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Quarta-feira, 28/12/2005
Publicar um livro pode ser uma encrenca
Ana Elisa Ribeiro

Primeiro você sente vontade de escrever. Se houver condições e aparato técnico, você senta e escreveescreveescreve. Depois você lê o que fez. Ou lê o que cometeu. Depende.

Há quem deteste ler depois de feito. Há quem, ao contrário, lamba a cria até gastar. Eu sou do primeiro tipo. Até lambo a cria, mas sinto certo gosto amargo. Deixo pra lá, que aquilo já não é mais da minha conta.

Há quem ache que a perfeição vem com o retrabalho. Mexe, mexe, burila, troca, revira, inacaba o texto mais de mil vezes. Sua, sua, sua.

Há quem, como eu, ache que o que é bom nasceu bom, veio de estalo. Uma idéia que partiu de uma observação. E o que é ruim vai pro lixo e pronto. Natimorto. Não merece atenção, muito menos retrabalho.

Acontece muito de o escritor escrever, achar que está bom, deixar de molho por uns tempos e reabrir a gaveta (ou o arquivo) quando já nem se lembra mais do que havia feito naqueles idos. Há registros de, pelo menos, duas reações. Uma é reler e pensar: putz, que vergonha! A ação que se segue é a de amassar, queimar, deletar. Há, por outro lado, a avaliação: putz, fui eu mesma que escrevi isso? Que idéia boa! E então dá aquela vontade cega de publicar.

Há também, e é muito comum, quem não tenha a menor noção de que a publicação de certas coisas é um impulso. E de que esse impulso pode fazer mal aos outros. O fato de o computador e os softwares facilitarem muito a editoração de um livro fez surgir um caminhão enorme de livros publicados por mês, o que não multiplicou a sensibilidade ou o senso crítico do leitor. Também as escolas não melhoraram e nem os autores tiveram mais bom senso.

Publicar, originalmente, deveria ter o sentido de tornar público. No entanto, na vereda literária nacional, publicar é apenas sinônimo de lançar um livro. O lançamento pode acontecer em grande estilo, com fila de autógrafo e resenha no jornal, mas também pode acontecer apenas na ficção da cabeça do escritor, numa festinha de meia dúzia de parentes e nenhuma expressão. É assim que tem sido para quase todos.

Lançar um livro também pode significar gastar uma grana preta, todas as economias do porquinho literário, deixar de trocar de carro, negligenciar certas despesas e se lançar na alegria de ver prontos o miolo, a capa, a orelha e o release. Release? (De certa feita, perguntei a Adélia Prado qual havia sido o gosto de ver o primeiro livro pronto. Pergunta clichê, eu sei. E ela disse que era como ficar noiva. Eu afirmei que era muito melhor. Também, meu primeiro noivado foi pro beleléu e, quando me casei, não tive tempo para essas coisas).

Publicar é uma operação tanto mais sofisticada, já que ela une pontas complicadas do processo de lançar um livro. Deve haver um escritor, uma editora (ou ao menos uma gráfica), um distribuidor e uma livraria. Essas duas últimas peças é que fazem com que aquele livro se torne um texto portátil que vá parar nas mãos do leitor, esse artigo de luxo.

Caso um livro complete esse percurso com todas as peças, provavelmente sairá do controle do autor, aquele que teceu o rascunho da obra um dia (e, acreditem, ela será sempre um rascunho). Isso acontece mesmo com tiragens pequenas e distribuição precária. Em geral, cada exemplar do livro faz um caminho impossível de prever. O autor tira as idéias da cabeça, dá a elas formato inusitado, bonito, literário... e lá vai a obra virar um produto editorial.

Caso o livro seja feito por profissionais, deverá ser tratado, revisto, corrigido, reordenado, acrescido de apresentação (que é uma espécie de "entrada" para o prato principal... mas às vezes é o prato principal) e outros apetrechos que tornam o livro, enfim, um livro. O projeto gráfico é outra coisa que pode orientar, mudar e até mesmo determinar as leituras da obra. Pegue aí um projetista mandão e o autor verá que teve, na verdade, seu primeiro leitor barra-pesada. E pior: alguém que tem a perícia de meter no texto uma letra, uma capa, um formato que podem mover tudo ladeira acima, ou ladeira abaixo.

Acreditem: um livro se lê, mas um livro se vê. Às vezes com tanta sutileza que não se percebe o estrago que um mau projeto gráfico faz.

Então: vamos lá. Ficou pronto o livro e o autor já se vê felizardo. Tendo pago ou não a edição, teve distribuidor razoável e chegou a algum leitor. Seja porque foi comprado, dado de presente (ou dado como ofensa), indicado no vestibular (quer leitura mais mala?) ou adotado em escola. O autor será lido, e é isso o que importa para a maioria deles. De vez em quando pinta um querendo satisfazer a um desejo masturbatório ou rechear o currículo, mas em geral escritores de literatura pensam menos nisso e mais na linguagem.

O leitor, quando pega o livro, dá início à leitura de um rascunho que seja completado à medida que ele junta sua alfabetização mais primária à bagagem cultural que tem. E assim vão se fazendo sentidos. Às vezes eles coincidem com os que o autor havia pensado, outras tantas vezes eles vão longe, atravessam, retornam, afluem. E o autor está quase sempre longe, desprezível, esquecido. O momento da leitura é do leitor. Ainda não interessa o que vão dizer o professor do cursinho ou a resenha do jornalista de cultura. Por enquanto, o livro e eu, no banheiro, por exemplo.

Daí começam os entrecruzamentos de leituras. Umas são mais autorizadas que outras, parecem melhores, mais pertinentes. Alguns leitores são mais ousados, mais ativos, mais descarados. Quase se arvoram pela co-autoria. Há os donos de sesmarias em revistas, sites e jornais, leitores que parecem mais preparados para ler e para contar aos outros, sob muitos vieses, o que pensam que leram. Na verdade, leram apenas. Como tantos outros leitores que não possuem sequer um lote onde escrever. E há o leitor tímido, modesto e pacífico.

O autor fica quieto, ainda, enquanto não for chamado a dar explicações. E quando o é? Aí é o pesadelo. Como explicar a própria obra? Há quem goste. Coisa meio hermafrodita. Há quem fale e mude de assunto, desvie, entre na digressão. Há quem goste mais de falar de si, o livro é apenas um detalhe. Então descobre-se um leitor no Amazonas que tem, na cabeça, a leitura do meu livro de poemas lançado há 10 anos e mal-distribuído. Vendido no aniversário da cidade, sem release e sem resenha. No meio de uma coleção de mais de 70 nomes, alguns mais conhecidos. E eu lá, no meio da moçada, fazendo pouco mais do que tirar uns poemas da gaveta.

Como é que esse livro chegou lá? Que história bonita, meu Deus! Como é que esse leitor me encontrou? Como ele sabe de mim? Já nem me reconheço mais neste livreto e lá está ele, querendo saber se o poema da página 21 é inspirado em Allan Poe? Allan Poe deve estar na cabeça do leitor, porque não estava na minha. Mas não é improvável que as coisas se pareçam.

Depois de uns anos, volta a dar aquela vontade louca de lançar novo livro. Tudo de novo. Desta vez solo, com editora, orelha de poeta, release e nota nos jornais. Que graça. O autor continua meio coadjuvante em uma cadeia longa e tenebrosa. As porcentagens de direito autoral (10% do preço de capa para os bambambãs) comprovam o escanteamento do dono do treco. Mas, tudo bem, a editora fez um investimento. Fez um favor também, não é mesmo? E o livro segue, novamente, um caminho cujo destino nem a Mãe Dinah pode prever. Contorna, dribla a distribuição e cai nas mãos do leitor. Lá na frente, outro leitor. E as leituras se multiplicam. O autor parece, agora, mais do que um nome. Em alguns casos, vira uma estrela que debate em festas, seminários, encontros. Em outros casos, gosta de fingir que é discreto. Gracinha. O livro faz seu trajeto cheio de improvisos.

Lancei dois livros na vida. Há mais pelo menos dois no HD do meu computador. Um deles andava sendo negociado, mas não quebrei meu porquinho por isso ainda. E vamos lá dizer a verdade: os livros só me arrumaram encrenca. Justamente por não saber aonde iriam parar, topei com histórias que dariam outros livros.

A leitora que disse que um poema tinha forma de vagina; a outra que copiou e analisou na sala de aula; palestras para estudantes; eventos de todo porte; amigos novos, está aí Ricardo Rabelo, que surgiu do nada; namorados; amantes; inimigos gratuitos; guinadas espetaculares. Deixei o filé para o final: Julio Daio Borges, timoneiro deste barco, pintou depois de certo conhecimento de que eu estava envolvida com essas coisas. Meu marido, do estado do Rio, queria uma entrevista para um jornal. À época, ele era apenas um jornalista interessado em literatura. Por causa de um encontro literário, concebi e gestei um menino com nome de rei. De jornalista, meu então conquistador passou a pai. Veja quanta encrenca um livro pode fazer! Pai virar avô, mãe virar avó, irmão virar tio, amigo virar padrinho e assim por diante.

E aí vou destecendo os fios e me encantando com o irreversível: se não houvesse aquele livrinho coletivo, não haveria o segundo; se o segundo não fosse lançado, não haveria uma pilha incontável de encrencas e provavelmente eu estaria bebendo num bar a esta hora. Provavelmente querendo conhecer um jornalista bacana que entendesse minha paixão por livros e minha poesia concisa. Também não teria com quem brincar pela manhã e estaria com um carro zero na garagem da casa dos meus pais. Tudo por causa de um poema que um dia virou livro e ganhou leitores.

Fazendo analogias: cada livro é a possibilidade de um mundo novo. Mesmo quando o escritor pensa que a tiragem não vai dar em nada. Mesmo quando o distribuidor é uma miragem. Mesmo quando o projeto gráfico é uma grande porcaria. Mesmo quando o texto nem é lá o que você tem de melhor. Se não quer perder o controle das coisas, não se lance no mapa ao sabor do leitor.

Nota sobre o Forum das Letras

O jornal O Estado de Minas publicou nota sobre os fétidos bastidores do Forum das Letras, de Ouro Preto, aquele mesmo que elogiei nesta coluna. Ainda acho que Ouro Preto merece mesmo entrar para o cenário das cidades-literatura, aliás, Ouro Preto sempre esteve nessa lista. Para quem não lembra, aquela patota inconfidente e árcade era de lá, quando a cidade era a capital do Brasil e tinha muito ouro e grana.

O fato é que se soube que a organização do evento pagou cachês razoáveis para escritores de fora de Minas, cachês meia-boca para mineiros em fuga e cachê nenhum para mineiros enraizados. Curioso, não?

Segundo fontes seguras, expoentes como Carlos Herculano Lopes não receberam nada (além da hospedagem e tal), Luiz Rufatto recebeu algo em torno de mil contos de réis e Adélia Prado umas seis vezes mais que isso. Curioso, não é mesmo?

Pirralhos poetas e eternos iniciantes ganharam os parabéns e o privilégio de serem convidados para o evento. Ah, sem esquecer que nem sempre as pousadas foram adequadas.

De repente, bateu uma saudade dos eventos do Itaú Cultural, em São Paulo (claro), que convidam as pessoas, pagam cachês razoáveis para todos, sob critérios mais claros e sustentáveis, não são descaradamente bairristas e colocam todo mundo, pirralho ou estrela, no mesmo hotel 5 estrelas e dentro do mesmo avião.

1 pro Itaú, 0 pro Forum. Mas há que lembrar que o evento Encontros de Interrogação prometeu um livro, um documentário e sei lá mais quantos produtos aos escritores que estiveram lá, em 2004. Estamos esperando.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 28/12/2005

 

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