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Segunda-feira, 14/11/2005
Como parecer culto
Marcelo Maroldi

Atualmente, temos livros sobre praticamente qualquer assunto que se deseja ler. Há livros sobre as aranhas vermelhas do norte do Amazonas e sobre abduções extraterrestres de pessoas albinas, sobre gastronomia nas ilhas Faroe e sobre como conquistar garotas nas baladas GLS da Turquia. Absolutamente tudo tem um livro correspondente. Nos últimos anos, principalmente, tornaram-se comuns os livros for dummies ou "aprenda em 10 lições"... Os últimos que vi tratavam de ensinar como parecer culto, um intelectual, como se portar em museus, teatros, exposições, como conversar sobre literatura, sobre cinema e sobre artes plásticas e parecer que entende do assunto. Não, não é piada, leitor (e eu juro que gostaria que fosse). Você não precisa entender nada de literatura!, basta comprar o livro e fingir que entende. É uma fraude intelectual!

Antes de prosseguir, é importante dizer que estes livros não têm como proposta ensinar o básico do assunto, não é isso! Estes livros têm como objetivo apontar o que você precisa falar quando te perguntarem de literatura, por exemplo, se é que alguém te pergunta isso (aliás, se alguém te pergunta sobre este assunto, favor me apresentar tal pessoa). Por isso soa como piada! É quase um teatrinho: os autores mostram o que você precisa dizer e você não precisa estudar o assunto, basta repetir laconicamente o que te mandarem dizer. Minha crítica não é contra quem escreve e publica tais livros, eles têm, provavelmente, interesses econômicos. Agora, comprar um livro desse?, tenha santa paciência (aliás, expressões populares não devem constar no livro, elas não combinam com gente culta).

É difícil você encontrar alguém que admita ler tais livros, afinal, não é elegante ler tal literatura. O legal é você dizer que sabe tudo de literatura porque já leu muitos livros, lê revistas especializadas, participa de cursos, freqüenta uma biblioteca pública, e não porque comprou os "10 livros que você precisa saber falar quando te perguntarem de literatura". Entretanto, caso você conheça alguém que lê esses livros e o questionar, ele dirá, provavelmente: eu não tenho tempo para ler o que eu gostaria de ler. É claro que eu não irei discutir o assunto, cada um sabe o que fazer com o seu próprio tempo. Porém, acredito que quem lê um livro como este - e que, portanto, precisa ou deseja saber falar do assunto - deveria arrumar tempo para estudá-lo. Se a pessoa não arruma tempo para estudar o assunto, é porque não deve encará-lo como importante para sua vida. Ah, e se não o encara como importante, não deveria querer falar sobre ele e se importar com isso.

Tudo bem, tudo bem! A pessoa tem todo o direito de falar sobre filmes clássicos se quiser, mesmo que não saiba nada disso. E daí ele compra o livro. Mas, por que essa necessidade de parecer culto? Por que todo mundo atualmente tem que ser especialista em absolutamente tudo? Por que não posso dizer que não entendo nada de teatro russo, ou de cubismo? Isso vai radicalmente contra tudo o que vejo nessa minha vida. As pessoas estão cada vez mais estúpidas, fúteis e despreparadas, por que, então, devo me preocupar em me mostrar culto e discutir com elas? Por que todo mundo precisa ser culto? É muito raro encontrar pessoas intelectualizadas de fato, por que preciso ler teatro russo for dummies? Talvez, sendo assim, mostrar-me (mais) culto que elas parece demonstrar que sou melhor que as mesmas. Só isso. É quase uma competição e vence quem mostrar ser mais culto.

Dentre os assuntos que você precisa conhecer para não ser considerado um inculto (e para vencer essa competição bizarra), temos um interessante: filosofia, que está na moda. Hoje, proliferam-se cursos (não acadêmicos) de filosofia, livros de filosofia para leigos, artigos em jornais, revistas, etc. Antigamente, somente era necessário citar Marx para estar adequado. Agora, não! Se você não conhecer uma meia dúzia de filósofos, vai ter que apelar para os livros de auto-ajuda, como os supracitados. Colaboram para isso obras como O mundo de Sofia, a popularização (sic) do assunto, como o (péssimo) quadro "Ser ou não ser", do Fantástico e a presença de filósofos na televisão, como a Márcia Tiburi no Saia Justa. Embora a iniciativa seja louvável, filosofia não é algo que se aprende em poucos meses. Não é algo imediato e tampouco trivial. É necessário anos de dedicação debruçados sobre um mesmo autor para poder dizer que o conhece. Então, como é que as pessoas discutem filosofia? A moda entre a classe alta é discutir filosofia, e eu pergunto: qual?, o quê?, como assim? O sujeito assiste o Café Filosófico (TV Cultura) e sai dizendo que estuda filosofia? Um professor meu na Unicamp dizia que era preciso se dedicar 4 horas por página de obra filosófica para entendê-la. É claro, leitor, que ele estava brincando... 4 horas é muito pouco! A maioria das pessoas que conheço não lê 4 horas num semestre todo (incluindo a leitura das bulas de remédio e do horóscopo), como poderiam então conhecer e discutir este assunto em profundidade? Antigamente, a moda era dizer que se estudava crítica literária. A elite paulistana, por exemplo, enchia os cursos particulares sobre o assunto, pagando preços altos para ver nomes conhecidos lecionarem. Acho que a crítica literária ficou muito simples, todos já sabem tudo a seu respeito, e por isso partiram para a filosofia. Deve ser isso...

Outro assunto que você não poderá negligenciar é o cinema. Mas, não, não o Hollywoodiano. Tem que ser filmes de arte, aqueles que não passam na TV e nem na maioria dos cinemas comerciais. Cinema francês, ou Afegão, ou mesmo Bollywood já serve. O que não pode é não gostar de nenhum deles, desconhecer os nomes dos autores e diretores e odiar filmes "parados". Isso é uma falha irreparável!

Teatro, claro, é assunto indispensável. Mas não pode ser qualquer peça. Comédia, nem pensar. Precisa ver os clássicos, ou os de vanguarda, tão de vanguarda que quase não se entende nada. Aliás, esse é o ponto! Quanto menos inteligível, melhor é.

Na música, não se pode, jamais, dizer que se ouve pagode, axé ou sertanejo. Isso é inadmissível! É necessário gostar de MPB (por sorte, é um campo vasto demais para se complicar ao dar uma opinião), Bossa Nova e, se possível, música clássica. Seu Jorge, Los Hermanos e Lenine somam pontos também.

Sobre televisão, há 2 opções válidas: dizer que assiste (e então dizer o que assiste) ou dizer que não assiste, que também vale. Se decidir por dizer que assiste, tais (e somente estes) programas podem ser citados: Manhattan Connection, Roda Viva, Café Filosófico, Entrelinhas, [re]corte cultural, Conexão Roberto D'Ávila, Boulevard Brasil, Observatório da Imprensa, jornalismo em geral (preferencialmente CNN ou BBC).

É necessário, também, conhecer algumas pessoas e o que elas fazem ou falaram. Se você citá-los então, é perfeito! A minha lista tem: Diogo Mainardi, Olavo de Carvalho, Ferreira Gullar, Michel Melamed, Chico Buarque, 1 diretor de cinema, 1 diretor ou ator de teatro, 1 político de esquerda (PSOL, se possível), 1 filósofo qualquer, 1 poeta pouco conhecido, 1 artista plástico (vale parente ou vizinho), 1 teólogo qualquer (teologia da libertação não vale, está fora de moda), 1 jornalista que escreva para um grande jornal e 1 artista não reconhecido, mas "com muito talento" e que vai "estourar".

Na internet, você deve mencionar Le Monde e El Pais, Primeira Leitura e revistas similares, site do Canal Brasil, portais de cultura (literatura, música, etc) contidos nos grandes sites e alguns blogs de escritores, jornalistas. E você pode citar este Digestivo Cultural também, claro.

Uma outra característica que causa muita boa impressão é citações e comparações que pouca gente conhece. Por exemplo, dizer que um pensamento ou alguém é muito cartesiano (anticartesiano é melhor ainda!), ou que o behaviorismo radical é insustentável ou que a escola chilena de filosofia é muito interessante vai deixar a maioria das pessoas impressionada. Calma! Mesmo que você também não saiba o que seja isso, ninguém vai ousar te perguntar e demonstrar não sabê-lo, e em último caso, você diz que é um assunto muito denso para aquele momento e que vocês podem marcar um café qualquer dia desses (e, evidentemente, não marque!). A propósito, marcar de bebericar cafés em livrarias é algo típico da pessoa culta. Anote aí.

Se você fizer tudo isso vão te achar inteligentíssimo, creia-me. Para completar a fraude, meus amigos, falta só um detalhe: o seu perfil do Orkut! Sim, isso é muito importante. No seu perfil, você deve acrescentar todas as comunidades das personalidades acima e dos assuntos também. Comunidades como "Teatro Ucraniano moderno", "Bach" ou "Gothic Poetry" ajudam muito. Depois, peça a uns amigos seus (uns 3 ou 4) para escreverem depoimentos a seu respeito. Os depoimentos devem mencionar sua cultura vastíssima, suas viagens para o Egito e seus tempos de Universidade Pública, curso de teatro, aquele mico no Louvre ou namoro com personalidades. E, finalmente, o golpe final: sua autodescrição. Essa precisa ser matadora, como algo bem abstrato (um neosartreano em busca da consciência plena), romântico (procurando alguém pra dividir os sonhos) ou culto mesmo(gosto de Stravinsky e estudo Piaget...). É batata, pessoal! Se você for "solteiro", vai chover amigos querendo te conhecer melhor!

Isso sim é uma receita de fraude! Vão te achar culto! E eu nem cobrei nada por isso... Boa sorte!

Nota do Editor
Leia também "Sinais de Vulgaridade".

Até nunca mais por enquanto

Luis Antônio Giron nem parece um jornalista em seu último livro Até nunca mais por enquanto (Editora Record, 2004, 192 págs.). A literatura que ele faz impressiona por características que geralmente não são encontradas em jornalistas-escritores. Os seus 20 contos do livro são exemplos de que a literatura não tem limites quando feita por bons escritores como ele.

Em primeiro lugar, há de se destacar a ousadia do autor. Ele passeia confortavelmente por caminhos incomuns e quase sempre difíceis de se produzir. O texto é tão artificialmente construído que adquire mais significado do que de fato ele talvez o tenha. Os contos não deságuam em sonhos/pesadelos, como a contra-capa diz. São mais fortes que estes, são delírios, devaneios gratuitos, alucinações descabidas, absurdas, inconseqüentes. Sensacionais, porém.

Por vezes, o leitor se encontra no meio do conto e ainda não tem a mínima idéia do que está sendo dito. Embora seja possível extrair uma linha de pensamento comum a todos, cada conto se mostra inesperado e surpreendente ao longo das páginas. Muitas vezes, não é possível entender a cena, reconstruir o cenário do delírio do autor. Mesmo que se tente, algumas vezes a incoerência e o absurdo vencem a realidade, não tem jeito. E, ainda assim, é uma delícia. O absurdo é uma delícia. A linguagem, claro, acompanha o sonho. Em algumas partes, o texto flui tão rápido que nos deixamos seguir com ele, e o absurdo então cresce.

Entretanto, não é, certamente, um livro que agradará a todas as pessoas. É um livro que exige demais dos seus leitores. E sugiro lê-lo pouco a pouco, 1 ou 2 contos por dia. Assim, o texto pode ser melhor apreciado, a alucinação potencializada a cada página.

Para ir além





Marcelo Maroldi
São Carlos, 14/11/2005

 

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