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Sexta-feira, 17/2/2006
Alguém para correr comigo, de David Grossman
Julio Daio Borges


David Grossman por Vardi Kahana

"Se uma pessoa, não importa quem, resolve se colocar dentro de uma couraça e proteger sua alma, somente durante algum tempo, para conseguir cumprir uma missão difícil, não importa o quê, será que depois de cumprida a missão ela será capaz de voltar a ser de novo ela mesma, exatamente como era antes?"

É óbvio, existem escritores e escritores. Segundo Oscar Wilde, livros bons e livros ruins - é o que importa. Já segundo George Orwell, livros de que gostamos e livros de que não gostamos. Depois, tentamos explicar por quê - mais isso já é racionalização... David Grossman então, Alguém para correr comigo então, é um autor, é um livro, que não te pega logo na primeira página, mas que vai te pegando, te pegando... Até o ponto em que você se apaixona pela heroína, pelo herói, pela história, pelos demais personagens. Não tem uma explicação racional; simplesmente acontece (ou não). Mas eu vou ensaiar aqui, claro, uma explicação.

É vício de escritor: quando a mágica acontece, ou à medida que ela vai acontecendo, você, que escreve, tenta entender qual é a manha do escritor. Ele usa palavras difíceis ou fáceis? Ele usa frases longas ou curtas? Eu ia lendo o David Grossman e ia pensando nessas coisas... Aparentemente, não havia nada de mais nas suas palavras - eram palavras normais. Nenhum vocabulário de não sei quantos mil vocábulos. Nenhum Shakespeare, portanto. Suas construções eram simples, sua ordem era direta - não requeria, como diz o ditado, prática nem tampouco habilidade.

Não havia outras referências literárias. Em Alguém para correr comigo, ninguém lia ou citava outros autores. Não, diretamente. Não eram pessoas normais, no entanto, as do livro - eram pessoas encantadas. Mas não porque lessem, ou porque fossem intelectuais ou coisa parecida. Mas pelo simples fato de serem jovens e de terem, ainda, alguns ideais. Não necessariamente jovens de corpo; mas "jovens" no sentido de lutar por alguns sonhos. Alguns. Em alguns momentos - não o tempo todo. Na duração do livro, apenas.

O bonito é que David Grossman, apesar de ser judeu, não está falando, em nenhuma hora, de crenças religiosas, nem políticas - como é tão comum hoje em dia. O discurso corrente é que se não há ideologia, ou se não há religião, não existem outros sentimentos pelos quais valha a pena viver. Logo "religiosidade" e "patriotismo", segundo George Orwell (de novo), dois impulsos tão primitivos... A beleza da história de Alguém para correr comigo reside na crença, aparentemente banal, de que o ser humano vale a pena. O outro vale a pena.

Eu queria poder transmitir todo o brilho do livro sem contar a história que ele encerra, mas não vou conseguir. São mais de 400 páginas e - eu espero que você não se assuste com essa revelação -, terminado o volume, acabamos acostumados com as presenças de Tamar, Assaf , Dinka, Shai, Teodora, Léa e os demais, como deve ser com todo grande romance. Por mais que você siga atentamente o enredo e o desenrolar da história, há reviravoltas espantosas. Então eu queria narrar um pouco aqui, mas sem estragar a sua surpresa. Que inveja de você que, pela primeira vez, vai embarcar nessa saga...

David Grossman, com aquelas palavras simples e com aquelas estruturas aparentemente ao alcance de qualquer pessoa, é um sujeito muito habilidoso. Um dos grandes temas do livro é o encontro de Tamar e Assaf, os dois protagonistas. Grossman alterna suas histórias à medida que o livro vai avançando. O elo entre os dois é Dinka. Assaf é um jovem que trabalha na prefeitura e que, de repente, se vê incumbido da missão de encontrar a dona de Dinka, uma cachorra. Dinka vai levando-o até as pessoas... Até as amizades de Tamar. Tamar é a sua dona.

Tamar, por sua vez, está imbuída de outra missão: resgatar Shai. Não, não posso dizer aqui qual é a ligação entre Tamar e Shai, porque, senão, estragaria tudo. É uma das grandes surpresas de Alguém para correr comigo. Basta lembrar uma das passagens mais bonitas do livro, uma das que me fez chorar, de Shai sobre Tamar: "Ela é tudo que tenho no mundo". Você já chorou ao ler alguma coisa similar? Pois vai chorar.

Adivinhe o que acontece então? Assaf, conduzido por Dinka - a cachorra que é também apaixonante -, à medida que vai se aproximando de Tamar, vai conhecendo-a através das outras pessoas, e vai se apaixonando por ela (como nós). Cada pessoa lhe conta um pouco de Tamar. Cada uma lhe conta sobre o quão especial é Tamar: sobre o quão bonita, inteligente, atenciosa, intensa, viva... é Tamar. E junto com as pessoas, Assaf vai topando com as coisas de Tamar. Com a mochila de Tamar, com o diário de Tamar. Assaf lê o diário de Tamar! Assaf tem de encontrar Tamar a qualquer custo. Tamar, quando sabe, quase não o perdoa...

E Tamar, pelo seu lado, tem de traçar um plano mirabolante para encontrar Shai, para ser levada até Shai, para salvar Shai. Tamar canta na rua, porque Shai tocava na rua, porque ela quer ser levada até onde ele está - para convencê-lo a voltar, para resgatá-lo, para devolver-lhe sua liberdade. Shai toca divinamente, mas está viciado em heroína. Shai toca para sustentar seu vício. Shai está preso, fisica e psicologicamente - mas Tamar acredita que vale a pena lutar por Shai.

Assaf corre com Dinka pra baixo e pra cima, até que encontram Shai e Tamar. Nós, leitores, ficamos torcendo para que eles logo se encontrem, mas não podemos fazer nada a não ser torcer e esperar. Na torcida e na espera, porém, vamos nos apaixonando também por Assaf - esse rapaz tão sensível, destemido e obstinado. Embora seu objetivo seja devolver Dinka a Tamar, Assaf sofre, fisica e psicologicamente, por causa de Tamar - a ponto de nós nos perguntarmos por que, para ele, encontrá-la se torna tão fundamental... Ao contrário dos sentimentos de Tamar, que estão expressos, desde o início, em tudo o que ela pensa, diz ou faz, os sentimentos de Assaf não nos são diretamente revelados - Assaf demonstra, Assaf faz escolhas, Assaf segue um caminho. Tamar se constrói, para nós, através do que externa de sua personalidade. Já Assaf, pelo que internaliza. Tamar é mulher. Assaf é homem. Nós não sabemos ainda, mas já desconfiamos em que isso vai dar...

Na Flip do ano passado, David Grossman disse que o livro é um pouco sobre como os jovens, hoje, são obrigados a se desfazer, desde cedo, das suas ilusões. No mundo como está, acredita Grossman, as crenças logo são esmagadas pela realidade, mesmo numa fase em que é saudável acreditar; em que faz parte, inclusive, do amadurecimento querer, por exemplo, mudar o mundo. David Grossman pareceu sinceramente triste em constatar que, com ameaças como atualmente as do terrorismo, da miséria, da guerra, até do individualismo, a juventude tenha perdido a única chance de cultivar ainda alguns sonhos. A juventude tenha deixado de ser juventude, em resumo.

Felizmente, há uma contradição entre sua fala e sua realização. Alguém para correr comigo é uma linda resposta a um mundo aparentemente descrente e cheio de pessoas para quem o sonho não diz mais qualquer coisa. Porque, por mais que David Grossman acredite, realmente, que estamos num beco sem saída, em termos de ideais, seus personagens são críveis, vivem numa era que é a nossa, compartilham da mesma atmosfera e - ainda assim - sonham, e realizam. Tamar e Assaf, obviamente, são estranhos num universo que não os aceita, que os persegue, que os rejeita - mas sobrevivem a ele, não só fisica mas espiritualmente. Alguém para correr comigo, na pior das hipóteses, é a afirmação de que existem pessoas diferentes no mundo. Pessoas como Tamar, como Assaf. Como Dinka. Pessoas como David Grossman - antes de escritor, um ser humano.

"Como se sempre alguém tivesse de se sacrificar(...), para que os outros pudessem começar algo novo..."

Para ir além






Julio Daio Borges
São Paulo, 17/2/2006

 

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