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Quarta-feira, 15/8/2001
Da decepção diante do escritor
Paulo Polzonoff Jr

Yara Mitsuishi

Mais uma vez tenho de me desculpar porque acaba de me acontecer algo que merece muito mais um texto do que a viagem do homem à Lua, coisa que eu pretendia escrever semana passada, quando o Jorge Amado morreu, ou a Seleção brasileira, texto que eu vinha ensaiando ontem, ou ainda Paris, como me pede encarecidamente um leitor que insiste em dizer que me odeia.

Acontece que eu acabei de conhecer um escritor.

Não é o primeiro. Até por trabalhar na área, conheço uma porção deles. E toda vez que me deparei com um escritor tive a nítida sensação de estar diante de uma fraude. Não uma fraude artística, veja bem; mas uma fraude pessoal. Um escritor, por melhor que seja, não vale um grama do que escreve.

Ano passado eu conheci José Saramago. Numa salinha na sede da Cia. das Letras, o escritor português respondia às perguntas com enfado. Éramos quatro jornalistas - e confesso que estava nervoso; não deveria, mas estava. Saramago foi burocrático, protocolar. Destilou seu pessimismo decorado, respondeu às perguntas com as mesmas palavras (globalização, esquerda, sociedade, coisa e tal) e foi embora. Quando ele saiu da sala, depois de uma assessora de imprensa ter praticamente nos enxotado, fiquei ali, no corredor, olhando o homem. Não o escritor, mas o homem. E o homem me pareceu o ser mais frágil e condenável do mundo. Condenável porque fingia uma força, um poder que na verdade não possuía. Isto porque, em dado momento, uma mulher, possivelmente uma editora, chegou para o português de Nobel na lapela com um livro na mão. Minguado, o volume era artesanal. Possivelmente feito num xerox ou numa impressora caseira. Escutei trechos da conversa dos dois. A mulher dizia a Saramago (lembre-se: esquerda, sociedade, globalização, justiça, igualdade...) que um escritor havia deixado ali para ele. Ele pegou, folheou e riu. Ela riu de volta. E ficaram tirando sarro do pobre-diabo que havia despendido seu tempo escrevendo o livrinho e - pior - que possivelmente havia lambido os pés da recepcionista para poder entregar o volume à mulher que dele agora debochava junto de um Nobel de Literatura, bastião das igualdades, o último dos socialistas. Ora, pois.

Até hoje, quando tive outra grande decepção, talvez maior porque mais lúcida (a cada ano que passa fico mais lúcido, é preciso dizer), havia conhecido outros escritores, geralmente da cena local. Cristóvão Tezza, por exemplo, escritor do ótimo Trapo, foi um grande professor na faculdade. Só que deu de achar que escrevia bem demais. Além disso, é um acadêmico (intelequitual, como o Millôr gosta de escrever e eu de plagiar), e acha que está acima de nós, pobres mortais. Outro é Miguel Sanches Neto, bom escritor e, até onde sei, boa gente. Possivelmente é honesto demais para ter reconhecimento como escritor pela corja toda. Fausto Wolff, da turma de Ziraldo, Jaguar & Cia, foi dos mais mau-caráteres que já encontrei. Marquei duas entrevistas com ele, quando o tal esteve por aqui para lançar seus livros, e nas duas vezes ele me deu os canos. Na primeira, chegou ao saguão do hotel bêbado como um gambá (o lugar-comum é proposital), olhou-me de cima a baixo, disse que iria para o quarto, simplesmente. Da segunda vez, desmarcou a entrevista dizendo estar com ressaca. E dias depois apareceu no Jô Soares dizendo que a imprensa não lhe dava espaço - reclamação típica de escritores. Conheci ainda José Castello, que me pareceu bastante inteligente, Cony, que concedeu ao Rascunho uma das piores entrevistas que aquele suplementou já publicou, com respostas absurdamente idiotas. E mais meia-dúzia de escritores locais.

Hoje, segunda-feira, quando escrevo esta coluna, conheci mais um escritor: Domingos Pellegrini. E só então tive a dimensão que é a decepção, para alguém que ama a literatura, de conhecer um escritor. O quanto me for possível, manter-me-ei (ah, não, mesóclise!) afastado deste bando. E aconselho ao leitor o mesmo.

Pellegrini ganhou dois prêmios Jabuti. É autor de dois ótimos romances, Terra Vermelha e O Caso da Chácara Chão, ambos publicados pela Record. Morador de Londrina, no norte do Paraná, é considerado assim um embaixador da terra-vermelha num estado em que quase tudo, em se tratando de cultura, é ditado por Curitiba. Aí, nada demais. Hoje, contudo, o homem apareceu na minha frente. Participaríamos de um bate-papo promovido pela operadora de telefonia local. Chegou com o nariz alto, como convém, e olhou a mim e a meu amigo, Rogério Pereira, editor do Rascunho, com ar de autoridade. Foi cobrando a publicação de algo seu no suplemento literário. Depois se retirou - talvez para que eu pudesse perceber que, conhecer um escritor, não é decepcionante somente pela figura do próprio, mas também pela figura daqueles que o rodeiam.

Neste caso, ver um escritor em Curitiba é imbatível. Aqui o público que o rodeia é simplesmente primário. Um bando de puxa-sacos intelectuais de enojar qualquer pessoa com dois neurônios. Afastou-se o Pellegrini e já uma mulher o puxou pela manga, dizendo que seu filho era estudante de jornalismo e dando dois livros para ele autografar. Detalhe: os dois livros estavam com etiquetas de biblioteca nas laterais. Pode? Em Curitiba, ao menos, pode. Então fomos encaminhados para o tal bate-papo que deveria girar em torno literatura paranaense. Girou em torno do vazio.

Pellegrini, o escritor reverenciado, dois Jabutis na cabeça, começou falando que havia tirado sua filha de uma escola particular para colocá-la nos bancos duros de uma pública, porque o ensino na pública era melhor. Como é rica a imaginação dele. Depois começou a indefectível babação de ovo. Disse que gostava muito de dois escritores paranaenses: Jamil Snege e Miguel Sanches Neto - que editou um dos livros de Pellegrini pela Imprensa Oficial.

Claro que nem eu nem meu amigo, Rogério Pereira, somos de ficar quietos diante desta demonstração absurda de rapapé. Muito mais o Rogério, que fala pelos cotovelos. Começou ele dizendo que a literatura paranaense era uma fraude, coisa e tal, até que citou o nome do Paulo Leminski. Silêncio na platéia. Deu para ouvir lá no fundo o som de uma loirinha respirando. Então se estava dizendo que Leminski era uma fraude?! Assim, na cara dura? Sim, com todas as letras: efe, erre, a, u, dê, e. Pellegrini pareceu, neste momento, aqueles mediadores de mesa-redonda: não, não, que é isso, deixa disso. E ficou fazendo elogios ao poetinha das araucárias. Neste momento, para ser sincero, eu já tinha desistido. À minha frente, três menininhas anotavam tudo em suas cadernetas. Estavam com o livro do escritor na mão, para ser autografado, claro. A grã-finagem da cidade compareceu também, e fazia cara de inteligente. Quando foi dito que o caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, era uma porcaria, houve mais consternação do público. Os estudantes se agitaram na cadeira. E então este cronista de nem tão parcas letras assim decidiu que era hora de se calar para ver a masturbação mútua entre platéia e escritor.

Pellegrini destilou toda sua capacidade diplomática. Falou bem do governador, do ministro, de Deus e do Diabo. Disse que era preciso incentivar as crianças a lerem - não me diga! Deu conselhos aos pais, dizendo que os pais têm que participar mais ativamente da vida dos filhos. Defendeu a literatura de entretenimento e a literatura autista com a mesma ênfase: nenhuma. Riu o tempo todo seu sorriso que não se compromete, que nada diz. E, no final, leu poemas de quinta categoria, com a participação do público, que obviamente se regozijou porque estavam na presença do ESCRITOR.

Saí rapidinho. Nem ia dar tchau para o homem. Não se trata de falta de educação; trata-se de uma tentativa meio idiota de manutenção do caráter. Não queria que aquele cara achasse que eu havia gostado de sua bazófia cheia de lugares-comum e otimismo barato. Apertou minha mão com o entusiasmo de uma velha moribunda e eu me fui. Antes, porém, vi-o ser rodeado pelas velhas curitibanas, que queriam falar com o ESCRITOR. E, de repente, tive ganas de jogas meus projetos de romance, arquivados em alguns neurônios protegidos do álcool, pelo bueiro.

Vendo aquela platéia babona, aquele ser cheio de vaidade a quem chamam de escritor, vendo a relação promíscua, mentirosa, afetada que há entre eles, compreendi um pouquinho da cultura brasileira e do porquê de seu estado de penúria. Por um momento, pensei nesta situação elevada ao cubo, seja numa apresentação do Caetano Veloso, seja numa votação da Academia Brasileira de Letras.

Aí, esqueci-me, para não ter de me lembrar, também, que talvez seja hora de se ir.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 15/8/2001

 

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