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Sexta-feira, 16/9/2005
Outro mundo
Eduardo Carvalho

Ninguém sabe mais onde fica a Moóca. Alguém soube, um dia? Como pego a Radial Leste, mesmo? É quase outra cidade. Outro mundo! E esse Teatro Arthur Azevedo, hein - alguém já ouviu falar? Um teatro que não vende café no intervalo porque é da Prefeitura! Vai entender... Isso não é da minha época! Ainda é São Paulo, lá? E em que ano estamos - 75 ou 2005? Tem até pipoqueiro na porta! Mas onde estaciono minha camionete?

Não é o pessoal dos Jardins que se acha bacana? Que se acha cosmopolita? Que se acha demais? Então - o que é bacana? O que é cosmopolita? O que é demais? Vai, me diga. Fantasma da Ópera? Caipirinha de lima da Pérsia? Ostra na calçada? Não, não! Que horror! Então gostoso é passear na Benedito Calixto, tranqüilo, no sábado. Ai, aquela feirinha... tem tanta coisa ótima, escondidinha... Adoro! É isso?!

Não consigo entender São Paulo. Fico até tonto. Como pode? Passei sábado e domingo aqui. Nunca tinha ido nessa feira da Benedito. Alguém acha graça? Uma coisa é coisa velha e barata. Outra coisa é coisa boa. É difícil elas coincidirem e serem... a mesma coisa. Tem gente que acha que coisa velha e barata é... raridade! Onde?! Onde?! Só vi bobagens. E aqueles livros? Quem compra? Nada legível. Nada nem um pouco interessante. Coisa de... coisa de intelectual. Só intelectual gosta de coisa velha e barata - e não liga para coisa boa...

E intelectual vai à Moóca? É longe, né?! A Moóca é meio... meio... Pra ver teatro? Teatro?! Intelectual quer dar aula de teatro! Intelectual ser jovem! E... e usar rabinho! Intelectual quer dar aula no Santa Cruz, no Clube Pinheiros... e ser amigo das menininhas! E jovem vai no teatro só pra ver Os Sertões, entende? Os Sertões! O interessante é aquela galera toda pulando pelada, chacoalhando tudo! O Zé tem cada sacada! Um... um gênio!

E sair da Vila pra quê? Pra quê, né? Ou dos Jardins? Com Paulo Autran aqui do lado?! Ninguém sai. A gente precisa parecer cosmopolita ou intelectual. Com quem eu vou conversar sobre... sobre... Bernard o quê, mesmo? Ah? Shaw? Estranho... devo ter ouvido falar... mas... é tanta coisa! Até a gente esquece, né?

É...

Falando sério: Major Bárbara deve ter sido o melhor programa de São Paulo nas últimas semanas. O Grupo Tapa e seu diretor, Eduardo Tolentino, merecem todos os prêmios culturais do mundo. Não deve ser fácil. Já é difícil selecionar os atores. Eduardo Tolentino acertou em todos. As atuações são impecáveis. Onde estava tanto talento? Para onde vai, depois que a peça sai de cartaz?

Sinceramente, fiquei um pouco perdido quando descobri - e demorei para descobrir - que estavam encenando Major Bárbara em São Paulo. Não reparei se saiu alguma coisa nos jornais. Se saiu, foi quase nada. E talvez eu não acreditaria. Acreditei vendo. Por 10,00 reais. Parece piada. A vontade é de pagar mais. Muito mais. Talvez não seja permitido, claro: o teatro é da Prefeitura.

Eu não deveria me espantar com essas coisas. Deveria assistir a peça e comentá-la apropriadamente. Mas acho que todo esse entorno - do teatro sem café, do público indefinido, do preço da entrada, do encanto simples da montagem - foi quase mais impressionante, para mim, do que a própria peça. Talvez eu esteja com uma visão distorcida do ambiente que uma montagem de Shaw merece. Prefiro me consolar, de qualquer forma, com o próprio Shaw: "Só a classe média se choca quando descobre que há maldade no mundo". Saí da Mooca e voltei para jantar nos Jardins.

Cronistas para os normais

Faz falta um cronista que escreva bem sobre a vida em São Paulo. Alguém que não tenha cotidiano de escritor e escreva decentemente. Sei que é difícil encontrar. Talvez o Ricardo Freire seja o mais adequado. Seria alguém que freqüente clubes e academias, bares e restaurantes, estilistas e livrarias, escritórios e igrejas, praças e shoppings. Eu acho que tem tanta coisa curiosa acontecendo nesses lugares que não entendo o que prende um escritor em casa.

Seria uma novidade se esse escritor entendesse o seguinte. O turismo mais original, hoje em dia, não é mais o geográfico nem o social. Não é novidade circular entre lugares e classes sociais. Eu posso ler um jornalista de qualquer lugar do mundo publicando em inglês sobre a vida em Burundi. E só existem - por mais fundo ou alto que você vá - umas três classes sociais. Agora, o interessante - o bacana mesmo - é almoçar no Leopoldina e jantar na Vila Madalena. É assistir ao show da Igreja Renascer no Pacaembu e depois pegar a missa na São José. É jogar uma sinuca no Clube Pinheiros e depois no Clube Indiano. Esses cronistas precisam parar de jantar nos mesmos lugares e conversar com as mesmas pessoas. Escrever exige trabalho de campo.

E trabalho de campo de escritor não é ir ao bar e conversar com outros escritores - nem dar aulas na faculdade nem participar de feiras do livro. Trabalho de campo de escritor é ir aonde outros escritores não vão - para depois escrever sobre o que outros escritores não escrevem. Repare no que está acontecendo. Gente que não tem o menor talento para literatura está dominando as livrarias com tranqueiras impressas só porque são escritas sobre a vida de... gente normal. E a vida dessas pessoas supostamente normais está sendo registrada - e comentada, digamos, com certa autoridade literária - por gente que não sabe escrever. Os verdadeiros escritores de São Paulo - se ainda existem - estão desperdiçando a chance de escrever sobre uma época: uma época muito mais interessante do que eles acham que é.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 16/9/2005

 

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