barry Lyndon. Não sei como descrever a perfeição. Um filme ao mesmo tempo calmo e tenso, rodado no interior da Inglaterra do século XVIII, com atrizes lindas, paisagens deslumbrantes, cenas inesquecíveis? A beleza de Barry Lyndon cai no ridículo quando explicada em palavras. O filme é de uma natureza quase transparente. A impressão que sobra, depois de três horas de cinema, não é a da história, não são os personagens, não é uma cena especificamente. É como se você estivesse contemplando durante horas um quadro claro, levemente colorido, que resumisse delicadamente os mais altos e os mais baixos momentos da vida. Tudo está ali. Claro, há comparações possíveis entre Barry Lyndon e Peer Gynt, outro mentiroso encantador, mas a linguagem é diferente. Peer Gynt é basicamente Ibsen. E Barry Lyndon, oscilando entre a amargura e as delícias da vida, é a essência do clima de Proust transposta para o cinema. Eduardo Carvalho |
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