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Quinta-feira, 8/9/2005 Crônica do Quarto de Bagunça Ricardo de Mattos A figura do taubateano legítimo é indissociável do quarto de bagunça. Não há casa ou apartamento que não tenha reservado um canto onde o proprietário faça seu misto de depósito e museu particular. Tudo que ele julga poder aproveitar um dia é acumulado: tampas sem o vidro correspondente, vidros sem a tampa correspondente, pregos de diversos tamanhos e utilidade questionável — um saco de pregos para porteira guardado num apartamento? — caixas de todos os materiais e tamanhos possíveis, revistas — Manchete, Realidade, Enciclopédia Bloch de Cultura —, pedaços de cano e de ferro, arandelas, instrumentos musicais, livros, cadernos, madeirada, louça sanitária — geralmente defeituosa —, móveis desmontados, rádios e televisores antigos, panelas, garrafas de plástico ou vidro vazias, pneus, motores de carro, moto ou caminhão — o proprietário sequer dirige — além duma quantidade de produtos venenosos que nos remetem a Gosford Park. Se alguma coisa liga um taubateano a outro, é o quarto de bagunça. Das maiores casas às mais humildes, sem diferenciação de raça, cor, credo ou partido político, todas reservam-lhe seja um cômodo ou mais, seja um espaço debaixo da escada ou um canto da construção. No mínimo um armário embutido. E os donos atulham. Curioso notar que é sempre um do membros do casal quem se responsabiliza pela montoeira. O outro implica-se, ameaça jogar tudo fora, mas rende-se vez ou outra pedindo espaço entre a parafernália: arranja um canto "pra mim" guardar isso aqui aí. Alguns trancam suas preciosidades com extremo cuidado, pelo medo do cônjuge cumprir suas ameaças. Quando surpreendemos a porta aberta e o dono dentro, olhamos bastante para tentar adivinhar o motivo de tanto zelo. Aquele é o quartinho do Miranda, ninguém pode entrar lá sem ordem dele. Por vezes o mistério é tanto, que logo imaginamos um irmão louco escondido da sociedade por décadas e alimentado com papa de aveia. Há situações patológicas. O quarto de bagunça ocupou a toda a casa da minha avó paterna. É difícil localizá-la em meio àquela tralha toda. Ela já ficou horas caída entre a cama e o armário sem ninguém saber. Meu avô materno passou a vida em quartos de bagunça, mudando apenas o endereço. Uma de suas irmãs transformou o casarão de meus bisavôs num imenso depósito de caixotes de frutas misturados com galões d'água vazios e assombrações. Seu pai quem deu o exemplo. Durante certa época do século passado, houve aqui uma febre de construção do utópico moto-contínuo. Quando meu bisavô desistiu de construir o seu, desmontou tudo e empilhou o equipamento de qualquer maneira. Um primo, meu padrinho de batismo, mantém um quarto em cada imóvel de que é proprietário. Por isso em nossa casa minha mãe não admite desordem. Entretanto, ela é impotente perante a instituição e luta muito para não ser vencida. Apesar do seu esforço, temos quatro cômodos seriamente comprometidos, além de vários armários. Nada adianta. Estes quartos permitem a formação de um meio-ambiente com fauna, e às vezes flora, própria. O papel velho atrai as traças e baratas. Migalhas de comida trazem as formigas. Muitas pessoas parecem cutias, guardam montinhos de comida em vários lugares e esquecem. Logo chegam os roedores. Primeiro camundongos invisíveis, descobertos pelos estragos e pelas fezes. Depois ratos maiores e mais destrutivos. Se o lugar for discreto, as ratazanas ou quijaras vêm rebolando averiguar as futuras acomodações. Havendo quietude e caso o teto não tenha forro, um morcego ou outro apossa-se dum cantinho. As aves são mais raras, quando muito vemos o ninho temporário duma andorinha ou pardal. Se o quarto for mantido aberto, começam a aparecer gatos na casa e ninguém nunca sabe o motivo: aquele rajadão apareceu ontem aqui, é novo. Até a primeira gata ser descoberta com sua ninhada cega e inquieta, deitada sobre um ninho de roupas infantis desusadas. Quando um gambá estabelece-se, é a hora do vira-lata da casa ficar inquieto e querer invadir o entulho para caçá-lo. O coitado chora e treme de vontade de morder o animal só por ele percebido. Se bem que treme todo cão abaixo de certa altura. Desnecessário mencionar as lagartixas, mimetizadas, agressivas, falantes ainda por cima. A atração equivale, para as pulgas, ácaros e carrapatos, a um daqueles anúncios de apartamento que ocupam páginas duplas dos jornais. Na maior parte das vezes, quando falece o dono, estes quartos são inteiramente destinados ao lixo, ao fogo, ou às pessoas que recolhem material reaproveitável. Os móveis estão irremediavelmente comprometidos pelo caruncho e são quebrados nos joelhos ou com socos. Começam as disputas sucessórias: Agenor, a Marta pegou pr'ela aquele filtro d'água qu'ocê 'tava querendo. Se ela quiser ficar vai ter que dar metade do preço dele. Filhos, netos, sobrinhos e outros parentes são chamados para a empreitada. Encontram prateleiras encapadas com jornal amarelado e roto, com fotos da posse do general Figueiredo. Sacos plásticos dentro de sacos plásticos dentro de sacos plásticos numa dízima periódica inexplicável. Pequenos quadros de moldura vulgar e mensagens edificantes: "Eu, que reclamava de não ter sapatos, encontrei um homem que não tinha pés". Um calendário de 1.972 arquivado na mesma pasta da declaração de imposto sobre a renda de 1.968. Aparece o esqueleto do rato que um dia foi prensado entre a parede e um móvel, ou simplesmente morto de velhice após vida longa e prolífica. Uma caixinha de cartolina cuidadosamente protegida com papel de presente, mas nada contendo além de algodão. Sempre um gaiato faz alguma graça: aquele pacote maior deve ser a tia Nenê... Sabia que ela não tinha morrido! Tira ela de lá! Todo o conteúdo é removido para formação de outro depósito que um dia também será jogado fora. E assim desde que Jacques Félix recebeu a administração de certas terras da Condessa do Vimieiro. Das Coleções em Geral e Das Coleções de Cartões Postais em Particular Eu já quis colecionar selos. Comprei um álbum, freqüentei a agência do Correio, fiz pesquisas. Desanimei quando aprofundei-me nos detalhes: o selo de picote irregular vale mais que o de picote regular. O selo cujo desenho esteja ligeiramente fora de foco é mais importante para a filatelia que outro com a imagem perfeita. O selo no qual se usou cola amarela difere do outro com a mesma estampa e valor no qual se usou cola branca. Não vendo em que isto poderia contribuir para o progresso do pensamento humano, desisti. Juntei depois várias notas e moedas antigas. Arrependo-me, sim, de não ter cuidado melhor das moedas e ter estragado várias. Hoje nada coleciono além da National Geographic brasileira. Livros eu leio e organizo. Não coleciono o objeto, embora por vezes o bibliófilo dê algum palpite discreto — por isso a busca de autógrafos na FLIP. O mesmo ocorre com CDs. Compro-os para ouvir música e com o tempo percebo padrões: música barroca, sacra brasileira colonial, fados, etc. Não há propósito. Há dois tipos de coleções: as úteis e as inúteis. A segunda espécie predomina. É um absurdo o que vi em jornais e programas de televisão nestes anos todos. Coleções imensas de latinhas de cerveja ou de refrigerante. De um tipo exclusivo de boneca. De bandeirinhas e rótulos de garrafa de cachaça. Outro guardou tantas garrafas de líquido para embalsamar cadáveres que acabou por construir uma casa de vidro. Certo programa do Animal Planet mostrou um sujeito que colecionava tartaruguinhas de aquário com duas cabeças (!). Outro canal apresentou um norte-americano — para variar — que coleciona sacos para vômito fornecidos nos aviões. No dia em que meu objetivo de vida for reunir e catalogar sacos para vômito, castrem-me. Certas coleções podem ser úteis se houver intenção além da mera reunião. Uma coleção de antigos aparelhos de rádio pode revelar-se útil se o colecionador pretender doá-la para o museu. Há quem colecione aves e acabe interessando-se pela reprodução em cativeiro. Há uma finalidade atual e futura nestas empresas. Gerações futuras terão material para estudo da radiofonia e esforços individuais são importantes na preservação das espécies. Duvido que na futura década de sessenta deste século, alguém queira saber como é que se vomitava nos aviões de hoje. Todavia, sempre haverá uma tese de mestrado para contradizer-me: Abordagem Psico-semiótica da Sacodevomitologia — Uma Previsão de Rumos. Encontrei no quarto de bagunça de certo parente falecido um pacote cheio de cartões postais. Ninguém opôs-se a que eu tomasse-os para mim. Não me lembro o número exato, mas passa duma centena. Dependendo da cidade que visito, adquiro alguns sem compromisso. Guardo tudo no mesmo lugar e não me preocupo. Estes cartões surgiram com dupla função: postal e documental. A função documental perdeu-se com o desenvolvimento da fotografia, que cada vez registra mais o que se há para ver. Ninguém mais recorre a um cartão para saber como é o Taj Mahal, basta entrar numa banca de revista e procurar bem que ele acaba aparecendo. Entretanto no século XIX, quando surgiram os primeiros postais, a correspondência fazia-se acompanhar dum registro local. Prática imediatamente adotada: se visito a cidade de São Paulo, porque enviar para alguém um postal com a imagem do Cristo Redentor do Rio de Janeiro? Se percorro a Transiberiana, qual a justificativa de escrever uma mensagem no verso duma imagem do Alentejo? Também é curioso reparar que os cartões postais preservaram os últimos passos da gravura de divulgação e os primeiros da fotografia. Monumentos desenhados com bico-de-pena dividiram espaço com fotografias em preto e branco e estas mesmas serviram de base para aqueles. Logo surgem os primeiros ensaios coloridos. Hoje podemos descobrir um postal recente com o Museu do Ipiranga artisticamente desenhado, porém será mais fácil encontrar o mesmo edifício fotografado. Tenho em mãos o grande e vistoso livro-álbum Lembranças do Brasil — As Capitais Brasileiras Nos Cartões Postais e Álbuns de Lembranças, da autoria de João Emílio Gerodetti e Carlos Cornejo. Não são colecionadores, mas pesquisadores que visitaram coleções atrás de postais históricos de quase todas as capitais dos Estados brasileiros. Dividido por regiões, somente a Norte está desfalcada pela ausência do Acre, Amapá e Roraima — embora presente a cidade de "Manáos". Nas demais, há extras: Niterói e Petrópolis no capítulo do Rio de Janeiro, Ouro Preto no de Minas Gerais. Há textos introdutórios e legendas minuciosas acompanhando cada postal. Certos lugares nem existem mais, outros sofreram drástica alteração. Ver hoje um prédio histórico destacado pela função original é diferente de vê-lo em seu contexto, preservado num fragmento doutra época. Brasília, ao contrário, é mostrada em sua formação e dá certo engulho saber no que se transformou. Ricardo de Mattos |
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