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Quarta-feira, 28/9/2005 O país dos imbecis Ana Elisa Ribeiro Nós temos, pelo menos, duas opções. E a decisão não é fácil. Uma é escrever sobre a mesmice das coisas ruins. Daquilo que não muda e não deixa de ser o que é nunca. E que mantém o status do Brasil como país do "jeitinho", no pior sentido. O país onde quem manda são esses tipinhos que a gente vê pela tevê o dia inteiro. Pois bem. A outra opção é escrever sobre as coisas boas. Aquelas que dão algum alento a quem tem esperança de educar crianças para serem diferentes de seus pais. Crianças que poderão mudar algo, já que esta geração que tem em média 30 anos não tem feito grande coisa. E então pode-se falar em pessoas e coisas e gestos que mudam uma coisinha aqui, outra ali, embora não sejam em quantitade suficiente para mudar o todo. E escrever sobre isso também é contribuir com um naco de mudança. E torcer para que um dia ele seja grande e cheio de bons efeitos. Para exemplificar, fico pensando em como ser bandido, ladrão ou traficante, estuprador e terrorista dá muito mais cartaz do que ser outra coisa neste país. Os meninos e meninas, que acham que ser famoso é o ó, devem ficar loucos por um espacinho na capa das revistas de grande circulação. E pensam: Fernandinho Beira Mar, Bin Laden, Roberto Jefferson, aquele maluco do Parque de SP e mais uma lista imensa de monstrengos estão lá, às vezes em seu melhor ângulo. A secretária da bandalheira pode ganhar uma grana porque foi convidada para posar nua. Vixe! É muita chance boa, minha gente. Quem não quer? Uma graninha pra quitar o apê financiado, trocar o carro velho ou parar de pagar aluguel. Coisa que os trouxas de plantão fazem há muito tempo neste país em que os valores estão todos ao avesso. Valores? Hein? Professor, então, é a raça mais mal-amada e ferrada que existe. Vale muito mais ser jogador de futebol do que dar aulas pros filhos dos outros. Pai e mãe não têm tempo para dar educação, deixa com a tia. Mas olha, ouvi um guri dizer: quero ser jogador porque fica rico e nem precisa estudar esta chatice. Inteligente o garoto. Até eu, pô. Aí, dia desses, conversava eu com um professor de Economia, desses que têm MBA e andam de terno de marca, e ele me contava como o capitalismo foi a melhor invenção do homem. E eu ouvia com ouvidos moucos. Daí, ele me perguntou se eu era "só" professora. Eu disse que sim, e ponto. E ele me disse que também era executivo de banco. Nossa, quanta importância! Por isso o terno bacana, né? É. Mas aí, pra não ficar muito feio, eu disse a ele que, até janeiro deste ano, eu era editora, numa editora de livros jurídicos. Ele me perguntou por que eu havia saído. Eu abri uma lista razoável de motivos, entre eles: preconceito contra minha gravidez, desvio de cargo, queda de salário quando voltei da licença, registro ilegal, etc. E disse a ele que o dono da empresa estava rico, mas não sabia nada sobre o produto que fazia. Se fossem sapatos ou cimento, daria na mesma. Meu colega professor embecado fez cara de conteúdo. Ah, conheço a editora. E eu completei: tomei nojo do direito. Vi cada coisa naqueles bastidores! Fora o fato de que o dono diz ao autor que vai fazer tiragem de 2000 exemplares e faz de 5000. Assim, até eu fico rica! Roubo! Isso é ser picareta, ladrão, um pulha. Mas o professor, digno, do alto de seu Versace, perguntou: "Mas ele não está rico? Então..." E completou com ar magistral: "Eu, lá no banco, falo que vou cobrar 1,5% de juros e cobro 1,6%. Ninguém nota e fica tudo bem. É assim, minha querida". E eu me senti a mulher mais burra do mundo. Meu pai já dizia, mais pobre do que nunca: "Minha filha, neste país, quem trabalha honestamente não ganha dinheiro". Dizia isso como quem me preparava para alguma coisa. E aquele professor, tão bem-vestido, saía da sala para dar aulas a turmas cheias. E eu fiquei uns minutos bebendo água e pensando em como devo estar errada. Ué, se posso roubar e está tudo bem, só não tenho dinheito porque não quero. Não é assim? Vejam: numa escala bem menor, são todos esses ladrões que passeiam por Brasília. E se todos pensam assim, em esferas fora da política, a coisa não anda nunca e não mudará jamais. O professor ainda disse que mora num apartamento de 1 milhão e que tem gente que se contenta com menos. Falou, com ar de pena: "uma coisinha mais simples". E eu pensei em pedir-lhe esmola. Ou, talvez, em pegá-lo pela mão, colocar no meu carro velho (forrar o banco antes, com seda, claro) e levá-lo para passear pelas esquinas da cidade. Mostrar os bairros da zona norte, que nem devem fazer parte do mapa que ele usa. Umas avenidas feias, uns meninos barrigudos trabalhando nos sinais de trânsito. Talvez inseri-lo numa escola estadual para ele ver o que é um ensino de merda, um aluno ferrado e um professor mais ferrado ainda. Mas depois pensei que não adiantaria. Ele tem olhos, sim, claro. Tem olhos azuis! E boa visão. Não usa óculos e nem precisa de lupa. O que ele não tem é outra visão. Então não adianta mostrar a cidade. As lentes que o fazem enxergar são seletivas, hipócritas e conservadoras. Então, voltei para casa e me preparei para outro dia de aula, "apenas" como professora, para ver se consigo quitar a "coisinha simples" onde moro, trocar minha carroça. Mas magoada e muito sem esperança. Você tem valor quando você tem dinheiro. E você tem dinheiro quando você não tem a menor noção de escrúpulo. E ainda corre o risco de ficar famoso. É assim? Mas o que que eu vou dizer pro meu filho quando ele me perguntar o que é ética? E que desculpa vou dar quando ele questionar por que é que a gente não é rico? Vou dizer que é porque somos honestos. E talvez ele me chame de ingênua, se não de imbecil. E eu torço para que ele não seja aluno deste arrumado professor de Economia. Como vêem, acabei fazendo a primeira opção daquelas que mencionei no primeiro parágrafo. Uma lástima. Prometo que, na próxima coluna, vou falar de poesia. Se nenhuma calamidade ética me assolar até lá. Ou se eu tirar estas minhas lentes de idiota. Ou se alguém me convidar para sair pelada numa revista. Ou se o leitor do Digestivo também achar que aquele professor é o que há e der nota 10 pra ele na avaliação institucional. Ana Elisa Ribeiro |
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