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Terça-feira, 31/1/2006
Hamburgo: a bela do norte
Luis Eduardo Matta

A primeira vez no exterior a gente nunca esquece. A minha aconteceu alguns anos atrás. Lembro-me como se fosse ontem daquele dia 14 de agosto quando, após longas horas de vôo e uma conexão problemática em Paris, que quase leva minhas malas embora, finalmente desembarquei, sob um calor inacreditável de 33 graus, em solo europeu. Lá estava eu, em Hamburgo, na Alemanha, para a minha primeira temporada fora do Brasil.

Imagino que muita gente, algum dia, tenha fantasiado sobre as circunstâncias de uma eventual primeira ida à Europa. A estação mais apropriada, que cidades visitaria, que tipo de programação faria, que clima encontraria. Durante anos, isso também aconteceu comigo. Eu, volta e meia, me imaginava chegando à Europa, para um périplo cultural e gastronômico que, naturalmente, abarcaria os grandes centros, aqueles mais consagrados junto a qualquer turista de primeira viagem que se preze: Londres, Paris, Roma, Madri... Gosto de viajar, mas me incomodam tremendamente todos os trâmites burocráticos relacionados a viagens, desde a aquisição de passagens até, pesadelo dos pesadelos, a arrumação da bagagem e o seu transporte. Talvez por isso eu tenha adiado tanto a minha primeira ida ao exterior, cujo destino, acabou sendo, justamente a Europa. No entanto, contrariando todos os planos que eu havia traçado por anos, em vez de inaugurar o velho continente por uma das suas famosas cidades, fui parar, por obra do destino, num lugar onde eu jamais havia imaginado colocar os pés. Eu não tinha a menor idéia de como era Hamburgo quando lá cheguei naquele hoje distante mês de agosto. E poder conhecê-la na prática, sem o auxílio prévio de nenhum guia turístico, foi uma das experiências mais vívidas e notáveis pelas quais passei até hoje. Nunca mais, em nenhuma outra viagem, eu pude experimentar sensações e descobertas similares às daquela primeira visita à Alemanha.

Hamburgo fica no norte da Europa, uma zona predominantemente fria. E, naturalmente, por conta disso, os 33 graus que me saudaram na chegada logo arrefeceram para uma média agradável que variava entre 18 e 22 graus, temperaturas típicas do verão naquelas altas latitudes. Fiquei hospedado num apartamento confortável, numa rua densamente arborizada que margeava um canal repleto de cisnes, chamada Salomon Heine Weg, a menos de dois minutos a pé da movimentada Eppendorfer Landstrasse, uma das principais artérias comerciais da região a oeste do Alster. Toda essa área da cidade é pontilhada por amplos parques, cortados por rios e canais e, no verão, as árvores no auge da sua folhagem verde, cobrem as ruas, fazendo-as parecer jardins. A brisa é constante e tem-se a sensação de se estar a dois passos de alguma praia. Eu saía todos os dias a pé e, após passear pela região de Eppendorf, acabava quase sempre tomando o metrô na Kellinghusenstrasse ou na Klosterstern em direção à Stephansplatz ou à Jungfernstieg, no centro da cidade, para tardes memoráveis, em que o prazer maior, era vagar sem rumo pelas ruas, entrar nas lojas e nas galerias e tomar um cappuccino num dos inúmeros cafés espalhados por toda parte. Dessa maneira fui descobrindo uma Hamburgo belíssima, apaziguadora, cordial, simpática e acolhedora, uma cidade aristocrática, elegante e pragmática, mas que tinha sempre um sorriso ou uma gentileza reservados sob medida, contrariando toda a crença que se tem em relação ao humor e à receptividade dos alemães, que a despeito das minhas expectativas iniciais, revelaram-se um povo afável, alegre e extremamente hospitaleiro.

Erguida no estuário do rio Elba, relativamente próxima aos mares do Norte e Báltico, Hamburgo é cortada por uma grande quantidade de canais com cerca de 2.300 pontes, mais do que Veneza e Amsterdã juntas. Com pouco menos de dois milhões de habitantes, é o segundo maior centro urbano da Alemanha, tendo sido o maior da antiga Alemanha Ocidental. Seu porto é um dos maiores e mais importantes do planeta e atraiu para a cidade, sedes e grandes escritórios das principais companhias armadoras e de navegação internacionais, transformando Hamburgo numa espécie de Wall Street do comércio marítimo. Graças às minhas temporadas na cidade, pude visitar demoradamente algumas dessas empresas, o que me rendeu farto material para o meu romance 120 Horas que tem, entre os cenários, justamente uma companhia armadora, baseada na Europa e no Oriente Médio. Também a agitada vida noturna na cidade é reconhecida como uma das melhores da Europa. Em torno da famosa Reeperbahn, a noite ferve nos teatros, casas de espetáculos, bares e também nas dezenas de prostíbulos, sex shops e casas de strip tease, sem contar a impressionante concentração de prostitutas nas calçadas, que fazem as mais concorridas zonas de prostituição brasileiras parecerem conventos semi-habitados por noviças castas.

Minhas recordações de Hamburgo são as melhores possíveis e elas parecem inesgotáveis. Para mim, Hamburgo era o fim de tarde no Café Fleuron, na Kaufmannshaus, onde, sob a luz suave que penetrava pelas clarabóias, era possível apreciar um café com creme e um suco de laranja e depois sair para visitar a galeria de arte que ficava ao lado. Hamburgo era o sommelier australiano do supermercado do subsolo da Karstadt, em Eppendorf, que, ao me ver descendo a escada rolante, sempre me saudava efusivamente, convidando-me, imediatamente, para degustar, de graça, alguns vinhos excelentes; a maioria, é claro, da terra dele. Hamburgo era os quiosques de salsicha na Mönckebergstrasse, onde duas bratwurst thüringer e um copo de refrigerante substituíam com perfeição um almoço farto. Hamburgo era o parque coberto por árvores frondosas ao longo da margem ocidental do lago Aussenalster, que por várias vezes utilizei para ir a pé até o centro em caminhadas inesquecíveis. Hamburgo era o vasto setor de CDs da loja de departamentos Saturn, junto à estação central de trens (Hauptbahnhof), onde se encontravam álbuns de cantores brasileiros que até hoje nunca apareceram por aqui. Hamburgo era as mesas ao ar-livre do elegante Café Lindtner, numa esquina pitoresca da Eppendorfer Landstrasse, ideal para se tomar um chocolate quente, acompanhado de fatias de bolos saborosíssimos, enquanto perdia-se as horas observando o vaivém das pessoas nas calçadas. Hamburgo era a grande livraria Thalia, na Grosse Bleichen 19, que tinha seções em sete idiomas, entre eles o português e uma vasta oferta de livros de arte. Hamburgo era os pães maravilhosos preparados na padaria de Jô Wedemeier, discretamente instalada num simpático sobrado em Wandsbek. Hamburgo era o bar e restaurante Gröninger, fundado em 1750, que mantinha a decoração rústica original e onde a cerveja era servida em pequenos barris de madeira, como no século XVIII. Hamburgo era o tenor que fazia ponto na Alsterarkaden, entoando árias de óperas acompanhado de um exímio violinista. Hamburgo era as elegantes galerias comerciais espalhadas pelo centro: Hamburger Hof, Hanse-Viertel, Alte Post, Gänsemarkt, Bleichenhof e a requintada Levantehaus, que dormiam abertas e desguarnecidas, sem o perigo de furtos ou depredações. Hamburgo era, sobretudo, gastar o dia passeando pelas suas ruas, parques e praças, apreciando as maravilhas da paisagem de uma cidade feita para ser calmamente desbravada a pé.

Neste ano de 2006, em que a Alemanha estará no centro das atenções por sediar a Copa do Mundo de futebol, recomendo ao leitor que estiver planejando assistir os jogos in loco na pátria de Goethe, que reserve pelo menos dois dias para conhecer Hamburgo. O norte da Alemanha pode não ser tão turístico quanto o sul e, de fato, a região não costuma estar incluída nos roteiros dos brasileiros que viajam à Europa, mas isso não deve ser um impedimento, ainda mais levando-se em conta que Hamburgo está situada a menos de trezentos quilômetros de Berlim, uma distância bem inferior à que separa Rio e São Paulo. Não sei ainda quando voltarei à Europa, mas tenho certeza de que, se puder, não perderei a chance de rever Hamburgo e, por alguns dias, me deixar envolver novamente pelos encantos desta bela cidade do norte.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 31/1/2006

 

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