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Quinta-feira, 1/9/2005 O lado bom do mensalão Adriana Baggio Nas eleições de 2002, eu morava em João Pessoa. Não cheguei a transferir meu título de eleitor para lá. Acho que era uma forma de manter um vínculo com Curitiba. Portanto, não votei. Mas nem por isso deixei de acompanhar bem de perto a euforia da eleição presidencial. A relação dos nordestinos com a política é muito diferente da que eu me acostumara até então. Aqui em Curitiba, me parece que somos mais distantes, mais independentes do governo. No Nordeste, não. A maioria das pessoas acompanha muito de perto o guia eleitoral (o programa eleitoral gratuito), conhece os candidatos e suas relações político-partidárias. No começo, me senti meio alienada. Depois, fui perceber que o interesse pelas eleições devia-se muito mais à dependência do poder público do que a uma atitude cidadã. É compreensível. O Nordeste, de forma geral, ainda é uma região desfavorecida economicamente. Existem poucos empregos na iniciativa privada. E tem também o fator cultural: a relação paternalista. As pessoas estão sempre em busca de alguém que cuide delas, que se responsabilize pelas suas vidas. Em uma cidade onde grande parte dos empregos está no funcionalismo público, a ponto de um atraso no pagamento dos salários da prefeitura mexer com o comércio da cidade, é normal que se acompanhe as eleições com muito mais interesse. O grau de importância da política para a economia local estende-se também ao mercado publicitário de João Pessoa. As agências, fornecedores e veículos de comunicação aguardam ansiosamente as eleições para ter um incremento nas verbas, normalmente escassas. Os profissionais de mercados mais saturados, como os do eixo Rio-São Paulo, descobriram essa espécie de "mina de ouro". A equipe de Duda Mendonça atuou nas eleições majoritárias da Paraíba em 1998 e acabou sendo responsável pela profissionalização desse segmento. Muitos profissionais que chegaram na cidade para esse trabalho permaneceram lá, desenvolvendo a comunicação política em outras agências depois que a equipe de Duda levantou acampamento. Por conta desse histórico local, ser publicitária em João Pessoa durante as eleições de 2002 permitiu uma visão da campanha política de um outro ângulo. Muitas conversas com os colegas na hora do cafezinho giravam em torno do marketing político. Acompanhei o programa eleitoral do PT com um olho no conteúdo e outro na forma. Mesmo sem um profundo conhecimento de política, foi fácil perceber como o PT suavizou seu discurso para tornar-se aceitável a uma parcela de eleitores que não votaria nunca em um candidato como o Lula. No entanto, só um "redirecionamento" de propostas não seria suficiente para provocar essa percepção do público em geral. Nem todo mundo consegue perceber no conteúdo a ideologia ou a linha que o candidato pretende adotar. E aí entra o fator "forma". A estética da campanha presidencial foi responsável por mostrar um PT mais suave e um Lula mais sofisticado. Talvez essa maquiagem tenha gerado desconfiança na maioria dos tradicionais partidários do PT, mas a possibilidade de um homem como Lula, representante de outra camada social, estar no poder, deve ter neutralizado o estranhamento. Posicionar Lula adequadamente nesses dois segmentos - contra e a favor - foi mérito, em grande parte, da retórica do discurso da campanha eleitoral. Gato escaldado Não me considero visionária, mas nunca imaginei que um Lula pudesse mudar tudo drasticamente. Se eu tivesse votado, meu voto seria para ele. Acreditava (e ainda acredito) na necessidade de mudança, de um outro ponto de vista, de uma quebra no revezamento que vinha sendo feito no principal cargo do Poder Executivo nacional. Mas é só ter bom senso para perceber que a eleição foi ganha às custas de um pacto com outras instâncias. Para alguns, uma espécie de "pacto com o diabo". Portanto, não representou uma mudança efetiva, o que se comprova com a manutenção dos vícios da política brasileira. Hoje em dia é fácil dizer "eu avisei". Arrisco-me a estar entre esses ao afirmar que não me empolguei muito, na época, com a idéia do PT no poder. Talvez por saber que não ia votar, ou por conhecer os mecanismos da publicidade eleitoral, quem sabe por ceticismo. No entanto, nunca imaginei que as coisas chegassem ao ponto em que estão agora. Por princípio, não acredito em políticos, pedintes e vendedores de carro, mesmo correndo o risco de ser injusta com alguns deles. Esse ceticismo me impede de acreditar que com o PT - ou com qualquer outro partido - a corrupção não aconteceria. O escândalo do "mensalão", do dinheiro em malas e cuecas, das orgias com políticos, não surpreende muito. Toda essa história é a mesma de sempre. A diferença é que quem atirava pedra agora tem o telhado de vidro. E que o que antes era abafado agora é exposto. Mas existem outros aspectos nessa história que merecem ser abordados. Um deles é a ingenuidade do PT. Existem pessoas inteligentes no partido. Será que ninguém previu isso? Será que não imaginaram que essas coisas poderiam vir à tona? O gatilho dos acontecimentos é tradicional: a parte de um esquema sente-se passada para trás e resolve entregar tudo. "Eu vou para a lama, mas vocês vão comigo". Nada de cidadania ou de sentimento de culpa. É puro e simples rancor pela traição. Tem uma frase de Shakespeare que explica isso: não há estrago na natureza que se compare à destruição causada pela fúria de uma mulher desprezada. Neste caso, não é uma mulher, mas o deputado Roberto Jefferson, que encarna a vingança por ter sido "desprezado" pelos seus. Um segundo aspecto digno de análise é o comportamento de Fernanda Karina Somaggio, secretária de Marcos Valério e uma peça importante nas revelações. O papel que ela escolheu para representar nesse caso reflete um comportamento geral (e generalizado, evidentemente) do brasileiro. Ficou claro que a motivação dela foi a autopromoção e não o compromisso com a verdade ou o desejo de contribuir para a luta contra a corrupção no país. E não é assim que muita gente se relaciona com a política? O apoio ou voto a algum político ou partido obedece a critérios de vantagem pessoal e não à escolha de alguém que possa prover o bem comum. Além da questão de caráter, vamos e venhamos, a mulher não tem os atributos que a qualificam para uma possível carreira de "modelo", muito menos de parlamentar. Na verdade, ao explorar seu papel e procurar capitalizar a fama para conseguir o dinheiro que iria bancar sua candidatura, Fernanda Karina só reforça a imagem que se tem dos políticos e da política brasileira. As profissões do escândalo Por falar em "secretária", e o papel das "profissões" nesta história toda? O jornalismo tem por regra, eu imagino, informar a ocupação e idade dos sujeitos das reportagens, matérias, entrevistas. É uma forma de fazer um gancho com a realidade, contextualizar o leitor, dar credibilidade (ou não) ao que a pessoa diz. Nesse caso de "mensalão", malas de dinheiro e corrupção, a repetição constante na mídia da atividade dos envolvidos, gerou uma significação maior para cada uma dessas profissões. Como o assunto é bastante negativo, a coisa respingou para a categoria toda, evidentemente. A mídia de massa tem esse poder de generalizar, padronizar e nivelar os assuntos, eliminando as diferenças, as peculiaridades. E quando isso acontece com profissões estigmatizadas, a força da generalização é ainda maior, passa facilmente por verdade absoluta. Políticos carregam o estigma de ladrões. Secretárias, de mulheres de vida fácil. Publicitários, de manipuladores trapaceiros. Apesar do meu ceticismo, acho que até mesmo alguns políticos escapam dessa generalização. Mas concordo com o que o Luiz Geraldo Mazza, raposa velha do jornalismo paranaense, diz de vez em quando no rádio: "ética e política são duas coisas incompatíveis. Não é possível fazer política e ser ético ao mesmo tempo." Secretárias, bem, as secretárias... Li uma matéria da Folha de São Paulo, eu acho (estava em um mural), que falava sobre o problema enfrentado pela categoria por causa das estripulias de Fernanda Karina. Dirigentes das associações profissionais reclamam que as secretárias lutam para não serem confundidas com amantes dos chefes, babás dos filhos dos chefes, empregadas domésticas, etc. Daí vem uma "secretária" e: a) revela aspectos sigilosos de sua relação profissional (mesmo que alguns achem que o motivo justifica) e b) se propõe a fazer fotos nua para descolar uma grana. Digamos que isso cai bem para uma modelo, uma atriz, uma artista (alguém que vive de sua imagem física), mas não para uma secretária. Essas profissionais batalham para serem reconhecidas como o que verdadeiramente são: assessoras executivas que auxiliam o chefe (ou a chefe) a realizar seu trabalho com mais eficácia. E aí vem uma delas e estraga tudo. E quanto aos publicitários, coitados! Nem ganhamos tanto quanto nos invejam e nem fazemos tão mal quanto nos criticam. Na parcela dos coitados, evidentemente, não se encaixam muitos de nossos colegas. Você pode, sim, ganhar muito dinheiro como publicitário. Da mesma forma como em qualquer profissão. Mas a grande maioria, uns 95%, rala e ganha mal tanto quanto em outras atividades. A grande maioria, também, não desvia dinheiro para partidos políticos e nem se serve da própria empresa para operar a máquina da corrupção. Por isso, a categoria começou a se incomodar com a repetição do epíteto "publicitário" antes do nome do Marcos Valério. Você acha que uma pessoa que é dona de uma clínica ou de um hospital, mas não realiza atividades na área de saúde e nem é formada em medicina, pode ser chamada de "médica"? Não pode, né? No entanto, uma pessoa que não fez faculdade de publicidade, não atua como publicitário, apenas é dono de uma agência de publicidade, tem sido considerado "publicitário". Para quem tem noção destes detalhes, a incorreção é clara. Já para o público em geral, um Marcos Valério só reforça a imagem de "lobo mau" que o publicitário tem. Afinal, faz parte do comportamento do brasileiro colocar a responsabilidade pelos seus atos em tudo, menos nele próprio. Assim, quando o indivíduo se afoga nas parcelas do cartão de crédito, a culpa pelo consumo desenfreado é da publicidade, e não da falta de controle, financeiro ou emocional, que porventura ele tenha. E quando o deputado em quem ele votou, para ver se conseguia alguma coisa em troca, se revela um corrupto, a culpa é da "política", e não dele, que fez do voto moeda de troca para interesses pessoais. Impeachment ou não-impeachment ? Apesar de tudo, sou contra a saída de Lula. Antes um Luiz Inácio enfraquecido, com um governo controlado, do que Severino Cavalcanti como presidente. Aliás, ele me lembra muito o Frankstein. Calma, não pela aparência. Mas o Severino é um "monstro" criado para vencer uma disputa política no Congresso. Não se levou em conta as qualificações necessárias para o cargo. E agora seus criadores perderam o controle. Até a oposição acredita que ter Severino Cavalcanti como presidente é um alto preço a se pagar pela derrota de Lula. FHC também não quer o impeachment de Lula. O jornalista Jorge Moreno conta em seu blog que o ex-presidente acha que o PT só perdeu as eleições em 1994 porque ajudou a derrubar Collor. Será que tem a ver com essa mania brasileira de mitologizar seus anti-heróis? Os que punem os malvados passam automaticamente para o lado dos inimigos. Os malvados punidos viram automaticamente bonzinhos. Vai entender. Aprendizado Os tucanos aprenderam com as experiências. O PT passou anos atuando em governos estaduais e municipais, no Congresso Nacional, nos movimentos sindicais e criticando o Poder Executivo. Mas parece não ter aprendido o suficiente - comete os mesmos erros que apontava nos outros. Claro, mudar de pedra para vidraça tem dessas coisas. Mas será que ninguém se preparou para isso? Nós também deveríamos tentar aprender. Precisamos perceber que somos indiretamente responsáveis pelo que está acontecendo. Talvez a racionalização não seja o caminho, e sim a ameaça das conseqüências. Em termos de comportamento, não evoluímos muito em relação às primeiras espécies de homo... Enquanto não sofremos diretamente, nossa tolerância é elástica. Malcom Gladwell fala um pouco disso em seu livro O ponto de desequilíbrio, sobre o qual já comentei aqui. As pessoas tendem a um comportamento que esteja de acordo com seus interesses individuais. Essa atitude só é reprimida quando envolve punição. É por isso que a gente pára no sinal vermelho, mesmo estando com pressa. Se ultrapassamos o sinal, recebemos a punição (a multa do guarda ou até mesmo uma batida). Quem tem sofrido mais com a corrupção é a parcela da população diretamente afetada pelo desvio de dinheiro destinado à saúde pública, à educação, à segurança. As classes média e alta só agora começam a fazer relação entre a política e as condições da sociedade. Mesmo não querendo enxergar, tem sido impossível ignorar a relação entre violência e corrupção, por exemplo. Ainda se insiste em construir grades - comportamento focado na individualidade - ao invés de procurar as raízes do problema para tentar solucioná-lo. Comecei essa reflexão comparando a relação que as pessoas do Sul e do Nordeste têm com a política, porque vivenciei essas duas realidades. Apesar das diferenças, em um ponto somos todos iguais. Acredito que a gente precisa acompanhar tudo mais de perto, que precisamos nos educar politicamente. Faço uma analogia com a publicidade até porque os temas andam muito interligados. Hoje, os anunciantes falam de forma diferente com as pessoas. Aprendemos as estratégias, as técnicas, a retórica publicitária, e passamos a cobrar mais honestidade e respeito nas suas mensagens. Também podemos aprender a retórica política, sua estrutura de funcionamento, para tentar eleger pessoas que atendam aos nossos interesses coletivos. O ceticismo me faz desconfiar de punições reais nesse processo todo. Mas espero que, em termos de aprendizado, a sociedade tenha mais sucesso. E se isso acontecer, até o "mensalão" vai ter um lado bom. Adriana Baggio |
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