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Sexta-feira, 13/1/2006 Sábado, de Ian McEwan Jonas Lopes Se a vida, como afirmou Ralph Waldo Emerson, consiste naquilo que um homem está pensando o dia inteiro, Sábado (Companhia das Letras, 336 págs, 2005), o novo livro do inglês Ian McEwan (traduzido por Rubens Figueiredo), é um belo pedaço de vida. McEwan, autor do melhor romance da década até agora (Reparação), captura um dia na vida e nos pensamentos de Henry Perowne, um neurocirurgião bem-sucedido. Não um dia qualquer, mas aquele em que houve a maior manifestação da história de Londres, contra a entrada da Inglaterra na Guerra do Iraque junto com os Estados Unidos. Um milhão de pessoas foram às ruas protestar. Neste dia "destinado a se destacar dos demais" - 15 de fevereiro de 2003 - Henry vê um avião em chamas pela janela às três horas da manhã, faz sexo com sua mulher, sofre um acidente de trânsito e foge por pouco de levar uma surra de marginais, é derrotado em uma disputada partida de squash, compra frutos do mar para o jantar, visita a mãe que sofre de Alzheimer em um asilo, assiste a um ensaio do filho guitarrista, reencontra-se com a filha pela primeira vez em seis meses, vê sua casa ser invadida pelos mesmos marginais que bateram em seu carro, faz uma cirurgia cerebral em um deles, e, por fim, termina o dia na cama refletindo sobre todos esses acontecimentos. Ian McEwan declarou que a influência nessa narrativa de um só dia não vem tanto dos também britânicos James Joyce (Ulisses) e Virginia Woolf (Mrs. Dalloway), e sim dos americanos, como o Saul Bellow de Seize The Day. Bellow está na epígrafe de Sábado com um trecho de outro livro seu, a obra-prima Herzog, de 1964. Há outras semelhanças com o autor judeu morto no ano que passou. Baxter, o homem que bate no carro de Perowne, lembra o vagabundo e candidato a mafioso Rinaldo Cantabile, de O Legado de Humboldt. Ele até instiga a curiosidade do médico, como Cantabile instigava Charles Citrine, o protagonista de Humboldt. Outra paixão de McEwan é John Updike. Sábado herdou da tetralogia Coelho, de Updike, o tempo verbal no presente, a prosa abundante e a intenção de abordar uma vida comum, de classe média, tendo como pano de fundo situações políticas e sociais. O clima de classe média alta lembra o do terceiro volume da tetralogia, Coelho Cresce. Como o Joe Rose de Amor Para Sempre, romance de McEwan, o cirurgião é racional até a medula. Tornou-se frio graças à sua profissão e mantém uma vida sem muitos arroubos emocionais. Vive discutindo com a filha poeta, que é pura paixão. Não compartilha com ela o gosto pela ficção ("E a Perowne interessa ainda menos ter o mundo reinventado; ele o quer explicado"): ele lê, por indicação dela, clássicos como Madame Bovary e Anna Kariênina. Não consegue achar as histórias das adúlteras mais do que contos de fadas irrelevantes e aparentemente distantes de sua vida. Só aparentemente. McEwan não deve ter escolhido citar esses livros à toa; ambos tratam de uma classe média entediada, vazia, com ênfase nas aparências. Perowne não capta a crítica de Flaubert e Tolstói por viver em um ambiente parecido com aqueles dos dois livros. Sua família é a personificação da perfeição. Além dele próprio, conceituado e talentoso, sua esposa é advogada competente, sua filha terá o primeiro livro de poesias lançado por uma grande editora, seu filho é a maior promessa inglesa do blues. Henry orgulha-se de não sentir vontade de ter relações com qualquer mulher que não a sua esposa. Tudo muito decente e correto. No afã de parecer incorruptível e infalível, a família Perowne, como diversas outras da classe média, fecha-se dentro da redoma que é seu círculo social. Uma boa casa em um bom bairro, uma profissão segura, uma Mercedes na garagem, o fim de semana no clube. Ocultam o próprio vazio. Henry mesmo não admite a emoção que sente, por exemplo, ao ouvir o filho tocar - como se nesses tempos de terror, fosse necessário ser o menos emotivo possível (embora ele saiba que "não é o racionalismo que vai derrotar os fanáticos religiosos, mas o comércio trivial e tudo o que ele acarreta (...) Comprar, em vez de rezar"). Com a paranóia pós-11 de setembro, os Perowne fogem desse terror: "A caminho da escada principal, se detém diante da porta da frente. Ela dá direto para a calçada, para a rua, que vai para a praça e, em seu esgotamento, a porta assoma, de súbito, diante dele, estranhamente com seus acessórios - três sólidas fechaduras da marca Banham, dois ferrolhos de ferro preto, tão velhos quanto a casa, duas correntes de aço temperado, um olho mágico com cintura de metal, a caixa de circuitos eletrônicos que opera o sistema do interfone, o botão vermelho de pânico, o dispositivo de alarme com seus dígitos que brilham suavemente. Tantas proteções, tantas fortificações cotidianas: cuidado com os pobres da cidade, os viciados, os francamente maus". Em Sábado, o cotidiano da família é colocado em choque com esses "perigos externos". O brilho da narrativa está em manter presente a tensão das manifestações contra a guerra, sempre de forma indireta. Perowne é atrapalhado pelo protesto, pois ruas são fechadas e param o trânsito. Ele vê jovens com bandeiras nas praças - de dentro de seu carro, note -, observa imagens dos manifestantes na televisão do asilo de sua mãe. Nunca os acontecimentos tomam a posição de frente, embora sempre estejam lá. Nos diálogos de cozinha entre Henry e seus filhos, todos debatendo se a Inglaterra deve entrar na guerra ou não - do lado de dentro, sempre. McEwan encontra-se no domínio máximo de seu poderio narrativo. Suas sentenças estão cada vez mais longas, sem cair na prolixidade. O vigor descritivo é impressionante. Dois anos pesquisando e presenciando cirurgias cerebrais possibilitaram a ele trazer para o livro os mínimos detalhes dessas intervenções médicas. E ele ainda exercita em Sábado o gênero da ficção ensaística. Promove digressões analíticas sobre os temas mais diversos, como política, drogas, mídia, a validade da literatura nos tempos atuais, ciência, a relação entre emoção e razão e mortalidade (através da tocante mãe de Henry). O inglês é mestre em criar situações impactantes e densas, que tiram o leitor do sério. É assim em Amsterdam no capítulo em que Clive, um compositor erudito, caminha por um vale à espera da inspiração para o clímax da sinfonia que está compondo para o final do milênio. É assim em Amor Para Sempre no incidente que abre o livro, uma queda de balão descrita de forma tão acachapante que quase ofusca o restante do livro. E é assim nas 200 primeiras páginas de Reparação - impossível escolher uma única cena em um romance tão irreparável -, até que a escritora juvenil Briony Tallis comete o erro que passará a vida inteira tentando reparar. Em Sábado essa cena acontece quando a casa de Perowne é invadida por Baxter e um amigo. Não vale a pena estragar qualquer coisa descrevendo os detalhes, mas o desfecho da crise é curioso, no mínimo. A cena então se expande até Henry operar Baxter ao som das Goldberg Variations, de Bach: "Coloca delicadamente a tira de pericrânio sobre o surgicel e acrescenta uma segunda camada de surgicel e uma segunda tira de pericrânio, e põe outro absorvente por cima. Em seguida, o dedo de Rodney. Perowne enxágua a região mais uma vez, com solução salinizada, e espera. A opaca dura-máter, branca e azulada, permanece desimpedida. O sangramento estancou". Mais que apresentar ao leitor apenas um dia na cabeça de Perowne, Ian McEwan traça um panorama rico do homem hoje - os temores de Henry e sua família são, hoje, universais, assim como suas esperanças, angústias e fragilidades. Sábado é um pouco sobre cada um de nós. Para ir além Jonas Lopes |
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