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Sexta-feira, 30/12/2005 O 4 (e os quatro) do Los Hermanos Julio Daio Borges
O axé enojou muita gente da minha geração desde a explosão da Daniela Mercury no início dos anos 90. Mas temos de reconhecer e convir: a explosão do hardcore brasileiro, via 89 FM, foi tão ou mais danosa, para os ouvidos nacionais, do que o lobby da Bahia durante o carnaval. Meus amigos decoravam e cantavam abraçados, no início da faculdade, em geral bêbados, "Selim" dos Raimundos ("Eu queria ser/ O banquinho da bicicleta..."), e eu não achava a menor graça - embora reconheça hoje que o primeiro disco é bom. Outros amigos, mais novos, entoavam as piadas sem graça do Mamonas Assassinas ("Mina, 'seus cabelo' é da hora...") - que encerrou tragicamente sua carreira mas que, nem por isso, no meu juízo, melhorou. Em resumo: eu não gostava do rock brasileiro dos anos 90. Isso explica porque, em 2003, eu deixei passar um texto do Mario Marques em que ele desancava toda a cena roqueira oriunda do final dos anos 90, começando pelo Los Hermanos. Era exagerado, mas era também engraçado e, pelo bem da polêmica, eu acabei publicando. Lembro que o texto foi lincado pelos principais sites de fãs do Los Hermanos e, em um blog dedicado a eles, o Bruno Medina - tecladista da banda - orientava seus fãs a não responderem ao texto do Mario Marques no Digestivo Cultural... Reconheço que não foi uma boa maneira de o Bruno tomar contato com o Digestivo. O Mario se envolveu em outras polêmicas depois - a mais notória por causa de uma discografia do Guinga - e, com o passar do tempo, eu notei que havia algo de pessoal nos seus ataques ao Los Hermanos. Afinal, ele não perdia a oportunidade de falar mal da banda e sustentava algumas teses meio absurdas como a de que tudo o que o Los Hermanos queria era uma nova "Anna Júlia" - sendo que eles próprios, é sabido e notório, têm horror à onda de beatlemania que o hit provocou e, ao vivo, se recusam a tocar essa canção... Enfim: eu fui me arrependendo de ter publicado o texto do Mario Marques. No ano passado, eu estava entrando ou saindo da casa da Carol quando ouvi "Samba a Dois" na rádio Eldorado (sim, eu ouvia rádio antes do advento dos podcasts). Foi um choque: a batida, o andamento, as guitarras, a voz... Fiquei escutando até acabar para depois anotar o nome. Não era possível, era Los Hermanos! Mas eles fazem samba? Como é que pode? Eu estava chocado... No mesmo final de semana, ou depois, eu e a Carol fomos ao Espaço Unibanco e, numa das nossas descobertas da Neto Discos, eu adquiri o Ventura (2003) por um preço módico. Nessa altura, eu não havia me divorciado apenas do rock nacional mas não tinha a menor idéia do que acontecia na cena rocker do final dos anos 90, início dos 2000 - cujo maior expoente, vimos ao vivo agora, é o The Strokes. Logo, para mim, as guitarras do Los Hermanos com som de enceradeira eram uma completa novidade em termos de timbre. Depois, claro, os arranjos de sopro, os vocais roucos e arrastados, as letras tão boas...! Eles eram roqueiros alfabetizados. Na realidade, eram tão sofisticados e sutis que, em Ventura, já extrapolavam o gênero rock'n'roll. Antes disso - antes da minha descoberta do Ventura -, eu esqueci de contar, eu havia ido ao um show, com a Carol, do Moreno+2 (ou do Domenico+2, eles mudam toda hora de nome...). Todo mundo sabe que eu não tenho mais paciência para o Caetano Veloso, sobretudo quando ele não canta, mas o Moreno tinha me parecido simpático - veja só - numa versão de uma música do carnaval da Bahia...! Pois é, também pela Carol - que ainda gosta do Caetano -, corri atrás das entradas para o Moreno+2 no ex-Directv Hall. Não foi um show nem ruim nem bom, eu não lembro de nenhuma música - eles não tocaram nenhuma que eu conhecesse -, mas teve uma coisa boa: lá pelo meio do espetáculo, eles chamaram ao palco o Los Hermanos. Não me impressionou nem deixou de impressionar, mas eu desfiz a imagem ruim da época de "Anna Júlia"... A imprensa, desatualizada para variar, falava muito pouco do Los Hermanos. O máximo que fazia era engrossar o coro da idolatria à la Beatles querendo criar um "auê" em torno de, por exemplo, Marcelo Camelo. Lembro de uma matéria sobre ele querendo alçá-lo ao status de o compositor da nova geração. Ele quase se escondia na foto e a razão da matéria com tanto destaque era nada mais nada menos que... Maria Rita. Ela havia gravado Camelo em seu primeiro CD e, na imposição do marketing da gravadora, pipocavam pautas relacionadas a ela em toda parte. Era artificial e falso porque mesmo eu fiquei com a impressão - errônea - de que o Marcelo Camelo era "o mais importante" da banda... Por isso o meu segundo choque quando eu descobri o Rodrigo Amarante. Eu e a Carol tentamos ir ao show do Ventura, mas como eles estavam no final da turnê, as datas eram escassas e os ingressos estavam sempre esgotados. Nosso consolo foi o DVD, que logo saiu, Los Hermanos no Cine Iris (2004-5). Dei de presente pra Carol e fomos assistir, curiosos, na mesma noite. Quase caí de costas: todas as músicas de que eu mais gostava eram cantadas pelo (ou composições do) Amarante. Reconheço que o Camelo é mais compositor, é mais complexo e mais elaborado, mas, para mim, a veia roqueira do Amarante sempre falou mais alto: "Último Romance", "Do Sétimo Andar", "O Velho e o Moço", "Deixa o Verão" e "Um Par". Nesse ponto, eu vivia a minha fase Kazaa e, desconfiado de que os dois primeiros álbuns do Los Hermanos não fossem tão bons, baixei-os, faixa a faixa, pela internet mesmo. De maneira equivocada, atribuí a baixa qualidade sonora das faixas à falta de cuidado das primeiras gravações de uma banda iniciante... Um amigo me gravara, antes, "Quem Sabe", e junto com "Sentimental", eram as minhas duas preferidas, respectivamente, de Los Hermanos (1999) e Bloco do eu sozinho (2001). Rodrigo Amarante, compositor e intérprete, em ambos os casos, mais uma vez. Essas constatações, a partir da "descoberta" do Amarante, explicam a Nota enviesada que produzi, este ano, para o "Digestivo nš 227" sobre o DVD. Eu quase dei como certa a separação da banda, supondo um conflito semelhante ao que ocorreu entre Frejat (Amarante) e Cazuza (Camelo), a partir do Rock in Rio (1985) e de Maior Abandonado (do mesmo ano). Corri um risco enorme ao assumir esse ponto de vista e, de certa forma, me arrependi - principalmente quando encontrei, em maio deste ano, em pleno Rio de Janeiro, o próprio Rodrigo Amarante, em pessoa... Eu e a Carol estávamos esperando para almoçar no restaurante Celeiro, no Leblon, que havíamos descoberto no dia anterior, quando ela olhou e, de repente, disparou: "Ué, aquele ali não é o cara do Los Hermanos?" "Que cara? Onde? Cadê? (...) É ele mesmo! Vamos lá falar com ele?". A Carol, nesse momento, travou. No casal, sou eu quem mais tem a mania de falar com "famosos", embora ela os reconheça sempre a quilômetros de distância... "Ah, vamos depois"; "Vamos esperar ele almoçar"; "O que é que vamos falar?". Com todo o nervosismo, puxei ela pelo braço e fomos. A Carol tinha retrocedido, aparentemente, à época em que era fã do RPM e do Paulo Ricardo. Só conseguiu sorrir o tempo todo e falar pro Amarante: "Nossa, a gente ouve vocês direto...! Nossa, a gente adora...!". "Oi, você não é o Rodrigo Amarante do Los Hermanos?". Ele foi muito cortês e estava acompanhado de duas moças que tiveram muita paciência, enquanto eu perguntava coisas que as pessoas deveriam parar pra perguntar toda hora. Confirmei o que o Maroldi havia dado em sua Coluna - o fato de que eles gravavam o quarto disco desde o começo do ano -, e eu ousei perguntar: "É o Kassin que vai produzir?" "Já está produzindo!", Amarante respondeu com um sorriso no rosto. Eu contei, ainda, que estávamos muito impressionados com a sua performance no DVD (com a performance dele, Amarante) e que não entendíamos porque a imprensa - sempre desatualizada - dava tão pouco destaque a ele, sendo que, comparado ao Marcelo Camelo, ele tinha a mesma importância. O Amarante, então, foi muito generoso e insistiu que o grande lance do Los Hermanos era que ninguém ali tentava ser "alguém" e que eles eram, mais do que tudo, uma banda. Ficou a promessa de ir ao seu próximo show em São Paulo - ele concordou que viviam lotados - e, na saída, eu lhe entreguei o meu cartão do Digestivo Cultural. Avisei que havia escrito sobre o DVD mas que achava que ele não iria concordar... Rodrigo Amarante fechou o encontro com chave de ouro: "Ah, mas eu não preciso concordar, não...!". O 4 foi um dos discos de rock que eu mais esperei. Entrava no site só para ouvir uma versão meio poluída do primeiro single, "O Vento" (de Amarante!). Tive a manha de aderir à pré-venda do CD, para que o meu chegasse antes, e adquiri, oficialmente, os dois primeiros discos que faltavam (porque quando eu gosto, eu compro). O 4 me pareceu meio melancólico, como a todo mundo aliás, à primeira vista. Não entendi direito, desde que escutei a primeira faixa, "Dois Barcos", em primeira mão, no podcast É Batata, do Fred Leal (as rádios acho que, até hoje, não tocaram essa canção...). O Camelo, assumidamente acústico, me soava ao Caetano de Qualquer coisa (1975, ele de novo); e o Amarante, também meio triste pós-exílio, produzia versos como "sorte é preciso tirar pra ter". Como o Ventura, que eu não processei em primeira instância e fiquei esperando para escrever alguma coisa depois, o 4 acabou passando e eu acabei não dando no Digestivo Cultural. Portanto, é mais do que justo que ele entre, aqui, neste Especial Melhores do Ano. Eu e a Carol ainda fomos, finalmente, ao show e eu nunca vi tanto respeito, por parte de uma platéia, a uma banda de rock nacional. Nos degraus do ex-Directv Hall, dois garotos entoavam "Pierrot", em duas vozes, como na versão original, e outras tantas que eles queriam que tocassem naquela noite. O set abriu, óbvio, com "Dois Barcos", e o público, majoritariamente de universitários com a camisa polo igual à do Los Hermanos, balbuciava as letras como se estivesse numa missa, num transe religioso. Às vezes, alguém mais exaltado gritava: "Amarante gostoso!" (Esse alguém era homem...) Me incomodou um pouco a maneira excessivamente despojada com que eles executaram suas peças, mas talvez fosse uma reação defensiva ao mainstream e ao horror que ele, hoje, desperta. Não chego a achar, como o Guilherme - que também estava naquele show - que o Amarante é o maior letrista desde o Chico Buarque, mas sou, como tantos milhares de outras pessoas, orgulhosamente fã do Los Hermanos. Julio Daio Borges |
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