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Quinta-feira, 26/1/2006 O carnaval e a cidade Almandrade A festa e a transgressão fazem parte da natureza do homem. São dispositivos acionados pelo homem para resgatar estados de alegria ou transe, no conflito entre o sagrado e o profano. O carnaval, além de ser uma festa que contamina toda uma cidade, é uma forma de apropriação urbana que altera sensivelmente a imagem, a ordem e os valores que regem e fazem o estilo de vida dos outros dias do ano, fazendo da cidade o lugar de uma orgia coletiva. Não podemos desconhecer que "o erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem" (Bataille). Mas o que vem acontecendo ultimamente é uma espécie de publicidade do sexo onde o erótico é apenas uma mercadoria do circuito de economia libidinal, muito bem aproveitada pela indústria do turismo e pela mídia, resultando em retornos significativos para a economia dominante. Portanto, o cotidiano material e simbólico se reproduz no carnaval, fazendo da rebeldia um comportamento possível e suportável de distração e recuperação da força de trabalho. Os sacrifícios das sociedades primitivas, como o potlatch, eram meios de devolver ao mundo sagrado o que a relação servil do homem com o trabalho tornou profano. O trabalho recalcou a "intimidade", e esta passou a ser recuperada nos cultos, nas oferendas aos deuses, nas festas, nos sacrifícios, nas chamadas "despesas improdutivas". "Em seus mitos estranhos, em seus ritos cruéis, o homem está antes de tudo em busca de uma intimidade perdida" (Bataille). A ocupação da cidade por um ritual frenético, que tem o riso e o erótico como desarticuladores da seriedade do mundo da mercadoria, é, sem dúvida, o sacrifício da sociedade moderna, onde tudo pode ser reciclado para o espetáculo da mercadoria. Hoje, o carnaval é uma mercadoria exótica e pitoresca, que interessa principalmente ao viajante de lugar nenhum, o turista, muito bem produzida, embalada e vendida, durante todo o ano. A atividade do ano não é redutível à reprodução, conservação e consumo. George Bataille a divide em duas partes: a primeira diz respeito ao uso do mínimo necessário, para os indivíduos de uma sociedade, manter a conservação da vida e a continuação da atividade produtiva. A segunda se refere às despesas improdutivas: as festas, os cultos, o luxo, os jogos, os espetáculos, etc. O carnaval faz parte dessa categoria de despesa, sua função é desperdiçar o excedente, o que precisa ser gasto. As manifestações políticas, étnicas e culturais, pulsões recalcadas, revoltas sociais fazem parte do circuito da economia simbólica. Se a cidade é o centro das operações mercadológicas do capitalismo, durante o ritual carnavalesco, ela é reorganizada, por um urbanismo meio perverso, para permitir a comercialização e o desperdício do erótico, da libido e da violência. A cidade é percorrida pelo lúdico, pela sedução e até pela apelação direta ao sexo, como registra as campanhas dos preservativos. Mas este desperdício e esta socialização promovidos pela orgia contagiante, não estão em contradição com a cumulação e concentração de renda. A festa invade o centro e os subcentros da cidade, imprimindo uma outra paisagem física e social. O lugar do trabalho, da produção e do consumo, das atividades humanas de conservação e reprodução é destinado a outras atividades, outras marcas e outras identidades. Uma estranha cidade portátil é construída dentro da antiga, tendo as barracas de bebidas alcoólicas como principal serviço urbano. Uma multidão consumidora e espetacular, e um território fantasmagórico se erguem, subvertendo momentaneamente a aparente racionalidade urbana. Se na análise de Jean Baudrillard, a sedução é mais forte que o poder, a produção e até mesmo a sexualidade, o carnaval parece comprovar tal afirmação, quando não faz uma apelação agressiva do sexo. Neste audacioso ritual de libertinagem, patrocinado pelo poder e pelo "bom senso" de uma sociedade indiscretamente moralista, a cidade é o palco da sedução. Entre o homem e o mundo existe a linguagem. Uma pele semiótica transparente, sem a qual o homem estaria isolado, sem relacionamentos e sem limite diante do conhecimento das coisas e dos seres. A convivência na cidade implica no domínio de uma linguagem; o urbano tem seus códigos que legisla seu uso. O carnaval como uma performance de transgressão e inversão do sistema de signos urbanos, desfaz o código cotidiano de relacionamento do sujeito com a cidade, estabelecido pelo compromisso produção/consumo, e inventa uma semiótica determinada pelo excesso, pela ironia e pelo grotesco. Na imagem da cidade do carnaval é determinante a sintaxe da obscenidade, da orgia, da perversão simbólica. A violência, motivada por vários fatores, faz parte da festa e contribui na definição da imagem e da publicidade do carnaval. Sob o efeito do carnaval, a cidade troca de função e de sentido. A sinalética usual passa a ser um conjunto de significantes mortos e é substituída por uma outra que sinaliza o urbano nos dias do império do Momo. A cidade troca de som, de cheiro, de visual, e uma multidão invade as ruas e praças embriagada pelo ritual. Sujeitos urbanos voltam simbolicamente ao estado tribal; fantasiados, assumem outras identidades, atrás de outras expectativas. O urbano torna-se um espaço terapêutico, onde transita paralelamente a economia política e a economia libidinal. As rígidas divisões: público/privado, sagrado/profano são suspensas temporariamente para liberar os fluxos das energias reprimidas. O carnaval forja uma realidade, assim como a sociedade para legitimar as relações de poder, inventa um princípio de realidade igualmente autoritário. Com uma diferença no carnaval, não existe uma lógica fora da paródia e da excessividade, imperando um simbolismo total e um jogo de sentidos onde as regras são improvisadas a todo momento. O antigo centro da cidade do Salvador é ocupado por um acontecimento excêntrico, na história da cidade, mas que se repete todos os anos, durante o verão, como um fenômeno de massa, cada vez mais industrializado e menos espontâneo. O centro histórico, que já esteve ameaçado de abandono e decadência, volta a ser o cenário principal do grande baile eletrizado de multidões que escaparam do mundo do trabalho. A praça Castro Alves é o auge, uma das principais zonas erógenas do carnaval, onde quase tudo acontece; é disputada palmo a palmo por foliões que redescobriram o corpo e sua energia. Mas as relações de trabalho não foram totalmente abolidas, existem os operários do carnaval, que são: os músicos, os funcionários dos trios, seguranças dos blocos, os policiais mobilizados para manter a ordem e conter a violência, os funcionários de saúde de plantão, os vendedores improvisados, os barraqueiros, as baianas de acarajé, os jornalistas, etc. Eles formam uma infra-estrutura mínima de serviços que garantem a realização da festa. Toda a rebeldia "surrealista" que aparece na imagem do carnaval é solidária com o realismo diário do mundo do trabalho, do lucro e da exploração. A instituição carnaval, com toda sua carga simbólica, não escapou do processo de administração empresarial capitalista. Por exemplo, os blocos são organizados como empresas reproduzindo a divisão social, racial e sexual, além de, independentemente da festa, a parte burocrática e financeira funciona durante todo o ano. Surge uma nova e simbólica noção de propriedade privada, o percurso da rua é lotado entre blocos com seus trios elétricos exclusivos, contornados por uma corda e seguranças, não sendo permitido, naquele território, foliões sem a fantasia do bloco. O trio elétrico, na atualidade, é mais um produto de uma engenharia musical, que não importa muito a qualidade da música, reunindo em torno de si uma comunidade selecionada de foliões. A cidade é um texto, sempre reescrito e reinterpretado, a todo instante confirma o "hiper-realismo" do carnaval que magnetiza e subverte o sentido do espaço físico com a autonomia do simbólico. A volúpia da cidade mundana, a hemorragia do desejo recalcado, a circulação do sexo e a descontração frenética são as referências do processo de significação, marcantes da paisagem urbana na cidade do carnaval. Nota do Editor Almandrade é artista plástico, poeta e arquiteto. Almandrade |
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