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Quarta-feira, 15/2/2006
Copacabana-Paulista-Largo das Forras
Ana Elisa Ribeiro


Ana Elisa Ribeiro num trem pras estrelas

Meu pai conheceu o mar quando já era adulto. Quando eu era adolescente, ele sempre contava de uma sua estada no Rio de Janeiro, capital, quando andou pelas praias famosas sozinho e passou pelas esquinas onde ficavam Vinícius e Tom. Também meu pai, muito mineiro, sempre contava, com muito maior ênfase, que dessa feita, na maravilhosa cidade, tivera a infeliz idéia de levar um sapato novo. O couro ainda duro e a sola inflexível deixaram-lhe os pés machucados, o que desviou a atenção do moço mineiro para os próprios calcanhares. Mas, ainda que esta lembrança podomaníaca sempre sobressaísse em relação a Copacabana, meu pai sempre encerrava o assunto afirmando: o Rio de Janeiro é muito bonito.

Para muitos e muitos mineiros, ver o mar é parte dos feitos de alguém, inclusive digno de se constar na biografia. Ver o mar é parte da lenda pessoal. Quando isso acontece, deve-se registrar, com segurança, a data e reter, com certa lentidão, todas as percepções e sensações que o evento suscitar. Ver o mar pela primeira vez é digno das anotações das listas de "primeiras vezes". Estão lá a primeira transa, o primeiro beijo, a primeira namorada, o primeiro carro e a primeira vez que se viu o mar. O imaginário do mineiro carrega esse evento com certo maravilhamento, muito diverso do ar de intimidade com que o nascido nas orlas fala e convive com a água.

O Brasil é um país imenso, isso todos nós sabemos desde crianças. Mesmo que não se saia muito do lugar, olhando um mapa-múndi e por comparação, é possível verificar que nosso país é muito maior do que a maioria dos países do mundo inteiro. É sabido que temos uma imensa costa languidamente virada para o Oceano Atlântico, com águas frias e quentes, para todos os gostos. Pensando na demografia, é sabido, ao menos nos livros de Geografia, que a maior parte das capitais, assim como da população, habita próximo à orla. O interior é muito menos habitado, assim como são poucas as capitais firmadas longe do mar.

Fazendo um tour histórico bem precário, é possível ainda afirmar que das poucas capitais que se encontram no interior do Brasil, grande parte foi "plantada", ou seja, construída para ser pólo administrativo de um governo, parte de um plano político consciente e pouco aleatório. É só mirar as histórias de Belo Horizonte, Palmas e de nossa capital federal.

As outras capitais crescidas longe do mar têm ao menos um rio a que remontar suas memórias. Belo Horizonte, não. As histórias de rios que os belo-horizontinos contam são muito diferentes daquelas tão ricas contadas pelos ribeirinhos do São Francisco ou do Paraíba do Sul. Os rios e as águas, portanto, são parte do imaginário coletivo dos mineiros, mas nunca nos mesmos sentidos.

Assim como a água faz parte dos eventos de uma comunidade, as montanhas também podem fazer. Como será que um mineiro percebe as montanhas? O que é um "morro" para um carioca? E para um belo-horizontino?

Certa vez estive em Campinas e senti imensa dificuldade em me localizar em determinado bairro. Tudo porque um nativo explicou-me como chegar a um lugar chamando de "ladeira" algo que jamais mereceria esse nome em Minas, em qualquer das Minas Gerais. Também numa visita a Campos dos Goytacazes disseram-me, com certo orgulho: "esta é a parte alta da cidade". Enregelei-me quando, lá de "cima", não vi nada que se parecesse com um "lá embaixo", e percebi que tudo eram questões conceituais.

A Paulista foi, para mim, uma imensa decepção quando deparei com uma avenida plana. Quando atravessei de um lado a outro do Masp, não podia ver-lhe os arredores em forma de lagartos, como acontece na minha imensa Afonso Pena. No Natal, a avenida principal do centro de Belo Horizonte se transforma numa imensa cadeia de luzes favorecida pelos ângulos.

De um lado menos iluminado, tenho certeza de que a Avenida do Contorno faz parte da lenda urbana de todos os belo-horizontinos. Onde já se viu uma avenida que servia de cerca a uma cidade inteira? E quase todos nós pulamos a cerca e moramos fora dela. Se éramos periferia, agora somos centro. Mas o que anda no imaginário de quem sempre esteve dentro da Avenida do Contorno?

Em Tiradentes, cidade dos arredores de São João Del-Rei, interior ex-aurífero das Minas Gerais, também estive a pensar no imaginário da comunidade, em contraste com o meu, claro. À parte das condutas mais sérias da pesquisa etnográfica, fiquei ali uns poucos dias tentando entender o que deve significar "longe" e "perto" para aquelas pessoas. Antes disso, o que seria, para eles, uma "ponte".

Belo Horizonte não tem pontes. A primeira ponte que conheci foi o Viaduto das Almas, na BR-040, saída para o Rio. Uma curva altíssima que causa um número incontável de acidentes de carro entrou no meu imaginário como algo necessariamente ruim. Mais tarde, conheci a extraordinária ponte Rio-Niterói. E então era tarde demais para entender que "ponte", em cidades do interior, costuma ser pouco mais que dois metros de passadiço entre um lado e outro de um riozinho ou de um córrego. Quando me indicaram que a pousada ficava do outro lado da ponte, tive que me manter atenta e ter "olhos de ver ponte", para não me perder pelo caminho.

A Maria Fumaça que leva de Tiradentes a São João Del-Rei, e vice-versa, também me deixou esse gosto legendário na boca. Fiz questão, com meu marido, de não fazer apenas um passeio turístico que soasse idiota, como tantos soam. Quisemos, ambos, empregar o trem para a partida, na hora mesma de ir embora, como faziam as pessoas da época de ouro das ferrovias no Brasil. De mala e cuia, cansados e suados, chegamos à estação, compramos o bilhete, ouvimos o apito, andamos por dentro dos vagões, escolhemos um assento e "pegamos o trem". Muito impressionante andar àquela velocidade e pensar que até mesmo "rápido" e "depressa" são relativos ao tempo, ao imaginário possível a uma geração ou a uma comunidade. Estávamos numa Maria Fumaça, máquina a vapor considerada o maximum tecnológico para várias gerações, algo que mudou a relação das pessoas com a distância, o tempo e a saudade. Até mesmo as oportunidades andaram de trem um século atrás. (Interessante ler Peter Burke e Asa Briggs, Uma história social das mídias).

Estávamos nas janelas de um trem a vapor, andando a uma velocidade que nos parece pouco mais do que humana, vendo a mata remanescente, as serras, as curvas infinitas, ouvindo o barulho dos mecanismos das rodas, os trilhos, a brita ao redor, o apito, quando me apercebi das casas e das populações que vivem à beira das linhas de trem.

Está aí mais uma situação do imaginário de muitos brasileiros. Se uns olham pela janela de manhã e vêem mar, outros vêem rio, outros, ainda, vêem trilhos. Para aquele que ouve, todos os dias, o apito do trem, a espera não é o inferno. Aquelas comunidades estão ali, paradas em relação aos vagões, e talvez, para muitos deles, a lenda seja, um dia, pegar o trem e zarpar. Para outros, talvez a lenda seja ver alguém chegar, de retorno ou de forasteiro. Que venha para ficar, ou apenas para mudar o que parecia inerte. Dar um sopro de vida e ir embora.

À passagem do trem, as pessoas na beira dos trilhos, da rua ou das janelas, acenavam tchaus ora alegres, ora tristes. As mulheres pareciam manter as mesmas poses nas janelas. Escoradas nos parapeitos, davam tchaus preguiçosos. As crianças que brincavam na rua, interrompidas pelo trem, faziam da milésima passagem da locomotiva um evento festivo. Davam tchaus renovados, sorriam, pulavam e rodopiavam ao som ritmado da máquina à vapor.

No imaginário daquelas pessoas, o que será um trem? O que deve ser um trem para o mineiro, morador do interior de um país imenso, entrecortado por trilhos e de onde se podem ver tantas locomotivas de passagem? E para o carioca? O que será o trem? Talvez para este seja mais importante a estação do trem. Para os mineiros, a estação pode ser apenas o intervalo entre uma saída e uma chegada, sabe lá com quanto mais ou menos de alegria e tristeza.

E os meninos que brincam perto da linha do trem? O que pensam? Como soltam pipa? Se para meu filho um trem é um brinquedo cheio de rodas e cores, para aqueles guris da estrada de Tiradentes o trem traz, leva e corta as pernas das crianças que não obedecem às cuidadosas mães.

O que está no imaginário de um paulistano? O que é a lenda coletiva de uma população? Numa metrópole, o que faz parte dos eventos legendários? Um ritmo, uma velocidade, um hábito. A água, o trem, a montanha, os conceitos de alto, baixo, perto, longe, saída, chegada, amizade, respeito... todos podem ser vários. E são. Basta pegar a Maria Fumaça de Tiradentes a São João e viver com fé aquele momento. Uma lenda muito diversa da que se pode ter andando de carro sobre viadutos de concreto.

Ana Elisa Ribeiro
Tiradentes, 15/2/2006

 

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