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Quarta-feira, 21/9/2005
Rindo de nossa própria miséria
Guilherme Conte

Foto: Luis Doroneto

Há certos espetáculos que pegam no fígado. Te deixam com aquela sensação de incômodo, um certo embrulho no estômago. O aplauso é constrangido, você ainda está atônito com o que acabou de assistir. É o caso da excelente Prego na testa, de Eric Bogosian, com o parlapatão Hugo Possolo, em cartaz no SESC Belenzinho até o dia 2 de outubro. A direção, a tradução e a adaptação ficam por conta de Aimar Labaki.

É um desfile em ritmo frenético de nove personagens. Entre eles, um mendigo, um diretor de filmes pornográficos, um morador de condomínio feliz com sua nova churrasqueira e um ator "alternativo". Pessoas comuns, que poderiam ser seus vizinhos, o mendigo que fala alto no metrô, seu tio ou seu corretor de seguros. Poderia ser você. Em comum, o desespero cotidiano de cada um na vida nas grandes cidades. Um olhar ácido, de precisão cirúrgica.

O texto de Bogosian (cujas peças Talk Radio e Suburbia, que teve boa montagem por aqui, já renderam ótimos filmes), de 1994, é de uma violência aterradora. Provoca aquele riso nervoso, que cala fundo em nossas pequenezas. E ele ganha nova dimensão na tradução e na adaptação de Labaki, inteligentes e perspicazes. A atualidade e a sensibilidade para as problemáticas contemporâneas - como a paranóia em relação à violência, a filantropia e a ética - são incontestáveis.

"Ele não só encontra ressonâncias na atual situação política que vivemos, mas é toda uma crítica da classe média", diz Possolo. "Que rumos nós queremos tomar?"

O talento, a versatilidade e a técnica apuradíssima de Possolo são notáveis. Não é à toa que a companhia Parlapatões, Patifes e Paspalhões, capitaneada por ele, tornou-se referência em humor inteligente e bem feito. E esse é - frisa Possolo - um espetáculo dos Parlapatões, embora solo. "É uma vertente não menos importante, mas pouco explorada por nós", explica.

Foto: Luis Doroneto

O desafio, ele conta, foi conduzir o espetáculo sem trazer o público ao palco. "Sempre considerei o teatro um jogo, no sentido do improviso, da brincadeira, do humor. A grande dificuldade, aqui, foi jogar aparentemente sozinho". Mas só aparentemente, uma vez que a platéia reage num interessante contraponto entre o riso e o silêncio. O silêncio angustiado, do tapa recebido.

E é mais por este caminho, o da angústia, que o público tem recebido Prego na testa. É a prova de que o brilhante texto, nas mãos de dois hábeis artistas, atingiu seu objetivo. A platéia volta para casa cheia de interrogações na cabeça.

E o que pensa um comediante sobre o poder do humor como elemento questionador? "Nem todo riso é transformador. Deve-se tomar muito cuidado para não se tornar um mero reforço de preconceitos. Mas eu acredito e aposto no riso transformador."

Nada como uma boa dose de ironia precisa para percebermos o quanto ridículos e reacionários podemos ser em nosso dia-a-dia. Com as feridas expostas, saímos do espetáculo bambos, algo desnorteados. Com um prego bem no meio da testa.

Para ir além
Prego na testa - SESC Belenzinho - Av. Doutor Álvaro Ramos, 991 - Belenzinho - Sexta, 21h; sábado e domingo, 20h - R$ 15,00 - Até 2/10.

Sangue na Barbearia (foto: Gal Oppido)

Pretensão trôpega

É difícil fazer bom teatro, especialmente com textos complicados. Há uma série de armadilhas que se impõem ao diretor e aos atores que podem tirar o foco de um espetáculo. A pretensão filosófica pode acabar suplantando a própria mensagem - é desse mal que padece Sangue na Barbearia. Com direção e atuação de Darson Ribeiro, que divide o palco com Antonio Petrin, a peça segue em cartaz no auditório do SESC Pinheiros até 1º de outubro.

Inspirada em dois textos argentinos - Dizer Sim (1981), de Griselda Gambaro, e O Acompanhamento (1988), de Carlos Gorostiza; ambos tiveram dores de cabeça com a ditadura -, a peça levanta uma série de questionamentos existencialistas. Ela se divide em dois atos. No primeiro, Tuco (Ribeiro) cria uma série de barreiras entre ele e o mundo para perseguir o objetivo de ser ator. Enclausurado em um espaço difuso (uma barbearia, um sótão?), recebe a visita do velho amigo Zé (Petrin). Ambos se questionam em diálogos cortantes.

No segundo ato, somos transportados até a barbearia de Zé, que recebe um cliente. Há uma inversão, na qual o barbeiro obriga o cliente a lhe fazer a barba. Os papéis se confundem em meio a uma atmosfera opressiva, com certa violência latente.

É no questionamento levantado que a peça perde o pé. Ela exagera no simbolismo, nos diálogos repetidos, esbarrando por vezes no nonsense gratuito. Pontos instigantes são sugeridos mas não se desenvolvem, esgotam-se no ensaio. Ao querer segurar muita coisa, as possibilidades escapam por entre os dedos.

A atuação de Ribeiro - melhor no segundo ato - é fraca. As frases soam artificiais, truncadas. Petrin, aqui em papéis ingratos, sai-se melhor. Deixa, porém, muito a desejar frente a grandes atuações que já desempenhou, como no recente Barrela, de Plínio Marcos.

A direção, também de Ribeiro (que também dirigiu As mentiras que os homens contam), em alguns momentos é confusa, com opções que dificultam a fluidez. Destaque para o belo e inteligente cenário de Ulisses Cohn, que ajuda muito na caracterização da atmosfera, e para a iluminação correta de Mirella Brandi. E há uma canção inédita de Ney Matogrosso, que mesmo não sendo uma de suas melhores encaixa-se muito bem.

Sai-se do teatro com a sensação de que a peça não disse a que veio.

Para ir além
Sangue na Barbearia - Auditório do SESC Pinheiros - Rua Paes Leme, 195 - Pinheiros - Sexta, 20h; sábado, 19h - R$ 15,00 - (11) 3095-9400 - Até 1º/10.

Notas

* Uma boa oportunidade para conhecer o bom trabalho da jovem dramaturgia brasileira é a mostra da Cia. dos Dramaturgos, em cartaz no Espaço Cênico Ademar Guerra, no Centro Cultural São Paulo (R. Vergueiro, 1000 / Paraíso / (11) 3277-3611 / Até 9/10). A companhia é formada por jovens autores que participaram de um workshop de dramaturgia promovido pela Royal Court Theatre, em 2003. Eles se reuniram, depois de voltarem, sob a tutela de Silvana Garcia, coordenadora do projeto no Brasil, e aí nasceu o grupo. Estão sendo montados quatro textos: O Mata Burro, de Fabio Torres, A Degola, de Paula Chagas, Mais Um, de Cássio Pires, e [ainda sem título], de Ana Roxo. São textos instigantes, com criações cênicas interessantes (A Degola, por exemplo, passa-se toda dentro de uma sala armada no centro do palco). Mais informações no blog da companhia.

* Quem perdeu a temporada no SESC Belenzinho tem a chance de ver, agora no Teatro Vivo, a boa Baque, do norte-americano Neil LaBute (Av. Dr. Chucri Zaidan, 860 - Morumbi - Sexta, 21h30; Sábado, 21h; Domingo, 18h - R$ 40,00 - (11) 3188-4147 - Até 30/10). LaBute é mais conhecido por estas bandas por seu ótimo filme Na companhia de homens. A peça - que tem no elenco os irmãos Débora e Carlos Evelyn e o ótimo Emilio de Mello - traz três histórias de violência à flor da pele que bebem na fonte das tragédias gregas. São três verdadeiros baques que sacodem o espectador e o fazem refletir sobre a violência na sociedade contemporânea, a culpa, a crueldade e a própria natureza humana. A direção, competente, é de Monique Gardenberg, responsável pelo belíssimo Os Sete Afluentes do Rio Ota, que logo deve voltar aos palcos. Vale a pena conferir. Mas vá preparado: não é uma peça fácil de ser engolida.

* Acontece, no Teatro Folha, o Nunca se Sábado... (Shopping Pátio Higienópolis - Av. Higienópolis, 618, piso 2 - Sábados, meia-noite - R$ 20,00 - (11) 3823-2323 - Até 17/12). É um projeto interessante, com uma fórmula simples: a cada semana três companhias humorísticas se apresentam, ciceroneadas por personalidades diversas, como Dalton Vigh, Bárbara Paz e Débora Evelyn. Ao final, o público avalia o que viu e determina a composição do espetáculo da semana seguinte. Os convidados trabalham em cima de textos de quatro autores: Fabio Torres, Laert Sarrumor, Luiz Henrique Romagnoli e Mario Viana. Já entre as companhias participantes, com altos e baixos, estão grupos do calibre dos Parlapatões, Cia. de Comédia Os Melhores do Mundo e o Pessoal do Vacalhau. Um programa diferente para o horário, boa pedida para quem gosta de teatro humorístico.

Guilherme Conte
São Paulo, 21/9/2005

 

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