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Quinta-feira, 13/10/2005 A Auto-desajuda de Nietzsche Andréa Trompczynski Decido sentar na praça, em frente à livraria famosa em que não entrei, com minha velha edição de bolso de Ecce Homo — de como a gente se torna o que a gente é, de Friedrich Nietzsche (L&PM, 2004, 206 págs.). Ele nunca estará na lista dos mais vendidos, ele nunca estará num daqueles pedestais ornados da livraria, porque Nietzsche percorre o caminho mais difícil, porque ler Nietzsche não é para qualquer um. O mundo todo está numa corrida por virtudes humanas. Agora, ser virtuoso é bem de consumo. Antes eram os carros, a posição profissional. Depois o corpo, os músculos, o silicone, as bolsas da Daslu. Agora está na moda ser bom. Vejo as camisetas, pulseirinhas, em prol de todas as causas possíveis: guaxinins em extinção no sudoeste do Sri Lanka, criancinhas famélicas da África, o grupo de senhoras bordadeiras de São João do Triunfo... e você nem precisa conhecê-los, não, compra-se pela internet: pulseirinhas, camisetas, xícaras, imãs de geladeira da bondade humana. Acaba de passar um rapaz com meia-dúzia de pulseirinhas em prol de desabrigados, famintos e clubes de futebol falidos. Com o livro no colo, dou um meio sorriso: "a piedade é uma virtude apenas para os décadents". (Ah, Friedrich, por você, muitas vezes, enlouqueço, percorrendo a casa de pijamas, tateando as paredes às cegas e resmungando: "Friedrich, Friedrich, por que você morreu? Quem mais dirá tão verdadeiras coisas, meu querido?"). E calem-se nossos conceitos de Bem e Mal, para compreender Nietzsche, cale-se tudo o que se tenha aprendido. O rapaz das pulseirinhas não sabia, e, nem a moça que passa agora, com uma camiseta do Greenpeace e bolsa da campanha do "Sim" à proibição do comércio de armas, que pensava ele ser a piedade, seja com as baleias ou os times de futebol, muito parecida com as más maneiras, e, que aquela poderia interferir no destino da criatura de maneira trágica. Tiramos dela o sofrimento, tiramos dela o privilégio de crescer, e ela não se torna o que poderia ser. Manipular pessoas com sorrisos e bajulações, galgar postos às custas do Poder dentro de Nós, e outras fórmulas que os livros de auto-ajuda ensinam, Nietzsche, há mais de cem anos, já havia desmascarado: "A condição de existência dos bons é a mentira". Por não quererem ver, a todo custo, como a realidade é constituída no fundo. A realidade e seus horrores são mais necessários que a bondade, por ser esta de caráter mentiroso. Desvio os olhos do livro, já sorrindo completamente. Ler Nietzsche não é para qualquer um. Uma senhora sai da livraria, felicíssima, com seu livro de auto-ajuda. Que lhe dirá mentiras horrendas sobre a alegria do otimismo. Fará a velhinha feliz, por, talvez, meia-hora. Diria Nietzsche: "o otimista é tão décadent quanto o pessimista, e talvez mais daninho do que ele". Deixo a praça. Não comprei nenhum livro, nenhuma pulseirinha, nenhuma camiseta. Eu precisaria mesmo era comprar um novo exemplar de Ecce Homo, que o meu, por tanto manuseio e anotações nas margens, está se desmanchando. Mas, meu livro de auto-desajuda, naquela livraria, certamente, não iria ter. Para ir além Andréa Trompczynski |
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