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Sexta-feira, 16/12/2005
Aos assessores, divulgadores, amigos até, e afins
Julio Daio Borges

Houve uma época - numa galáxia bem distante -, quando o Digestivo começou, em que eu ia atrás de cada assunto e processava cada coisa no meu próprio ritmo. Era assim: eu me propunha a escrever sobre cada um dos dez temas dos "Digestivos" alternadamente e ia pensando nas pautas conforme o que eu assistia no cinema, conforme os CDs que eu ouvia no carro, conforme os livros que eu lia, as exposições que eu visitava, as peças que eu via... Meu compromisso não era com ninguém; era apenas comigo. Eu percorria os jornais, folheava as revistas e seguia o meu feeling. Era absolutamente pessoal, orientado, claro, pelo que a mídia publicava - ou seja: fora o que já vinha mastigado das publicações, ninguém intervinha. Eu não era ninguém, eu não era ainda nada, como eu já disse, eu fazia aquilo a troco de banana - mas, em termos de liberdade, era um tempo bom. Bem bom.

Hoje...

Mas, antes, talvez eu devesse contar como o mundo mudou. Como foi mudando... Você começa a desenvolver um trabalho (está batida essa expressão), o negócio passa a ter alguma visibilidade e, no meio jornalístico, as assessorias de imprensa começam a te mapear, a te localizar, a te assediar... É muito sutil, no início, com um ou outro e-mail, com um ou outro telefonema e termina com ameaças verbais do tipo: "Eu quero uma nota sobre isso"; "Vocês não vão falar nada a respeito?"; "Mas a mídia inteira está dando... Vocês não vão dar? Como assim?".

A culpa é minha. Em 2002, quando o Digestivo não era muito conhecido, o Sérgio Augusto foi lá e falou do site na Carta Capital, e eu, Julio, aproveitando o gancho, liguei para as assessorias que me interessavam, para receber material, principalmente editoras, sendo a Record a primeira a confiar e a enviar. O Grupo Record. Era legal... Nós estávamos "de bobeira mesmo", eu tinha um Colunista literário infatigável, o Ricardo de Mattos, e nós nos esbaldamos com os títulos da José Olympio e da Civilização Brasileira. Os assessores eram atenciosos, gostavam do que escrevíamos, não "regulavam" nada e também não cobravam muito - davam liberdade. Tempinho bom...

Acontece que o reconhecimento é uma coisa estranha, ele não vem gradualmente, ele vem aos trancos. Você dorme anônimo como qualquer mortal e, no dia seguinte, acorda pisando na calçada da fama. Não que alguém do Digestivo tenha chegado a algum desses dois pontos, estou só exemplificando... O que eu quero dizer é que se até ontem você estava administrando racionalmente o assédio das assessorias e os pedidos das pessoas, no dia seguinte são tantos contatos, são tantos telefonemas, são tantas mensagens de manhã na sua caixa postal que, quando você vai ver, você já perdeu o controle... E eu me vejo obrigado a falar "não", ou a fugir às vezes, ou a deixar passar - o que é uma coisa horrorosa, extremamente condenável (até falta de educação) -, mas o limite, como sabemos, é humano; e nós, seres humanos, falhamos. (Não preciso fazer, aqui, a citação.)

Eu comecei com o coração aberto na causa da cultura, respondendo a todo mundo, atendendo a todo tipo de pessoa, dando o devido retorno. Me chamavam... eu ia; a não ser que soubesse, de antemão, que era "uma bomba". Não tinha grandes preconceitos, estava descobrindo o mundo: cabines de imprensa, aberturas de exposição, degustações em restaurantes, noites de autógrafo, pré-estréias em teatro, ensaio geral de show - até por curiosidade, até pra saber do que se tratava, até pra aprender a fazer o trabalho. E as pessoas, claro, me amavam... Me conheciam, me reconheciam, me cumprimentavam. Me ligavam na véspera, me avisavam em cima da hora... Eu dava um jeito, eu chegava. Eu gostava. Era bom... Como eu disse, era administrável.

Então eu ia numa coisa, me chamavam pra outra. E para outra, tempos depois. E outra, e outra... E o amigo, e o primo daquele assessor... "Um colega meu, lembra dele?, o fulano - pois é, o fulano! -, o fulano está com um espetáculo maravilhoso, ele está lançando um CD, virou escritor...!" "Estou te mandando, você vai?, quer que eu te deixe na porta?, você vai dar uma nota, não pode dar agora?" Então você sente às vezes uma vertigem; você está dirigindo o seu carro e a sua cabeça, de repente, começa a rodar e a rodar (engraçado...); você está num lugar e, ao mesmo tempo, sua cabeça está em outro. Aqueles músicos que você adora, aquela peça que prometia desde o cartaz, o restaurante que tinha te impressionado tanto... É uma coisa atrás da outra; você só consegue ver a sua agenda sempre lotada, cheia de compromissos que você quer riscar. E você já prometeu textos a Deus e o mundo... Que horas, enfim, vai sentar pra trabalhar?

É uma questão. É uma questão que se coloca... E eu estou escrevendo isto por causa dessa questão. De uma hora pra outra, os eventos tomam uma proporção, os lançamentos, outra... - e nós somos humanos, demasiadamente humanos... O Julio, súbito, não vai mais... como antes. Ou até vai. Ou até poderia fazer como os colunistas de jornal - que você passa a mão na frente do rosto e eles nem piscam o olho, de tão ausentes, de tão fantasmagóricos. Processam a informação como Charles Chaplin apertou porcas em Tempos Modernos. Não pensam mais, apenas "estão lá". Almoçam releases e jantam assessoras. Perderam a capacidade de julgamento. São autômatos. "Olha, fulano!, eu quero que você sente aí e escreva tal coisa". No dia seguinte, você abre o jornal e está lá.

Então eu penso qual é sentido disso tudo. Eu nunca quis ser "o colunista" Fulano de Tal. Colunável? Tanto pior. Claro que eu queria receber as coisas, ganhar os ingressos, ter entradas grátis... é o meu trabalho! Mas se começa a escravizar, eu pulo fora. Não vou me vender por tão pouco. Vocês me desculpem. Os amigos, também, me desculpem: se vocês lançam um livro, e eu não vou; se vocês dão um show, e eu não vou; se vocês estréiam uma peça, se vocês inauguram uma exposição... De repente, eu sou humano, eu não vou. Até fisicamente: eu não posso estar em todos os lugares! Eu não quero estar. Ser onisciente, onipresente. Onipotente, tanto pior. Como disse - e repito -, quero errar um pouco. Quero falhar. Quero não ir. Quero perder alguma coisa. Quero, também, ser injusto com alguma pessoa. Posso? Só um pouco?

Não era para ser, assim, tããão dramático... Agora eu entendo as pessoas que não estão em todas; que não estão por dentro de todas as coisas. Não dá pra estar. E eu também tenho os meus assessores. Eu lutei muito tempo na frente de batalha, no battle field - como eu gosto de falar -, e é chegada a hora de ter pessoas de minha confiança lá, no front. Elas saberão me informar. Elas vão me contar. Vocês podem confiar... Se for o caso, eu mesmo vou. Eu dou as caras. Eu gosto de me misturar. Sentir qual é. Farejar a coisa. Como dizia o Nélson Rodrigues: apalpá-la. Comigo não tem frescura, vocês sabem. Não me envergonho de fazer o trabalho. Fiz muito tempo... Ocorre que uma retirada estratégica, às vezes, se faz necessária.

Logo, não reparem se o Julio nem sempre está. Se o Julio pula aquele evento da sua vida. O Julio tem outros dez na mesma semana. (Outros dez que talvez, também, vai pular...) É porque eu acho que quem produz tem de preservar sua essência. E sua essência não se conserva se você está em todo lugar... Pelo contrário, como um perfume, sua essência se evapora, enquanto você entretém o nariz das pessoas (dos farejadores...). É uma coisa que não ensinaram às celebridades. Aos "artistas" tão desgastados quanto as notas de um real. Abrilhantar as iniciativas dos outros é uma coisa; apagar-se por dentro, é outra - mas, muitas vezes, numa linha reta, numa cadeia sucessória, elas podem se encontrar...

Assessor, divulgador, amigo até, não repare se eu não for, tá? Porque se você também não for, eu prometo não reparar.

Nota do Editor
Leia mais em "Nós - os jornalistas de alma vendida".

Julio Daio Borges
São Paulo, 16/12/2005

 

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