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Quarta-feira, 27/7/2005
Últimas Notas Sobre A FLIP
Ricardo de Mattos

Pela terceira vez realizou-se a Festa Literária Internacional de Paraty - FLIP - no período de seis a dez de julho corrente. É do conhecimento de todos que a escritora celebrada foi Clarice Lispector. O evento ocupou cinco dias, sendo o primeiro destinado à abertura de homenagem e show de Paulinho da Viola. Os demais dias foram destinados às "mesas". Mesa, em verdade, não existe. Os escritores convidados subiram ao palco e fizeram o que foi combinado: discorreram sobre um tema ou fizeram leituras de obra própria ou alheia.

Os participantes tiveram duas opções de local para assistir as mesas ou palestras. A primeira opção era a tenda dos autores erguida à margem do rio e na qual se deparava ao vivo com os escritores. A tradução das línguas dá-se com um aparelhinho com fones de ouvido. A segunda opção era a tenda da Matriz, armada quase defronte à Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Esta tenda, sabe-se lá porque, é dividida nos setores "A" e "B" e as palestras são dubladas. Assisti palestras em todos os locais, podendo conhecer todas as opções. Quem fizer questão de ouvir a voz original do escritor, que treine o idioma e compre as entradas com a necessária antecedência.

De fora da tenda da matriz, pode-se assistir em pé, sentado, caminhando ou a cavalo, a mesma coisa que os outros pagaram para assistir sentados. Além disso, dois telões extras foram voltados para a praça, de forma que por eles foi possível controlar o andamento do evento, as reações e manifestações de interesse.

Das vinte mesas, assisti cinco, escapei da sexta e arrependi-me de uma. Fui à Paraty para a FLIP e também a passeio. Todavia, sendo realizada a Festa Literária Internacional de Paraty, 95% das pessoas foram atraídas apenas pela Festa e esqueceram o resto. Mesmo entre os interessados em literatura, predominava o interesse em ver "gente famosa".

07/07/05

Chegada a Paraty por volta do meio-dia e hospedagem. Concluí a reserva no dia oito de março passado e nem pude escolher as pousadas de costume. Fiquei numa razoável, porém próxima da cidade. Primeira entrada na tenda dos autores, localização da livraria e verificação do esquema dos ingressos.

Por sorte, ganhei um folder com a programação. Em Taubaté, encontrei-a completa na internet, copiei-a e colei-a no Word. Arquivei e levei o computador para o conserto. Sem imprimi-la.

Adquiri certa reserva com palestras, mesas ou conferências. Culpa das jurídicas. Tento entender se o palestrante concorda ou discorda da minha opinião. Se discorda, o quilate de seus argumentos. Se de baixo valor, deixo o espírito flanar livremente.

No início, gostei dos temas todos. Contudo, minha primeira escolha recaiu sobre três: Arte e Natureza; Brasil, Arquipélago de Culturas; e Livro de Cabeceira. Escolhi-os por gosto pessoal e visando o lugar onde os assistiria. Na saída, deparo-me com Arnaldo Jabor. Estas três mesas fora assistidas na tenda da Matriz, variando o setor. Questiono a conveniência de manter esta tenda E telões. A pessoa pode ir à FLIP, não comprar um só ingresso e assistir a tudo.

Pelas ruas, a atriz Betty Gofman e seus galgos.

O primeiro almoço foi no velho e bom restaurante Galeria do Engenho, conduzido por mãe e filhos. Lula a Dorê e salada completa. Comida excelente e farta. O jantar resumiu-se a uma pizza no Forchetta D'Oro. Numa mesa eu, minha mãe e nossa amiga Fátima. Noutra, Isabel Lustosa submetendo o chef a um interrogatório. Reclamou do calçamento do centro histórico da cidade. Como boa historiadora, porém, sabe que assim deve permanecer não só para manter a feição original, como também pela inutilidade de se acimentar onde a água do mar inunda diariamente. A sobremesa eu comi numa barraca de doces de certa paróquia. Experimentei um doce chamado massapão, que lembra bem as queijadinhas de côco, mas por fora parece originário da quituteria portuguesa.

Neste dia, encontrei Julio Borges na livraria. Já disse que viajei em busca dum passeio culto. Ele parece ter feito um passeio profissionalizado, se é que não viajou inteiramente a trabalho. Ossos do ofício... Qual é mesmo o nome do seu site? Vez ou outra, ele aparecia no telão comendo pipoca doce.

08/07/05

Levantei-me logo. O frigobar zumbiu a noite inteira e parou quando sentei-me na cama. Após o café, saí da pousada, cruzei a rua e parei à beira do rio. De um lado, o mar e a cidade. Do outro, o rio perdendo-se na mata e levando o olhar para as montanhas cobertas de nuvens. Imagem digna de ser preservada em tela por um dos Luigi. A margem oposta a mim consiste de pedregosos muros de contenção e alguns avançados de madeira. Poucos barcos. Os quintais das casas resguardados por árvores e arbustos de flores vermelhas, alaranjadas e amarelas. Bem-te-vis realizavam o desjejum na areia; a garça voa e pousa adiante com majestade peculiar. Anos visitando a cidade e pela primeira vez observo biguás pescando.

Nova passagem na livraria. O estoque em exposição é periodicamente abastecido e variado. Muito correto que todos os escritores presentes e a homenageada tivessem várias de suas obras expostas em grande quantidade para aquisição. Para um estabelecimento itinerante, foi perfeito. Além das obras dos autores convidados, um ou outro livro interessante: as obras pictóricas de Leonardo Da Vinci num volume imenso, uma edição tentadora apresentando Balthus.

I.C.A., do mercado negro de ingressos para a tenda dos autores, ofereceu-me entradas para mais três mesas. Revendo o folder para lembrar os temas, acabei comprando apenas duas. Desta forma, assisti também Mar de Histórias II - As Mil E Uma Noites e O Escritor E O Escrivão.

Às 15h00, Arte e Natureza, com a escritora inglesa Jeanette Winterson, autora de Artes e Mentiras e Inscrito no Corpo. Confesso ter esperado maior bucolismo. Imaginei que ela falaria sobre a presença da Natureza na literatura, e se lembrar-se de Conrad, Kipling, Hemingway e Rousseau, ver-se-á que eu não estava muito desatento. Valeu o ingresso, contudo.

Às 17h00, Mar de Histórias II, com o escritor turco Orhan Pamuk, autor do atraente Meu Nome É Vermelho. Não tenho um inglês muito fluente, mas acompanhei bem a fala e J. Borges, ao final, confirmou o que entendi. Não sei quanto aos presentes, mas a mim Pamuk não revelou novas. Que As Mil E Uma Noites não é uma obra única, mas uma antologia; que não foi composta por um só autor; que deve demais à tradição médio oriental das narrativas orais; que não é uma obra destinada ao público infantil "como acadêmicos e pedantes costumam apresentar, para os quais até Irmãos Karamazov, hoje, é uma obra infanto-juvenil"; que, originariamente, não contém certas histórias como Ali Babá e os Quarenta Ladrões; que causou fascínio e influenciou Borges, Poe e outros autores ocidentais; que é um retalho de relatos de fontes indianas e persas; que se acreditadas literalmente, não apresentam uma imagem muito positiva dos povos da região.

O almoço deu-se no Restaurante da Ondina. O serviço foi péssimo: um garçom para cem fregueses e começamos a comer inquietos por não saber a forma de pagamento. A comida, porém, superou em muito o problema. Quem aprecia camarões sentir-se-ia numa natureza morta de Cornelis de Vos, Brueghel ou qualquer outro holandês seiscentista dedicado ao tema. Danem-se garfos, facas e colheres, Deus proveu-nos de mãos. A quantidade que eu comi foi obscena, pantagruélica, digna de se fechar os olhos das crianças para não imitarem em casa. Se ativistas do Greenpeace vissem nossos pratos, seríamos jogados na calçada e abatidos a tiros. Ficamos todos de tal forma empanturrados, que à noite nos limitamos a uma canja e uma salada no Tempero de Maria. Nem doce de quermesse eu comi.

Novamente Betty Gofman e seus galgos. Várias vezes ouvi falar da semelhança com o dono que a convivência provoca nos animais. Semelhança temperamental está certo, a finada Cigana a comprovaria. Não julgo ofensiva a observação, mormente por concordar e aceitar que os melhores cães para mim são os molossos: buldogue, bóxer, mastim napolitano. Semelhança física, contudo, é uma demasia.

A última mesa do dia foi a de Jô Soares e Isabel Lustosa: A Sátira Ontem e Hoje. A apresentação acabava enquanto eu aproximava-me da tenda da Matriz e mal ouvi as últimas palavras. As pessoas acumularam-se para vê-lo falar e depois para vê-lo jantar, apesar d'ele ter mandado fechar as janelas do restaurante. O único com esquema de segurança espalhafatoso foi ele. Sequer Salman Rushdie, ao menos que eu tenha percebido, teve tal aparato. Todavia, nenhum livro de Jô Soares arriscou-lhe a cabeça. L. F. Veríssimo caminhava discretamente pelas ruas, com seguranças discretos.

09/07/05

Esta noite eu desliguei o frigobar na tomada, mas arranquei do trilho quase metade da cortina. O quarto ficou claro. Mais uma noite assim e ficaria como Al Pacino em Insônia.

Após o café, novamente na beira do rio. Pela segunda vez na vida eu vi um martin pescador. O ronco do biguá fez-me procurar porcos até descobrir a origem. O cachimbo fez falta, mas esqueci coisas mais graves. Meia hora balançando na rede antes de sair. É imprescindível balançar devagar e fazer o gancho ranger. O da roça rangia.

Chegando ao Centro, assisto a mesa 11 quase inteira. Ritmo, Poesia, Política, com Arnaldo Jabor, Luiz Eduardo Soares e MV Bill e mediação de Miguel Sousa Tavares. Bill prendeu as pessoas com o poema recitado. Anunciou que declamaria e pediu que não se reparasse na falta de ritmo. Ao fim, entusiasmou-se e quase cantou um rap, estilo musical de ritmo peculiar. Luiz Eduardo Soares foi um tanto emotivo e Jabor polêmico como esperado. Eu gostei e não acredito que ele tenha falado alguma bobagem.

Levei três livros para serem autografados, um deles Equador, do Tavares. Todos os palestrantes sentaram-se depois à mesa de autógrafos, menos ele. A maior parte dos monitores não sabia de quem se tratava, embora ele acabasse de participar. Um disse que ele estava aqui, outro que talvez estivesse ali, e fiquei sem autógrafo ou dedicatória. Entrei na fila, mas ao ver que ele não participaria, desisti. Bonito chegar diante dos três - Bill, Soares e Jabor - sorrir amarelo e sair. Atrás de mim, uma gordinha afirmou que a palestra de Soares fez muita coisa cair sobre a cabeça dela. Olhei para cima preocupado, receando ser atingido por algo.

Comprei Baterbly E Companhia, de Enrique Vila-Matas e guardei-o na pousada. De volta ao centro, procurei os meus, entre os quais um casal de amigos que foi encontrar-se conosco. Almoçamos todos no Caminho Do Ouro. A cachaça mineira foi cortesia da casa. Pedi um steak de filet mignon com molho de uva ao Porto, acompanhado de gratinado de mandioca. Tal prato só faz elevar o padrão gustativo do comensal. Quem namora uma mulher muito bonita torna-se frio com as menos providas. Tenho a impressão de que este prato, ou algo mui parecido, é servido no Céu para a mesa dos eleitos. O almoço foi arrematado com sorvete de café, o meu favorito. O resto do dia foi dedicado a passeio, prosa e petisco.

Comprei ingressos para cinco mesas e assisti superficialmente algumas outras. Até pouco tempo atrás, eu compraria todos os ingressos, assistira e gravaria a todas as mesas, faria anotações e depois escreveria uma coluna sobre cada. Compraria o máximo de livros e leria tudo desordenadamente para completar o texto. Exigiria autógrafos de todos os escritores em todos os exemplares - houve quem fizesse isso. Creio ter-me aproximado melhor de Montaigne ao fazer apenas aquilo que me deu prazer.

Só por coincidência, comprei uma edição de bolso de Flush - Memórias De Um Cão, o livro mais popular de Virginia Woolf. De popularidade estarrecedora para ela mesma. A longo prazo - durante a vida - faço questão de conhecer a totalidade da obra de três escritores: Dostoievski, V. Woolf e Thomas Mann. Quanto ao primeiro, estou bem adiantado. Ela aproxima-se aos poucos. Nada apressado, conforme conduta por mim adotada. Primeiro, terminarei Uma História Dos Povos Árabes, de Albert Hourani, livro como que introdutório para outro que desejo ler e comentar para o Digestivo Cultural. Depois decido se estalo os dedos chamando Flush ou leio Baterbly... .

10/07/05

Andei demais estes dias todos. Acordei antes das oito, mas poderia ter dormido mais. Tanto que cochilei na rede enquanto limava as unhas.

Felizmente, e mui felizmente, acordei e sem pressa alcancei a tenda da Matriz para assistir, no setor "B", a palestra do Ariano Suassuna: Brasil, Arquipélago Cultural. O pretensioso tema pouco foi abordado. Ou o foi com maior amplidão que a esperada. Oradores menores agradam-me quando saem de seus temas, encadeiam idéias e perdem-se. Desta feita, fiquei embasbacado ao ouvir Suassuna. O tempo foi insuficiente: uma hora a mais que lhe dessem não atrapalharia ninguém. A fila de autógrafos foi proporcional à repercussão. Receio que as pessoas tenham prestado atenção maior a suas brincadeiras que ao resto, embora o que se aprende com o riso impregne e dure mais que de qualquer outro tipo.

Sobre os testemunhos na fila de autógrafos, quase escrevi uma pequenina farsa, que quase intitulei Idiotice Em Um Ato. Seria, contudo, fazer propaganda gratuita para vagabundo. Então desisti. Chocou-me saber qual é a futura intelectualidade nacional. Vá-la, uma amostra:

Mano: "Pô meu o cara fala bem liga muito uma idéia com outra que acho até que vô pará de fumar maconha pra ficar igual ele o texto dele que não é bom tá ligado, é ruim, não diz nada é mal escrito".

Quem lida no campo sabe o que significa um animal "inteiro". Se o moleque autor destas sábias palavras continua "inteiro", é por não ter impregnado minha roupa com o cheiro de seu baseado. O Brasil é um país magnífico, o tropeço são seus habitantes.

Foi com sincero gosto que estendi meu livro para A. Suassuna escrever a dedicatória. Não sou tiete, mas se tenho oportunidade, peço o autógrafo. Entre os colegas do DC, o Luis Eduardo Matta já presenteou-me com livro E dedicatória. Não consegui o de Sousa Tavares, mas Enrique Vila-Matas foi um coringa autografando e desenhando meu Baterbly.... Das cinco pessoas que lerão esta coluna, uma é a poetisa brasiliense Gisele Lemper, que também enviou-me seus livros, todos assinalados. O único antipático foi Salman Rushdie:

- Good nigth , Sir. My name is here...
- No. Just "Salman".
- Ok... Thank you...

Custava muito por "to" na frente do meu nome?

Lembro-me de estar na fila que levaria a Vila-Matas. Uma senhora segurava com as duas mãos um exemplar do Baterbly ... de Melville. Um volume besta, imitação das antigas brochuras de capa costurada e folhas sem cortar. Fiquei dividido: alerto-a, ou mantenho-lha inocência de chegar diante dum autor espanhol contemporâneo e entregar o livro dum autor norte-americano do século XIX? Como ela pulou o cordão de organização da fila e começou a criar confusão com o segurança, deixei tudo como estava e apenas observei para saber se ela apanharia.

À tarde, logo antes da mesa 19, paro para comprar doce num carrinho na rua. Outra senhora aborda o vendedor querendo saber o que se passa na cidade, como descobrir a programação e adquirir entradas. O vendedor de doces estende-lhe o caderninho e informa: "A senhora gosta do Ariano Suassuna? Hoje tem ele". Ela agradece e dirige-se à tenda dos autores.

Baterbly E Companhia é um livro interessante e o início da leitura foi promissor. Contudo, a mesa que Vila-Matas dividiu com o português Gonçalo Tavares foi tediosa. Se eu previsse, não teria comprado o ingresso. Ou tentaria devolvê-lo, apesar do cambista ter insinuado, levantando casualmente a jaqueta e mostrando o coldre do revolver, que devolver a entrada seria uma coisa, e pretender a devolução do dinheiro, outra. Voltando a Gonçalo, percebi que ele inventou a charge escrita. Ele com palavras e Quino com traços fazem a mesma coisa.

Por fim a mesa número vinte, Livro de Cabeceira, foi um pot-pourri de leituras intermediado por Camila Packer Bowles. Não houve surpresa. Ao contrário: quem fez a dublagem das leituras, fê-la tão mal que teria sido melhor no-la fazer. Após a mesa de autógrafos, fui jantar, de forma que perdi o encerramento mais festivo. Só ouvi o estourar dos fogos. Voltamos à Galeria do Engenho para a última refeição. Ir até Paraty e não experimentar, neste específico restaurante, o espaguete com frutos do mar é o mesmo que viajar ao Sul do país e não provar o churrasco ou visitar Salvador e não comer o acarajé. Minha mãe quase saltou pela janela de susto ao perceber certa brincadeira de humor negro que eu fazia. Mero registro.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 27/7/2005

 

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