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Quinta-feira, 4/8/2005 É preciso aprender a ser mulher Adriana Baggio Simone de Beauvoir talvez se revire no túmulo com a significação que enxergo em uma de suas frases mais famosas. Quando ela disse que "não se nasce mulher, torna-se mulher", referia-se aos processos e às regras de socialização impostas ao sexo feminino. Isso foi em 1949. De lá para cá, muito pelo que ela lutava aconteceu ou está acontecendo. Nós, mulheres, hoje trabalhamos fora e temos nosso próprio dinheiro. Viajamos sozinhas ou com um companheiro ocasional e não precisamos mentir que somos casadas na recepção dos hotéis. Podemos fumar, dirigir, usar calças compridas, beber sozinhas em um bar, tomar a iniciativa de uma paquera. Nos divorciamos, juntamos, temos filhos de pais ausentes. Tudo bem que ganhamos menos que os homens e as mulheres que têm muitos namorados ainda são chamadas de "galinhas". No entanto, há de se convir que muita coisa mudou. Mudou tanto que desaprendemos algumas habilidades intrinsecamente femininas. Uma mulher contemporânea foi educada para ser independente, segura e autoconfiante. Desde cedo, aprendeu a andar de ônibus sozinha e a afastar com um olhar frio ou um safanão de algum desses tarados que se esfregam nas moças em coletivos lotados da hora do rush. Nos estudos, vai muito além do segundo grau (e eu que achava jacu quando se referiam a esse estágio como "científico"; o correto agora é ensino médio, né?). São maioria nas universidades e ainda por cima se dão bem em cursos para pessoas inteligentes e boas em matemática, como Economia, Engenharia, Informática, etc. Tudo isso fez com que as mulheres adquirissem ou desenvolvessem habilidades antes restritas aos homens. Eu, como uma mulher contemporânea, transito muito bem em vários ambientes e situações que podem intimidar outras pessoas, mesmo as do sexo oposto. Não tenho medo do gerente do banco e sinto-me muito à vontade falando de tarifas, juros, investimentos. Dirijo bem em estradas, na cidade e até mesmo nas íngremes rampas de estacionamento dos shoppings. Argumento tranqüilamente com o cliente, com meu chefe e com o chefe do meu chefe. No entanto, vejam só, morro de medo de falar com a faxineira. É isso. Nós, mulheres de hoje, aprendemos muitas coisas, mas desaprendemos outras. Esses dias, uma amiga descobriu as sujeiras escondidas atrás de móveis e sofás que a diarista passou meses sem arrastar para limpar. Desesperada com tanta porquice, fez ela mesma o serviço. No entanto, tomou uma atitude drástica: vai esperar a próxima visita da mãe para que ela fale com a faxineira. Lidar com esse tipo de situação exige uma habilidade que a gente não tem mais. Um outro tipo de profissional que me intimida bastante é a manicure. Pode parecer fácil para quem observa de longe. Ficamos sentadas enquanto uma ou até duas mulheres cuidam de nossas mãos e pés. No entanto, lembrem-se que elas estão fortemente armadas com alicates afiados! Mas não é só o perigo dos cortes que me causa desconforto. É que entrar no salão e fazer as unhas exige um aprendizado. Tem que saber a hora de molhar a ponta dos dedos, de deixar a mão na água, de tirar a mão, de esticar, de virar. E se você não faz isso nos momentos certos, elas te dão tapinhas, como se você fosse um cavalinho. As que não dão tapinhas, falam como se você tivesse uns cinco anos de idade. É uma situação muito humilhante não saber tirar a própria cutícula e ter que se submeter a esse bárbaro ritual. Por falar em cutículas, tente pedir para elas não tirarem as suas! O ar ofendido é o mesmo de um famoso chef de cuisine caso você ouse pedir para ele mudar a receita! Eu me sinto obrigada a discorrer longamente sobre os motivos que me fazem querer manter as pobres cutículas. Enquanto tento explicar com um tom de voz que pede desculpas em cada inflexão, elas fazem um olhar condescendente e indignado, como se o meu pedido fosse uma verdadeira afronta à arte da manicure. Tomando emprestada mais uma frase, dessa vez da Lucia Carvalho, o fato é que, sinceramente, não sabemos mais ser mulheres. Lucia se refere a um momento muito mais importante e sublime, a maternidade. Mas eu me vi nessa constatação, mesmo em situações mais prosaicas que a dela. Não sei ser o modelo de mulher que dá ordens firmes e seguras às faxineiras, que conhece os procedimentos do salão de beleza, da manicure, da depiladora. Até o quitandeiro consegue me fazer sentir uma verdadeira incapaz: é ele quem escolhe o mamão mais saudável, maduro e saboroso para o meu pétit déj. Antigamente, as mulheres tinham milhares de desvantagens, mas eram soberanas em diversos reinos: o do lar, o da moda, o da maternidade, o das convenções sociais. Elas eram educadas para transitar de forma segura nesses territórios. De alguma maneira, quando a batalha se dava em algum deles, a guerrilha feminina vencia. Existiam muitas armas psicológicas que podiam ser utilizadas nos limitados ambientes em que as mulheres atuavam com destreza. Hoje, tudo mudou. Podemos ser um sucesso no escritório e na sala de aula, mas quando trememos de medo da faxineira, transparece o fracasso. Parece que parte de nossa essência feminina se perdeu em todos esses anos de estudos e construção da carreira. Simone, desculpe retomar sua fala revolucionária para tratar de um assunto tão fútil mas, realmente, não se nasce mais mulher como antigamente. É preciso aprender a ser mulher. Duro vai ser encontrar um MBA que ensine. Adriana Baggio |
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