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Terça-feira, 25/10/2005
As Confissões de um Penitente
Fabio Silvestre Cardoso

Está escrito nas Sagradas Escrituras, nas palavras de Paulo de Tarso: "Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço". Respeitando as devidas proporções, a frase poderia ser a epígrafe ou até mesmo o ensaio de síntese de O Penitente (L&PM, 1998, 143 págs.), assinado pelo escritor Isaac Bashevis Singer (1904-1991). Singer foi laureado pela Academia Sueca com o Prêmio Nobel em 1978, mas sua obra não parece ter grande ressonância junto aos círculos literários, pois muito pouco se ouve a seu respeito nas discussões sobre literatura, bem como no círculo universitário. E desta vez não é culpa das editoras. A própria L&PM possui três livros publicados do autor, enquanto a Cia. das Letras no ano passado editou uma coletânea com 47 de seus contos. Como o título desta resenha sugere, o livro em questão traz o relato do judeu Joseph Shapiro sobre seu encontro com o judaísmo. Não se trata de uma experiência qualquer, como o leitor logo aprende. Num tom claro e para lá de incisivo a personagem de Singer expõe como e porque decidiu fazer o caminho inverso da Diáspora, mas o relato vai além do tom religioso; em poucas páginas, o leitor tem a impressão de enfrentar o velho dilema ético e moral que persegue Joseph Shapiro, por isso as palavras do Apóstolo Paulo cabem tão bem no início deste parágrafo.

Embora seja o nome central, Joseph Shapiro não é o narrador inicial deste livro. Num primeiro momento, o leitor trava conhecimento com um escritor (não é dado o nome) que vai pela primeira vez ao Muro das Lamentações. Uma vez lá, é abordado por "um homenzinho em uma gabardine comprida e chapéu de veludo". Logo, o escritor descobre que se trata de Joseph Shapiro e que este saberia que ele estaria ali. Por quê? "O Muro é como um magneto que atrai almas judaicas." A história em si sequer começou, mas os códigos que vão caracterizar a trama já estão definidos. Religião, judaísmo, busca. São as palavras-chave. Após esse primeiro contato, Shapiro diz ao escritor que gostaria de lhe contar sua história. Os dois combinam, então, que no dia seguinte vão se encontrar para efetivar o relato. Até aqui, já correram algumas páginas, mas é a partir de "O primeiro dia" que a história, de fato, começa.

É a partir de então que Joseph Shapiro se apresenta. Traz uma espécie de mini-biografia, onde nasceu e como escapou da Alemanha Nazista de Hitler na Segunda Guerra Mundial (estava em Varsóvia, nos primeiros anos do Conflito). Da Polônia chega até Nova York, onde se estabelece, agora já com sua esposa, Célia, um emprego e amigos. Com a vida de classe média já ajeitada, Shapiro e sua esposa seguem uma trajetória aparentemente tranqüila, semelhante aos demais casais. É a propósito disso, aliás, que ele começa a observar o mundo que o cerca, seus costumes, valores e modus operandi. Causa uma repulsa natural a forma como seus amigos se relacionam com as mulheres. Mais precisamente, é a infidelidade conjugal que lhe instiga os instintos mais primitivos. De outra parte, junto às mulheres, ele não entende muito bem suas novas maneiras, frutos, Shapiro conjectura, da educação mais liberal.

Mesmo assim, ele acaba envolvido numa dessas teias de adultério, mais por conveniência do que por opção. Pois é certo que o prazer é recompensador, mas não há em seus gestos, assim como em nada do que faz, uma convicção, um fim, um objetivo. E Shapiro acorda para isso quando descobre que foi duplamente traído. Desolado por essa circunstância, ele passa da repulsa para a condenação de tudo aquilo que o cerca. Em outras palavras, numa avaliação drástica de suas atitudes e de sua condição, decide abandonar tudo o que tem para buscar algo que dê sentido à sua vida. E esse algo se materializa, se assim se pode dizer, como um retorno ao judaísmo. Do ponto de vista prático, sai da casa de sua esposa, abandona seu trabalho, suas posses, e parte rumo a Israel.

A relação pode parecer banal, mas é nessa viagem que Shapiro desenvolve ainda mais seu senso crítico em relação à cultura e civilização ocidentais, questionando desde a validade desde suas artes (como a literatura e a música) até suas instituições mais sólidas (como as Leis e a Imprensa), passando pelo conhecimento científico. Desse modo, ao longo do livro, o relato é entrecortado por suas análises provocativas e ácidas do seu "universo". Um bom exemplo é quando ele compara a sabedoria religiosa com as teorias científicas: "Em qualquer página que virasse encontrava sabedoria, não a 'sabedoria' distribuída pelos psicanalistas, com suas volúveis teorias infundadas e suas conclusões artificiais". Ao final da mesma reflexão, ele é categórico no veredito: "Como o homem moderno é perverso! Tudo que ele quer é violentar a natureza e, quando esta resiste, ele corre aos psiquiatras pedindo socorro".

Apesar de todas essas certezas, o personagem central é freqüentemente assolado por um sentimento que lhe provoca um remorso a respeito das coisas que ele deixou para trás. Recém convicto, Shapiro prefere dizer que esse sentimento é provocado pelo Espírito do Mal, uma espécie de voz que, no fundo de sua cabeça, o incita a fazer tudo aquilo que ele mais repudia e, por isso, tenta evitar. É assim quando ele conhece Priscila, a jovem e bela judia que senta ao seu lado no avião que toma em direção a Roma, antes de chegar a Israel. Embora ele tente, de início, permanecer distante de seus encantos, procurando não reparar em sua beleza, aos poucos ele se entrega à tentação e cede espaço para um envolvimento frustrado durante o vôo. Nesse momento, Shapiro se dá conta de que todo seu esforço em se transformar perde sentido quando ele cedeu ao que não lhe era lícito. Eis o dilema do penitente. É aqui que sua decisão se torna ainda mais drástica, como se observa na continuidade de seu relato, no capítulo seguinte ("Segundo dia").

O Penitente, de Isaac Singer, traz o relato de um homem que, antes de questionar o mundo que o cerca, põe em xeque tudo o que sabe a seu respeito, bem como acerca de suas raízes com as suas crenças. E a relação com a religião é tensa, sobretudo, porque Shapiro coloca seus dilemas morais sob a perspectiva do judaísmo. Nesse sentido, é interessante observar como o tom quase fundamentalista adotado por Shapiro é absolutamente refutado por Singer no prefácio do livro, talvez como se dissesse que qualquer semelhança é, sim, mera coincidência. Em que pesem essas cores fortes, O Penitente é uma exímia confissão sobre como a nossa condição humana, mesmo com a preocupação moral, não consegue evitar as nossas contradições. O triunfo nem sempre é da vontade.

Para ir além





Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 25/10/2005

 

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