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Quarta-feira, 19/10/2005 O escritor pode Ana Elisa Ribeiro No século XV, enquanto ingleses, espanhóis e portugueses se preocupavam em viajar por mares nunca d'antes navegados, singrar águas cheias de monstros mitológicos e desafiar as então definitivas leis da física, outros tantos europeus mais comedidos dedicavam-se a inventar maneiras de imprimir livros sem precisar copiá-los a mão. Gutenberg, na Alemanha, foi o felizardo que conseguiu, engenhosamente, reunir na prensa uma série de pequenas outras invenções, tais como o tipo móvel e engenhocas menos articuladas. O inventor do recurso e do novo método de impressão de códices imprimiu, então, a Bíblia de 44 linhas, com um tipo de letra peculiar à sua oficina. E assim essa nova tecnologia foi se espalhando pela Europa e ganhando outras oficinas e tornando famosos outros impressores. A invenção e a difusão de uma tecnologia ultrapassam a abrangência local e fazem efeitos sociais de suma importância (nem sempre percebida prontamente) para uma cidade, um estado, um país e até mesmo para o mundo. A invenção de Gutenberg é tratada como um dos fatores que teriam levado à Reforma Protestante (já que a Bíblia poderia chegar mais facilmente às mãos do leitor e à sua leitura direta, sem intermediários) e, conseqüentemente, à Contra-Reforma Católica. Também é a utilização da prensa para imprimir livros que vai sendo apropriada de outras formas por outros tipos de suporte. Para encurtar história, o jornal vai se utilizar da engenhoca até virar o que é hoje, assim como a revista. E são tão importantes essas ações tecnológicas e humanas que as profissões e as ocupações também se redimensionam e passam a se enquadrar em novos modelos de escrita e leitura, novas ações sociais para a comunicação. Até a época de Gutenberg e mesmo muito depois, o autor como dono do texto não tinha importância, muito menos a importância e a projeção que tem hoje. Autores muitas vezes eram quem ditava um texto a um escriba que mal sabia ler, mas sabia escrever. Os títulos dos textos e dos livros eram sua primeira linha em destaque. Não havia a preocupação em compor um título que resumisse as idéias principais (como aprendemos na escola desde crianças) e nem muito menos a de conferir aos textos e aos livros nomes impactantes, como aprendem os comunicólogos e os vendedores de manchetes. O autor como conhecemos hoje começou a se configurar no Romantismo, movimento literário que deu ao escritor os ares que ele ainda tem, o criador de um objeto de apreciação, dono absoluto até mesmo dos sentidos que o leitor poderia dar à obra. Nessa época é que os escritores (aqueles que sabem e podem fazer com que um texto tenha algum valor estético) tornaram-se jornalistas. Embora nós, os que nascemos no século XX, tenhamos conhecido Machado de Assis como romancista, contista e poeta, foi nos jornais cariocas que o bruxo lançou seus folhetins, publicados com suspense no final do capítulo e tudo. Machado era pacato, não viajava, não saía da então capital do país e tornou-se, à época, jornalista, profissão recém-aparecida, que nem precisava de formação especial. Foi numa dessas empreitadas jornalísticas que José de Alencar, antes de Machado, em 1856, lançou o folhetim completo Cinco minutos como brinde no ato da compra do jornal. A mesma idéia que tem a imprensa até hoje. O escritor, então, era um misto de jornalista e escritor, cronista do cotidiano ou de grandes fatos, que podia, no entanto, mesclar a escrita precisa e insossa do jornalismo puro à beleza do texto composto com a argamassa literária difícil de conceituar e de apontar. Essa situação ambígua e a relação entre escritores e jornalistas, seja ela de rivalidade ou de consórcio, vem sendo discutida desde então, apesar de todos os baques históricos e psicanalíticos que vêm sofrendo o conceito e a figura do autor. No século XXI, o que se tem escutado fora das redações é que a profissão tornou-se, há muito, talvez desde Alencar e Machado, o ganha-pão de 8 entre 10 escritores (mesmo os de renome), não porque sejam todos eles apaixonados pela linguagem e pelas pirâmides invertidas, mas porque ao menos podem escrever textos quando não devem escrever literatura. Também os escritores-jornalistas contemporâneos são confrontados diariamente com a realidade das contas a pagar e a vencer e não têm outra solução, especialmente neste país, que não seja encontrar uma ocupação que lhes renda salário. Mesmo tendo pauteiros e editores-chefes para lhes lembrar de que notícias têm prazo e de que os leads não são poemas, esses autores fazem do jornalismo sua profissão para sustentar a outra atividade, verdadeira paixão, essa, sim, irreprimível e necessária: a escrita criativa. Dizia o escritor Coelho Neto (1864-1934): "Quanto à literatura que publicamos nos jornais, lembra os livros impressos no tempo do Santo Ofício: não têm o visto da Inquisição, mas têm o visto do redator-chefe". E é esse conflito de escritor-funcionário que ataca as consciências daqueles que precisam escrever para ganhar dinheiro e, quando podem, para continuar vivendo sem tanta angústia. Imagine-se, então, quando o escritor tem uma profissão que nem é o jornalismo? Há registros de relações também estreitas entre dois tipos de escrita, por exemplo, escritores-publicitários, escritores-professores, escritores-engenheiros, escritores-filósofos, etc. E, acreditem, além de ter que ganhar dinheiro, já que a literatura não o provê, pode ser que o escritor ame as duas coisas. É comum que escritores-professores se movam por duas paixões, à maneira dos amantes com seus dois pares, cada qual para sua função. O jornalista recebe ordens, pautas, critérios de redação, limitação de tamanho, tema, número de caracteres, língua padrão, concisão, clareza. Cobertura, crítica superficial, alinhamento. Trabalho jogado no lixo todos os dias. Chão de gaiola de passarinho, fundo de sacola de feira, papelote no cabelo das meninas, embrulho de jarra de vidro. Já o livro, não. É acondicionado, guardado, apreciado ou, mesmo que revendido no sebo, artigo de luxo, fundo de foto quando o político quer mostrar que tem cultura, tem status. É essa paixão que move um escritor. E as condições para escrever lhe são dadas quando ele garante o texto pautado apenas pelo que lhe move, a observação dos olhos dele, sem redator-chefe e sem cobertura de evento. O escritor pode tudo no texto. Trabalho de campo de escritor é na linguagem. O do jornalista é no texto e na pauta vinda de cima. Sorte quando os dois são o mesmo, ainda que as suas escritas sejam duas, uma para a cama, outra para a mesa. Ana Elisa Ribeiro |
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