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Sexta-feira, 17/8/2001
Jogando uma pedra no poço sem fundo
Alexandre Soares Silva

Lancei um livro no ano passado. Não importa qual. Meu ponto é o seguinte: que você escreve com toda a excitação de um anarquista do século dezenove preparando uma bomba. Você fica ajustando os fios e sorrindo e pensando na explosão. Nos burgueses de monóculo se transformando num diagrama anatômico (tronco, membros...) sobre o gramado do parque. Nas manchetes indignadas nos jornais. Os editoriais furibundos. Você fica mexendo nos fios e sorrindo distraído com o lírico sonho da destruição (escritores são assim).

Daí você coloca a bomba no parque, perto da confeitaria, no caminho diário do arquiduque (falei de anarquistas, estou visualizando Viena em 1893) e seu grupinho de sicofantas. Daí você corre para a confeitaria, segurando o riso. Pede uma éclair de chocolate. Escolhe uma mesa com vista para o parque, e se esconde atrás do jornal. Seus ombros já estão contraídos esperando pela explosão.

Mas não há explosão.

Há um Pup!

Você pára de fixar estupidamente o anúncio da missa de sétimo dia de Johann Strauss, e dá uma olhada no parque. Três pessoas (o arquiduque, um açougueiro e uma babá com um carrinho) estão olhando o arbusto onde está a sua bomba. Não parecem assustados nem chocados. Estão olhando a sua bomba, digamos, com a curiosidade polida com que se olha uma estátua de argila feita por uma velhinha de ar gentil. Um velhinho chega perto deles e aponta na sua direção.

Você foge? Não, você quer ouvir os protestos indignados do arquiduque. Você fica.

O arquiduque diz:

— Perdão, cavalheiro, mas aquela bomba é sua?

— Sim! — você diz, com um sorriso orgulhoso, que você espera que pareça satânico.

— Ah, formidável... Só queria dizer que achei o sonzinho da bomba deveras encantador... Pup! Ah, muito interessante... Muito saboroso mesmo...

O açougueiro, embaraçado por não ter nada o que dizer, diz:

— Você devia colocar num lugar mais público, para chamar mais atenção...

E a babá diz:

— Gosto muito de bombas. Eu também faço umas bombinhas em casa...

E se afastam.

Bom, vou parar a metáfora por aqui, vocês já perceberam. Poderia também dizer que lançar um livro é como jogar uma pedra num poço sem fundo — ou, para usar a imortal expressão do ator Ted Danson (o de Cheers) falando sobre como era fazer sexo com Whoopy Goldberg — é como jogar um cachorro-quente num corredor.

Comecei este texto querendo reclamar da falta de barulho (atenção, para usar um termo mais delicado) que se segue ao lançamento de um romance; e só agora percebi que, ainda pior do que a falta de atenção, é receber determinado tipo de elogios. "Saboroso", por exemplo. Quem diz isso é sempre algum tipo de cavalheiro barrigudo e satisfeito consigo mesmo (um burguês, como se dizia antigamente), dando risadinhas, e cofiando o bigode.

Ou um certo tipo de interesse fingido. As pessoas sempre chegam perto de mim com um sorriso horrível, e dizem: "Sobre o que é o seu livro?". Quando digo sobre o que o meu livro é — quando digo que não é um romance à clef "muito divertido" sobre políticos corruptos do segundo escalão de Brasília, e que não tem nada de "real" — que é, em suma, sobre anjos decadentes e um espírito que é o único espírito mortal do Universo — essas pessoas imediatamente perdem o interesse e dizem "Que interessante... Olha, boa sorte, viu? Agora com licença que estão me chamando do outro lado da sala".

Mas deixa estar, porque o que essas pessoas não sabem, e eu sei, é que um microscópico estilhaço da minha bomba entrou na circulação do arquiduque, e no momento está viajando artérias acima, em busca do tão almejado coração... E quando chegar lá...

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 17/8/2001

 

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