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Sexta-feira, 14/10/2005 Os romances das ilusões Eduardo Carvalho Existem dois tipos de livros de aventura. O livro de aventura puramente descritivo está baseado no conflito do homem com a natureza. E mostra como o ser humano - mesmo pequeno, minúsculo dentro de um planeta gigante - pode ser forte e resistente quando exposto a situações excepcionais. Os livros inspirados nas grandes viagens e expedições - de Marco Pólo a Endurance - normalmente se enquadram nesta categoria. São narrações que não poderiam se deslocar geograficamente - ou perderiam todo sentido. No caso de Marco Pólo, por exemplo, o texto substitui recursos antes inexistentes, como a fotografia e o vídeo, que seriam mais precisos para descrever cidades e paisagens provavelmente maravilhosas. É verdade que esses recursos mais novos não permitiriam certos exageros fabulosos. Mas certas novidades - como deveria ser o Oriente, no século XIII, para grande parte da Europa - são tão impressionantes que dispensam os adjetivos mais pomposos que Marco Pólo lhes dedica. As fotos da expedição Endurance - outro exemplo -, que em 1915 encalhou na Antártida, tem uma nitidez, uma clareza, que torna os textos sobre a viagem quase acessório a essas imagens. Os livros de Marco Pólo e - no caso de Endurance - de Caroline Alexander tratam o homem, antes de tudo, sob a perspectiva da natureza. Uma natureza de proporções infinitas, inevitável, linda e ao mesmo tempo perigosa, que encanta e domina todos. E faz às vezes com que desapareçam problemas supostamente menores, mas que continuam incomodando e encantando pessoas - como, digamos, os problemas do homem com ele mesmo. Marco Pólo conseguiu ampliar a imaginação e os horizontes geográficos de uma civilização inteira. Mas seu discurso - "Agora vamos descrever as montanhas tal", etc. - é didático demais, e acaba cansando. Caroline Alexander, quando descreve a exploração da Antártida, percebe que o principal interesse do livro está na relação do homem com o ambiente que o rodeia: "os confrontos essenciais eram simples e descomplicados: de um lado, entre o homem e a força desenfreada da natureza em estado bruto e, de outro, entre homem e os limites de sua própria resistência, sua capacidade de enfrentar e superar condições adversas". Só que esse conflito, apesar das dificuldades específicas da Antártida, está presente em todas as aventuras: e é, na verdade, inseparável dela. O principal destaque da Endurance é o argumento de Shackleton, seu líder, no prospecto da expedição: "Será a maior viagem de ida e volta ao pólo". Independentemente do desastre no caminho, Shackleton encerrou a aventura satisfeito: "Não perdi nenhum homem, e atravessamos o inferno." As imagens coletadas pela equipe patrocinaram parte do projeto e hoje talvez seja seu principal legado. Só que as fotos sozinhas não conseguem exprimir esse "inferno". E o texto do livro de Caroline se limita exclusivamente à descrição da expedição. A descrição do Inferno exige mais do que isso. É muito difícil que um livro que se preocupe principalmente em descrever a vida e a natureza - mesmo que em seus cantos mais exóticos e em situações extremas - consiga se destacar como grande literatura. Porque a literatura, em seu estado mais puro, dispensa movimento. Proust descreveu praticamente todas as sensações humanas sem se levantar da cama. Machado de Assis não precisou sair do Rio de Janeiro para captar todas as sutilezas das relações humanas. A imaginação, em literatura, pode substituir a ação. Mas nada substitui o estilo - a forma como a ação é narrada. A capacidade de escrever de forma diferente sobre um acontecimento comum é o que destaca um grande escritor - e é ai que aparece a literatura mais fina, ausente em Marco Pólo e em Endurance. E é por isso que o Inferno de Conrad em O Coração das Trevas (L&PM, 1998, 170 págs.) é assustador. Descobrimos ali um mundo diferente, estranho, inédito: como o Terror ou, se quiser, o Inferno deve ser. Esse ambiente de Conrad pode ser transposto, portanto, do Congo para o Vietnã - como fez Coppola em Appocalipse Now - sem comprometer o seu sentido. E este é o segundo tipo de livros de aventura: são os livros que usam a natureza para ilustrar ou ambientar temas que vão além dela: como a morte, a saudade, a moral, o amor. Claro que, entre essas duas principais categorias, existem subgrupos, intersecções e, fora delas, as exceções. Onde entraria, digamos, Huckbellery Finn, de Mark Twain? Seria um livro de aventura infantil? Eu não acho. A essência da aventura - e, portanto, dos livros de aventura - está lá. A imaginação de Tom Sawyer foi assumidamente ampliada pelo que ele leu. Sobre o juramento que fazem no início, quando montam uma inofensiva quadrilha de ladrões, Huck - o narrador - escreve sobre Tom: "Ele disse que tinha inventado uma parte, mas que tinha tirado o resto dos livros de piratas e dos livros de ladrões". E quando discutem formas de resgate, Tom explica: "Você acha que as pessoas que escreveram os livros não sabiam o jeito certo de fazer as coisas?". Ou quando todos os amigos encontram rosquinhas com geléia num lanche dominical de crianças, mas Tom, além de diamantes, via "um monte de árabes também, com camelos e tudo. E ele disse que se eu [Huck Finn] não fosse tão ignorante, e tivesse lido um livro chamado Dom Quixote, eu ia entender. Era tudo encantamento." Ora, é esse tipo de encantamento - que fez com que o cotidiano de Tom e Huck ficasse engraçado, divertido - que a literatura é capaz de trazer. E eles reconhecem isso: Huck e Tom sabem que levam uma vida ótima, movimentada, cheia de novidades: "a gente passou a tarde toda descansando e conversando na mata, eu lendo os livros e, em geral, levando uma vida muito boa. Contei a Jim tudo que tinha acontecido no navio afundado, e depois na balsa; e disse a ele que esse tipo de coisa é que eram aventuras". Não importa que essas aventuras sejam produto da imaginação dos personagens. Qual é a diferença? Dom Quixote não via nenhuma. E Tom responde para Huck, quando estão simulando a fuga da casa de uma tia velha: "Você é sempre assim, Huck Finn. Sempre dá um jeito de fazer as coisas do modo mais bobo. Será que nunca leu nenhum livro?". Essa compreensão da literatura e da vida - tão simples e tão completa - está em quase todos em momentos do livro. Por exemplo, num discurso de Sherburn, um personagem simpático: "O homem médio não gosta de se meter em problemas, e nem de correr perigo. (...) A coisa mais triste que pode existir é a multidão". A aventura autêntica é exatamente a fuga - ou a tentativa de fuga - disso tudo: do cotidiano do homem médio e da multidão. A aventura é uma experiência forte, fantástica, e normalmente - mesmo que realizada em grupo - solitária. No livro No coração da África (Record, 2004, 434 págs.), Martin Dugar conta que Livingstone, quando adolescente, "gostava muito de fugir pelo interior em caminhadas solitárias e à procura de pedras. O raro momento de lazer era passado lendo.(...) Os livros de viagem eram o gênero mais popular na casa dos Livingstone, falando de um mundo maravilhoso muito para lá da Glasgow industrial". Essa leitura sem dúvida abriu o espírito de Livingstone para os mistérios de cantos desconhecidos do planeta. E foi decisiva para que o estimulasse a mapear a África praticamente sozinho, em meados do século XIX. Quando partiu para o continente, em 1866, para encontrar definitivamente as fontes do Nilo, fez uma anotação em seu diário que revela ao mesmo tempo seu deslumbramento com a nova viagem e um estilo delicioso na prosa: "O efeito da viagem sobre um homem cujo coração está no lugar certo é a mente ficar mais confiante em si mesma: ela se torna mais confiante em seus próprios recursos - existe mais presença de espírito". Stanley, durante a busca por Livingstone pelas regiões mais remotas da África, provavelmente constatou essa verdade. Um complemento atualizado à experiência de Livingstone e Stanley na África é a coleção de histórias do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski em Ébano, Minha vida na África (Cia das Letras, 2002, 360 págs.) acumuladas em mais de 40 anos de cobertura pelo continente. Logo no primeiro parágrafo esta nítida a diferença entre viajar agora e, como escreve Kapuscinski, "antigamente, quando os homens viajavam a pé, montados em cavalos ou singrando os mares, a própria viagem acostumava-os às mudanças. As paisagens mudavam lentamente diante dos olhos; o cenário do mundo ia se alterando pouco a pouco". Kapuscinski aponta de novo dois lados da África: "o núcleo conradiano da escuridão" e outro, sedutor, cheio de oportunidades românticas. A África de hoje passa por situações talvez inimagináveis e mais complexas do que qualquer colonizador podia prever. Um dos seus principais problemas, por exemplo, corre o risco de se estender indefinidamente, porque é quase imune a qualquer ajuda externa: o racismo extremamente violento que existe entre tribos que dividem o mesmo país: "Estamos num mundo paranóico e obsessivo de preconceitos, aversões e hostilidades enraizados na África". E introduzindo o caso de Ruanda: "Muitas guerras na África são travadas em segredo, sem testemunhas, em lugares de difícil acesso, sem o conhecimento do resto do mundo ou, simplesmente, ignoradas". Não foi assim - ou está sendo assim - com o Congo e o Sudão? Mas Kapuscinski conclui com o assunto de quase toda aventura: "No relacionamento entre o homem e a natureza, não há nada mitigador - nenhum acordo, nenhum estado intermediário, nenhuma gradação. Apenas uma luta constante de vida ou morte". Os grandes exploradores, ao contrário do habitante nativo das piores regiões da África, arriscam suas vidas espontaneamente. Porque acreditam em Deus, na Ciência, no Homem, em seu pais, ou em alguma força que os empurra do sofá e lhes coloca num ambiente diferente e distante. Thor Heyerdahl acredita ao mesmo tempo em Deus e na Ciência. No seu livro de memórias, Na trilha de Adão, ele admite - "Tanto a Bíblia como o Alcorão que nos acompanharam pelos mares afora hoje repousam lado a lado atrás da minha escrivaninha, junto com outras obras de referência sobre a evolução das civilizações do mundo". Essa fé - que pode parecer estranha a muita gente - foi provavelmente decisiva nos piores momentos de suas viagens. Thor Heyerdahl reescreveu um pedaço da história do mundo quando concluiu a expedição Kon-Tiki, atravessando o Pacífico, do Peru ao Taiti, numa balsa pré-histórica. Entre ondas gigantes e tubarões circulando a embarcação, eles sentiam que "o oceano inteiro era nosso, com todas as portas do horizonte abertas, uma paz real e a verdadeira liberdade desceram sobre nós. Era como se o gosto fresco do sal que havia no ar e a imensa pureza azul que nos rodeava nos tivessem lavado o corpo e purificado a alma". Essa sensação especial pode ser encontrada nos ambientes mais diversos - no interior da Tanzânia, numa ilha isolada no Pacifico ou na escalada de uma montanha gelada. George Mallory, um dos pioneiros na escalada do Everest, escreveu quando alcançou o cume do Mont Blanc: "Alguém que nunca experimentou essa emoção não pode perceber o que ela significa. Em parte ela deriva de uma alegria e um orgulho legítimos para com a vida". William E. Northdurft, em Fantasmas do Everest, publica também uma declaração de Mallory muito clara sobre o principal motivo que estimula os alguns alpinistas: "Se alguém me perguntasse qual a utilidade de escalar, ou de se tentar escalar o pico mais alto do mundo, eu seria obrigado a responder 'nenhuma'. Não há nenhum objetivo científico a ser alcançado; e simplesmente a satisfação do impulso de realização, o desejo indomável de ver o que jaz além, que sempre pulsa no coração do homem". Essa motivação misteriosa está presente em vários grandes alpinistas. E nem sempre as historias acabaram bem. Claro, o risco em uma aventura de verdade não é apenas simulado - ele existe e, se for mal administrado, abre espaço à tragédia. Foi o que aconteceu em 1996: quando uma tempestade inesperada afundou na neve os grupos talvez mais profissionais que exploravam essa aventura comercialmente. "Para aqueles que têm a coragem de encarar seus sonhos de frente, esta experiência oferecera algo muito especial, que nenhuma palavra é capaz de descrever." Em outro momento do livro, Krakauer cita uma passagem de Alone to Everest, de Earl Denman: "Eu cresci com uma ambição e uma determinação sem as quais teria sido bem mais feliz. Pensava muito e acabei adquirindo aquele olhar distante e sonhador, porque eram sempre as grandes alturas que me fascinavam e atraiam meu espírito". Mas existem também grandes aventuras que não exigem grandes riscos. E que nem por isso despertam sentimentos menores. O chef Anthony Bourdain, por exemplo, parece que entende perfeitamente o espírito da coisa na abertura de seu Em busca do prato perfeito, o livro em que conta sua viagem pelo mundo experimentando as mais deliciosas e exóticas comidas: "Eu queria a refeição perfeita. Para ser sincero, queria também o coronel Walter E. Kurtz, Lorde Jim, Lawrence da Arábia, Kim Philby, o cônsul honorário, Fowler, Tony Pó, B. Terven, Christopher Walken... Queria achar, melhor, queria ser um desses heróis ou vilões ambíguos, saídos de Graham Greene, Joseph Conrad, Francis Coppola e Michael Cimino. Vaguear pelo mundo numa roupa suada de aventureiro, me metendo em encrencas. (...) Queria adrenalina - o tipo de calafrio melodramático que sempre desejei desde a infância, aquelas aventuras que encontrei criança nos meus gibis de Tintim. Queria ver o mundo e que ele fosse igual aos filmes". Imaturo, aloprado, romântico, ingênuo - Bourdain se pergunta. Mas não é exatamente a vontade de Tom Sawyer, de Dom Quixote, de Livingstone - de todos nós, enfim, que sabemos que só temos uma vida para aproveitar? Quando Ismael, em Moby Dick, de Herman Melville, por exemplo, começa a se apresentar, vai logo dizendo que adora o "ar puro que se respira no castelo de proa. Quanto não vale isso?". E continua: "Amo o distante, o desértico, o ignorado. Adoro navegar em mares perigosos, desembarcar em praias selvagens". Ismael assume essa vontade e, para fugir do marasmo que lhe abate de vez em quando, se alistou no Pequod, um barco de pesca caindo aos pedaços. Um barco nas mesmas condições, aliás, do narrador de Juventude, de Conrad, que lamenta não estar mais disposto para enfrentar os desafios do mar, e resume de forma encantadora a essência da aventura e da vida: "Por tudo o que é maravilhoso - e o mar, eu creio, o próprio mar, ou somente a mocidade? Quem pode dizer? Vocês aqui - vocês todos tiveram algo na vida: amor, dinheiro - o que quer que alguém possa conseguir em terra firme - e, digam-me, não foi o melhor tempo, o tempo em que éramos jovens no mar; jovens e sem nada, no mar que não da nada, exceto duros golpes - e algumas vezes a chance de medir sua forca - só isso - que vocês todos lamentam? E todos assentiram. (...) nossos rostos marcados pela lida, pelos enganos, pelo sucesso, pelo amor; nossos olhos cansados buscando ainda, buscando sempre, buscando ansiosamente algo da vida, que enquanto se espera já se foi - passou sem ser visto, num suspiro, num lampejo - junto com a mocidade, com a força, com o romance das ilusões". A literatura pode eventualmente dispensar a ação, o movimento, mas nós não podemos viver parados - nem apenas de literatura. Mesmo grandes escritores - e, talvez, principalmente eles - estavam convencidos disso. Só que movimento apenas, sem imaginação, transforma uma suposta aventura numa experiência institucionalizada, coorporativa - numa espécie de aventura artificial. E Conrad, por exemplo, pode ser um antídoto a essa experiência falsificada. Um livro de aventura pode inspirar a próxima viagem e, enquanto isso, refrescar o nosso espírito urbano. Eduardo Carvalho |
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