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Quinta-feira, 21/7/2005 A cachorra da vizinha Adriana Baggio O condomínio onde eu moro tem muitos inadimplentes. Alguns deles passam por um aperto momentâneo (como a maioria dos brasileiros), por isso atrasam a taxa de condomínio. Mas existem outros que são safados mesmo. Devem há meses, há anos, mesmo a gente vendo que eles têm condições de pagar. A desculpa que eles dão? São contra pagar condomínio. Acham a taxa absurda, injusta. Têm desavenças com o síndico e com os vizinhos. Discordam das flores que o jardineiro planta e odeiam a marca de desinfetante utilizada pela zeladora. Apesar disso, não abrem mão da TV a cabo e do gás que aquece a água para seus banhos. O gás eu também uso, mas a TV a cabo, não. Gostaria de ter, mas não é prioridade. Outras coisas vêm na frente e utilizam a verba que eu poderia despender mensalmente com esse serviço. Mas, veja só, eu acabo pagando a assinatura da TV a cabo dos vizinhos inadimplentes! Enquanto eles já nem lembram se a Carrie ficou com Mr. Big no final de Sex and the City, eu acompanho a série com alguns anos de atraso, pela TV aberta (Canal 21, é muito legal!). Garanto que eles também deixam a chama piloto do aquecedor ligada o dia inteiro! Claro, por que se preocupar em economizar, já que somos nós que pagamos a conta? Felizmente, eu acompanho muito pouco o emocionante dia-a-dia do condomínio. Por isso, não conheço quase nenhum dos inadimplentes. Só sei de uma, e parece que é justamente a mais descarada de todas. Além de assistir Fox, Sony e HBO às minhas custas, tem uma picape na garagem e não esconde de ninguém que possui outros imóveis. Não seria de descer do salto e pular no pescoço da megera? Às vezes, quando estou regando meu manjericão na varanda, fico mais sociável e interajo um pouco com os outros moradores. Em um belo e inesperado sábado de sol no outono, dediquei algumas horas a cuidar do basílico e das outras plantinhas. Ao mesmo tempo, tentava fazer com que Ferrugem não escapasse pelas aberturas da grade. O perigo não é a altura, já que o apartamento é térreo. O problema é que quando Ferrugem escapa, é muito difícil trazê-lo de volta. Incrível como esses cachorros correm! Bem, nesse idílico cenário em que eu cumprimentava um morador aqui e outro ali com as mãos sujas de terra, apareceu uma simpática vizinha. Ela tem uma poodle do mesmo tamanho de Ferrugem. Como não podia deixar de ser, a cachorrinha ficou encantada com o meu principezinho e resolveu brincar com ele. Enquanto os dois se divertiam, eu e a vizinha estabelecemos uma cordial conversa sobre os hábitos de cada um deles. Por fim, até deixamos combinado que quando a cachorrinha entrasse no cio, Ferrugem seria convocado para cumprir seu papel de varão da espécie e garantir descendência. Essa idéia me interessava bastante. Ferrugem já tem 4 anos, mas nunca cruzou. Até tentou uma vez, mas a parceira era muito alta para ele. Inexperiente, o coitado não conseguiu levar a cabo o intento, mesmo com as listas telefônicas que tentávamos colocar sob suas patas. A experiência frustrante deixou Ferrugem estressado. A namorada, que antes era sua amiga, passou a nutrir um grande desprezo por ele. E ele, por sua vez, só queria saber de montar na bichinha toda vez que encontrava com ela, mesmo depois do cio ter terminado. Foi por sorte que ele não levou algumas dentadas nessa confusão toda... Depois disso, Ferrugem nunca mais teve nenhum encontro. Falha minha, claro, que não fiz muito esforço para procurar uma namorada com o temperamento e altura adequados a ele. Por isso, quando apareceu essa vizinha e sua cachorra, fiquei bastante aliviada e contente. Mas a felicidade durou pouco. Qual não foi minha surpresa ao saber que a mulher era, justamente, a mais famosa e descarada das inadimplentes do condomínio! Fiquei com muita raiva. Xinguei-me várias vezes por ter sido tão amável, simpática e cordial com uma criatura dessas. Pensei na imagem que as outras vizinhas tiveram de mim, ao me ver conversando animadamente com a inadimplente. Elas, que vivem a rotina do condomínio mais de perto, conhecem o who's who do lugar e podem estabelecer ou cortar relações dependendo da respeitabilidade de cada um. Mas eu não tinha como saber! O fato é que Ferrugem acabou sofrendo as conseqüências desse equívoco social. Jurei que aquela cachorra nunca mais colocaria suas patas peludas na minha varanda. Por mim, Ferrugem poderia morrer virgem antes de cruzar com aquela desclassificada. Fui muito firme e disse para ele não insistir nem ter esperanças. Ele não falou nada, apenas virou a cabeça um pouquinho de lado e colocou as orelhas pra frente. Quando terminei, levantou e foi comer ração. Felizmente, junto a mulheres destemperadas como eu existem homens sensatos e muito mais generosos de coração. O meu me fez ver que a pobre da cachorra não tinha nada a ver com o comportamento da dona. Ela não deveria ser alvo do meu desprezo e preconceito só porque teve o azar de morar com uma inadimplente descarada. Refleti bastante e vi que ele tinha razão. Fiquei envergonhada das minhas atitudes mesquinhas. Resolvi que, caso a dita cuja entre no cio e revire seus olhinhos escuros pelo meu fofucho, vou permitir que ele, finalmente, conheça o amor. Quanto à dona dela, não sei se terei a mesma nobreza. Vou manter a elegância e cumprimentá-la sempre que o destino nos colocar frente a frente. Só espero que ela não me aborde na varanda no próximo sábado de sol. Adriana Baggio |
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