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Quinta-feira, 10/11/2005
Anotações do Jardineiro
Ricardo de Mattos

"Mas, passados uns poucos dias, a tristeza bateu. A beleza dos bosques e jardins era a mesma mas não me dava alegria. Comecei a ter saudades do meu jardim, jardinzinho que podia ser atravessado com duas dúzias de passos. Os jardins do palácio eram lindos, lindíssimos, muito mais lindos do que o meu. Mas não eram o MEU jardim. Eu não os amava. O jardim que eu amava era aquele onde estavam as plantas que eu havia plantado." (Rubem Alves)

No empenho de arranjamento do meu jardim, atingi até agora meus dois objetivos iniciais. Primeiro, consegui construir um ambiente apaziguador. Uso este termo de propósito, em vez de aprazível. Por mais ansioso, tenso ou irritado que eu esteja, basta ultrapassar a cerca viva para que tudo isso passe e logo ocorra-me o entusiasmo em verificar as novidades florais. Posso ter me condicionado a isso, mas reparei que outras pessoas também logo ficam à vontade, quer após darem água da torneira ao cachorro, quer após verem uma planta específica, ou mesmo apenas por sentarem no banco da varanda e observarem-no. Se uma folha não larga o ramo se Deus não quiser, e como dediquei-Lhe o jardim, não é de se estranhar o efeito calmante. O segundo objetivo eu pensei que seria mais complicado de alcançar, mas até agora tudo vai bem: não há um dia no ano em que nele não haja flores. Rosas de várias e inusitadas cores - alaranjadas, amarelas e vermelhas, rajadas de branco e rosa escuro, roxas -, lírios, gardênia, manacá, lantana, boca de leão, quatro tipos de begônias, zínia, hortênsia, crossandra e várias outras. Cada uma a seu tempo, algumas florações encadeadas, outras coincidentes.

Não me faltou trabalho para deixá-lo com a atual configuração. No princípio era o caos, com três pinheiros diferentes e sete pés de primavera onde caberia quando muito um. Como as raízes das primaveras passaram a interferir no encanamento, os pinheiros não alcançaram plenitude, e resolveu-se instalar a cerca elétrica, meu pai ordenou que tudo fosse arrancado. Ordenou do jeito dele, sem um plano substituto. Predominava o verde e quase não havia flores. Então comecei a observar a disposição da área, o percurso diário do Sol, os locais onde predominavam as luzes e as sombras, a fertilidade do solo. Entre tentativas, erros e acertos, creio ter levado cerca de dois anos. Muitas plantas não vingaram, outras deram-se bem até demais. Houve planta que eu quase descartei antes de perceber que ela apenas enraizava-se com segurança antes de florescer. Isto é algo fenomenal. Quando tiramos a muda do vaso e colocamo-la na cova, durante um bom tempo ela comporta-se como se ainda no recipiente. Depois que o emaranhado de raízes adaptou-se em definitivo, a planta encorpa e despeja flores com exuberância digna de palmas. Foi o que se deu com um pé de camarão amarelo: no começo deste ano estava murcho, com folhas desbotadas e flores irrelevantes. Hoje, parece um candelabro natural, com todas suas inflorescências amarelas atraindo as abelhas para as flores brancas.

O manacá tem história. Li com muito interesse uma biografia de Tarsila do Amaral e soube que ela apreciava muito esta planta, a ponto de utilizar as cores de suas flores em telas como Manacá, O Lago e Floresta. A flor do manacá tem o seguinte ciclo: nasce roxo escuro, desbota adquirindo um tom rosado e termina com o branco puro. Possui perfume forte. Resolvendo plantá-lo em homenagem à pintora, eu não quis qualquer rebento, mas necessariamente um oriundo daquele existente na casa de minha avó. Pode ter demorado um pouco, mas consegui a muda e enterrei-a no local apropriado. Este ano, apesar de ainda nanico, já produziu um número considerável de flores e atraiu exatamente a espécie de borboleta que contribuiu para o meu aprendizado prático na infância. Há mutualismo entre a planta e a borboleta, e embora tenha percebido algumas folhas devoradas, não interferi.

O local ameno - onde bem eu cantaria a minha Glaura se tivesse uma - atrai inevitavelmente um bem vindo grupo de pequenos animais. Circulam por cima dos muros lagartos duas, três e até quatro vezes maiores que as lagartixas de parede. Observei ao menos duas espécies distintas. Vez ou outra eles vêm passear na garagem e correm desajeitados, escorregando no chão liso ao perceberem nossa presença. Param, olham-nos com um olho, confirmam com o outro e tornam a correr. Moram no terreno baldio a nossa esquerda e suspeito que façam um reconhecimento do lugar para futura procriação. O cocho de quirera de arroz atraiu nada menos que quatro tipos de pombos e rolinhas. Há o pombo ordinário de praça, uma pomba selvagem de igual tamanho, chamada por aqui de "pomba legítima", outra intermediária, de penas acinzentadas e a menor de todas, a rolinha caldo de feijão, concorrente com o pardal em número e capacidade de adaptação, com a vantagem de ser ave nativa. Se deixarmos, estas últimas fazem seus ninhos em nossos bolsos. Com a primavera, chegaram as andorinhas. A variedade maior, entretanto, encontra-se no quintal, onde até gavião faz escala. Não menciono beija-flores e borboletas pois são subentendidos. Ontem, alguma coruja comeu um rato e regurgitou na grama um bolo de pelos e ossos. O bolo estava organizado demais para ter sido serviço de algum gato.

Inicialmente eu pretendia recorrer apenas às plantas menos comuns. Com o tempo vi que a mistura entre o comum e o incomum enriquecia o ambiente. Se a flor-de-papagaio lisa é muito utilizada para arrumações natalinas, a variedade crespa e de coroa são menos fáceis de encontrar. Todas têm um canteiro na minha casa, porém noutros espaços. Lembrei-me de Vatel, interpretado por Depardieu no filme homônimo e resumindo bem o espírito da época: Harmonia e contraste. A beleza surge destes dois elementos. Poucos objetos são belos ou feios em si (...) Saber disso é o primeiro passo de um artista. No mesmo canteiro onde há um lírio vermelho repolhudo e a rara flor-da-meia-noite ou cacto triangular, há uma touceira da humilde maria-sem-vergonha. Não fui eu quem a plantou e até agora não sei quem foi. Ela está lá, contudo, fazendo jus ao nome. E dando mal exemplo, pois outro dia reparei num vermelho vivo e diferente. Olhando mais de perto, descobri uma sálvia vermelha cuja origem também ignoro. Havia sálvias no jardim, é certo, mas em outro canto. Igualmente, desisti de dar atenção apenas às flores vistosas. Hoje tenho prazer em descobrir flores minúsculas como as da mirra e da guiné, esta cara aos devotos de certas religiões de origem africana. Foi num anoitecer de verão, após a chuva, fumando cachimbo na calçadinha e contemplando as plantas molhadas, que descobri a paz de espírito como algo alcançável.

O jardim torna-se assim um repositório de lembranças pessoais. Esta planta e aquela foram dadas pela minha avó. Aquele pé foi trazido pelo meu padrinho e sua companheira. Estas duas pedras foram trazidas por dois casais amigos de uma viagem feita pelo Sul de Minas Gerais. Esta terceira foi dada pelos mesmos casais, mas diretamente de São Tomé das Letras. Ali, o presente de um primo para a minha mãe, pelo aniversário. São estas pequenas coisas que permanecem. Três roseiras foram-me dadas pela minha mãe, como consolo pelo sacrifício da Cigana e por isso hesito em substituir uma estéril. Minhas "frustrações botânicas" eu menciono apenas por teimosia: ainda não consegui descobrir como é a flor "olho de faisão" e nunca consegui cultivar cravo para corte, somente o pequeno. O pé de arruda foi o primeiro que eu vi florido. Arruda dá flor?, estranharam. Planta que, junto a cães da raça pincher, lembram-me uma tia-avó. Quando pequeno, saía em seu quintal e o primeiro odor percebido era o de um pé de arruda. Logo testemunhava a matilha anã esparramar-se em suas casas e abrigos para latir com apenas a cabeça de fora.

RETRATO VII
O Engraxate, ou a Gazeta Jecoabense


O Miguel do Cartório está bem de vida, paga as contas em dia... O "pobrema" é que com aquela cara de defunto mal enterrado ele não vai arrumar mulher fácil. Olha ele sentado na porta do cartório, fumando. Já deve estar com o pulmão preto.

Dona Maria vai todos os dias na Igreja. Atrasou uma prestação do sofá que ela comprou, mas os filhos ajudaram. Tem mais é que ajudar mesmo.

A Marlene largou do pingaiada do marido e montou um negócio de bolo. É com isto que ela sustenta as crianças. Tem mês que sobra, tem mês que falta, mas vai tocando.

Juceniro está estudando para advogado. Se forma ano que vem.

O Rodson montou aquela oficina de peça de carro, mas é tudo fachada. Tem muita sujeira ali. Essas coisas de droga.

Mas aquela varredora é uma anta mesmo! Todos os dias ela põe o carrinho de lixo bem no portão do estacionamento e todos os dias alguém que quer entrar dá uma buzinada no rabo dela. Parece que ela faz de "poprósito"!

Agora que o General Semprônio está morre não morre, quero ver se ele vai mandar Deus ou o diabo deixarem ele informado. Sai fora...

Viu. Esses dias aí eu fiquei rindo sozinho na rua. Eu vinha para cá e de repente escuto um "toc ... toc ... toc ..." baixinho. Olho de lado e vejo uma bicicleta com três rodas em vez de duas. Tinha duas na frente e uma atrás parecendo "veocípidi". No meio das da frente tinha uma caixa cheia de tranqueira. A bicicleta tinha até um paralama de Fiat na frente. Largão e preto. Mas daí eu dei risada por causa do cartaz que o sujeito pendurou na parte de traz: "Procuro mulher para morar comigo. Não quero viúva nem mãe solteira".

O outro, faz favor.

Falando nisso, a Marcela está no terceiro filho já. Um de cada pai. Essa aí já não faz o gosto do cara.

Não falei que a Oranides ia ter problema? Fica abrindo crediário nas lojas para os outros comprarem, dá nisso. O esperto não paga e ela que fica com o nome sujo. É bom para aprender. Mas não aprende, é burra que nem aquela lá.

A Silvana virou professora, é merecido. Estudou e trabalhou para sustentar o pai, a mãe e os irmãos. O que ela tem que fazer é parar com o remédio.

Seu Oswaldo agora não sai mais de casa. Tem medo de sair na rua e o carro pegar. A pessoa fica velha, fica com essas coisas mesmo. Também, passou a vida só lendo notícia de acidente. Está lá. Esses velhos são fogo, em vez de usar sandália ou chinelo por causa das joanetes, fazem um rombo no couro do lado do sapato. Fica bonito.

A perna da mãe do Cláudio não cicatrizou, agora vai ter que cortar. Está com a operação marcada já. Será que tem que fazer velório da perna da mulher? Acho que os médicos dão fim lá no hospital mesmo. A velha não andava, pelo menos não vai fazer falta.

Ah! ... Sarnento!

Precisa ver o furdúncio que fizeram na casa da Quequé "véia". Ela com essa mania de não atender campainha, acharam que ela tinha morrido, a empregada não estava. Chamaram o bombeiro e botaram a porta no chão. A mulher saiu que saiu branca do quarto.

Adelardo, depois que aplicou golpe em todo mundo, virou crente e abriu uma igreja. Está quase sem voz de tanto gritar. Lá na pensão do Camilo (N.R.: delegacia de policia) estão só olhando.

O prefeito Cabatosta disse que vai por pedágio na entrada e na saída da cidade. Põe pedágio na porta do quarto dele que ele ganha mais. Safado.

Dois real. 'Brigado.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 10/11/2005

 

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